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JU – Qual o peso dessas edições para a compreensão
de clássicos e para os estudos literários no país?
Vasconcellos – Como já disse, a meu ver essas edições
podem contribuir para a formação de tradutores dos clássicos
que, como Odorico, assumam a tarefa de recriação em português
dos efeitos propriamente poéticos do original, o que é desafiador,
saudavelmente complexo. Não nego a importância de traduções
do tipo filológico, acadêmicas, que traduzem mais o sentido
primeiro e não se preocupam em criar análogos dos efeitos
de som e ritmo do original. Essas edições têm seu papel:
acompanhadas de estudo e notas, divulgam o texto antigo
e são úteis para quem toma o texto como fonte. Mas nossa
apropriação dos clássicos seria muito pobre se só houvesse
esse tipo de trato com os clássicos.
Não podemos esquecer que os latinistas e helenistas trabalham
com textos literários, alguns deles obras fundamentais na
história literária do ocidente, que exerceram uma influência
gigantesca por seu valor estético. É preciso, então, que
tradutores com vocação poética, tradutores criativos, proponham
traduções criativas que, a partir dos textos originais,
produzam textos com valor literário. A meu ver, é isso que,
pensando no público leigo, fora dos muros da universidade,
dá verdadeira vida aos clássicos. Esse mundo clássico vive
através, sobretudo, de textos literários e, quando esses
textos ganham traduções interessantes, atraem leitores que
não são e nunca serão especialistas em latim ou grego, mas
que se encantam com a grandiosidade das obras que a tradução
deixou entrever.
No campo dos estudos literários, as traduções de Odorico
podem ajudar a chamar a atenção dos jovens para nossa herança
clássica, e não apenas a diretamente grega e latina. Um
leitor de Camões, por exemplo, ao ler a tradução da Eneida
de Odorico perceberá como o maranhense se colocou na
tradição épica camoniana, chegando a incorporar versos inteiros
dos Lusíadas em sua tradução. Acima de tudo, quem
quer que se encanta com o uso expressivo da língua portuguesa
na literatura terá um vasto território a explorar com Odorico.
Gonçalves Dias dizia que ninguém conhecia melhor a língua
portuguesa do que Odorico Mendes. O leitor encontrará nele
um vocabulário rico, muitas vezes tomado aos clássicos da
língua portuguesa como Camões, e uma sintaxe com tantas
construções desconhecidas da maioria que a leitura frequente
de Odorico acaba por se transformar numa espécie de curso
de língua portuguesa em seu registro literário, uma amostra
privilegiada das potencialidades expressivas da língua.
JU
– Quais são os próximos projetos do grupo?
Vasconcellos – Atualmente, trabalhos numa edição
das Geórgicas nos mesmos moldes da edição da Eneida Brasileira
e das Bucólicas. Recentemente, a atriz que mencionei passou
a integrar oficialmente o grupo. Esperamos promover mais
récitas de trechos das traduções de Odorico Mendes. Quando
terminarmos a anotação de toda a tradução de Virgílio, que
é o trabalho prático mais importante do grupo, pensaremos
no passo seguinte. Venho acalentando o sonho de reunir uma
equipe multidisciplinar para uma pesquisa profunda sobre
a vida de Odorico Mendes, que, como se sabe, foi um político
importante sob o Império. Há na vida dele alguns enigmas;
por exemplo: onde estão os manuscritos das traduções dos
clássicos?
Sonho com um trabalho de investigação que produza uma biografia
de Odorico e saliente os dois aspectos mais notáveis de
sua vida: a atuação como político que funda jornais e se
dirige com franqueza ao imperador e seu trabalho inédito
de tradução de todas as obras de Homero e Virgílio. Se esse
projeto não vingar, espero que alguém pense em algo parecido
e preencha essa lacuna, pagando o tributo definitivo a um
homem da grandeza de Odorico. E quando não houver mais traduções
de Odorico a anotar, espero criar um grupo para fazer trabalho
semelhante com outras boas traduções dos clássicos.
JU – Em que pese o fato de Odorico Mendes ter
traduzido toda a obra poética de Virgílio e Homero, em pleno
século XIX, seus trabalhos foram alvos de críticas à época
e em períodos subsequentes. A que o senhor atribui esses
comentários?
Vasconcellos – Há aspectos da tradução de Odorico
que só mais tarde viriam a ser avaliados com ponderação.
Por exemplo, ele heleniza o português ao traduzir Homero,
criando, por exemplo, compostos poéticos à moda homérica:
olhicerúlea, pulcrícoma... Nas traduções dos clássicos,
Odorico muitas vezes usa sintaxe que imita a latina, como
que latinizando o português. Assim, o português se enriquece
com a influência do latim e do grego sobre ele. O Brasil
da época de Odorico não estava preparado para essa ousadia.
Mas o fato é que muito dos equívocos de que Odorico foi
vítima tem uma fonte precisa: um juízo tão apressado quanto
cáustico do crítico literário Silvio Romero, que depois
foi repetido por outros críticos e estudiosos.
O fato também de ter passagens difíceis por causa do vocabulário
e da sintaxe não ajudou. Soma-se a isso o conhecimento parco
dos clássicos no original e está feita a mistura ideal para
que o pobre Odorico seja tão incompreendido e tão violentamente
atacado – ainda hoje é, em certos meios, se bem que cada
vez mais raramente. Mas prefiro ressaltar que hoje o resgate
de Odorico como tradutor, por obra de pessoas como Haroldo
de Campos e o professor de grego da USP Antonio Medina,
entre outros, e edições como a de nosso grupo, é completo.
Pode-se gostar ou não das traduções, mas estão dados os
meios para sua leitura desprovida de preconceitos (e quanta
gente não falou de Odorico sem sequer o ter lido de fato!)
e sua compreensão.
JU – Paradoxalmente, como o senhor assinalou,
coube a Haroldo de Campos resgatar essa obra e dimensionar
sua importância, ressaltando sobretudo o esforço de recriação
– ou “transcriação”, tema caro aos concretistas – dos poemas.
Essa chancela tornou a obra de Odorico, digamos, mais acessível
e/ou chegou a sensibilizar parcela da crítica?
Vasconcellos – Não tenho dúvida de que Haroldo de
Campos é o primeiro grande responsável pelo resgate de Odorico.
Se o grande teórico da tradução, grande poeta e erudito
declara que a tradução de Odorico é pioneira no Brasil na
ideia de tradução como recriação, muitos dos seus leitores
são levados a questionar o arraigado juízo negativo e a
olhar as traduções de Odorico com menos preconceito. Mas
é curioso que durante algum tempo certos setores da academia
também tinham certo preconceito contra os concretistas e,
então, entre certas pessoas, o aval de Haroldo não resultava
em benefício de Odorico...
Mas eu prefiro mesmo que tudo isso seja esquecido e que
celebremos tanto interesse, pelo Brasil afora, por uma obra
que já foi alvo de pesada incompreensão. O que eu acho interessante
é ver como muitos jovens – mesmo fora do meio universitário
– se encantam com a poesia das traduções e não se importam
com o esforço que precisam ter para sua leitura. Vi jovens
poetas incorporando a seu vocabulário expressões de Odorico,
influência, portanto, não apenas em modos de traduções mas
na criação mesma de poesia original. Que maior homenagem
do que essa?
JU – Quais foram, na sua opinião, as maiores
contribuições das traduções de Odorico Mendes e o que elas
significaram em um país até então com pouca ou nenhuma tradição
nesse campo?
Vasconcellos – As traduções de Odorico são um belo
exemplo de tradução poética. Aliás, no subtítulo de sua
tradução da Eneida, Odorico fala em “tradução poética”.
Para os classicistas, essas traduções são um objeto interessante
de meditação constante: o tradutor pode aprender ali muitas
maneiras criativas de verter efeitos poéticos do original
latino ou grego. Há elementos das línguas clássicas que
um tradutor menos empenhado poderia achar intraduzíveis,
como a maior liberdade na ordem das palavras e o ritmo quantitativo
do verso, um ritmo dado pela sucessão de sílabas pronunciadas
de forma mais longa ou mais breve.
Em vez de dizer que esses elementos são intraduzíveis porque
alheios ao português, Odorico procura em português efeitos
análogos, muito engenhosos. Por exemplo, um verso do original
tem uma sucessão de sílabas longas, em ritmo regular; o
tradutor, nesse caso, emprega um ritmo absolutamente regular
em português, criando efeito análogo. A mesma coisa para
dar impressão de rapidez num ritmo rápido. Cito um pequeno
exemplo. Numa passagem da Eneida, Virgílio descreve, numa
cena de caça, cabras que se precipitam de uma montanha.
Essa descrição é precedida de um verso cheio de longas,
em ritmo vagaroso; a cena das cabras começa com ritmo rápido,
ágil. Para produzir um efeito análogo em português, Odorico
recorre a uma sucessão de dissílabos, todos paroxítonos
(uma sucessão de tônicas e átonas), com forte repetição
do som “p”: “Bravias cabras pelos picos pulam”. Eis um verso
muito expressivo; sentimos o movimento dos animais, reproduzido
vivamente pelo ritmo e pelos sons... Em vez de desistir
do efeito do original porque ele seria intraduzível, Odorico
o traduz, com meios diversos, porque são recursos de uma
língua diferente, mas com a mesma expressividade e felicidade
do original.
JU – O que falta para que a obra e a trajetória
do maranhense sejam difundidas? O que vem sendo feito nessa
direção?
Vasconcellos – Poucos lêem poesia no Brasil, por
isso não tenho esperanças de que a obra tradutória de Odorico
atinja um vasto público. Mas acho que as edições anotadas,
as récitas, palestras e artigos em revistas criam e continuarão
a criar novos leitores e apreciadores de Odorico Mendes,
na universidade e fora dela. Durante um bom tempo, essas
traduções só estavam acessíveis a uns poucos. O que ainda
realmente falta é divulgar Odorico no exterior, já que suas
traduções têm uma grandeza que podem atrair o interesse
dos leitores e estudiosos dos clássicos, apesar das dificuldades
de uma língua relativamente pouco conhecida mundialmente.
Em dezembro, alguns membros do grupo apresentarão comunicações
sobre Odorico num congresso em Cuba; vamos ver se conseguimos
alguma repercussão. Talvez devêssemos repetir a experiência
em outros países. E se pensarmos que Odorico teve uma ligação
estreita com a França, onde passou a viver a partir de 1847
até sua morte em 1864, seria interessante divulgar as traduções
nesse país. Aliás, Maurice Druon, o escritor e presidente
da Academia Francesa de Letras, é descendente de Odorico.
Seria interessante que o grupo contasse com uma estratégia
de divulgação no exterior, além da que já temos, nossa página
na internet. Imagino que mesmo sem ter pleno acesso ao difícil
texto de Odorico, estrangeiros devem se interessar por informações
gerais a respeito de um projeto sem igual: a tradução integral,
em versos, de todo Homero e todo Virgílio!
JU – O que o sr. destacaria no campo da tradução
no país?
Vasconcellos – Há muita tradução descuidada em nosso
país, e os casos de plágio, recentemente noticiados pela
imprensa, são apenas o lado mais extremo disso, mas, ao
mesmo tempo, o Brasil conta com excelentes tradutores e
trabalhos importantes, como o da tradução de Nietzsche por
Paulo César Souza, trabalho de filólogo e ao mesmo tempo
atento para o estilo do filósofo. Augusto de Campos continua
produzindo suas traduções magníficas. Destacaria, na nossa
área dos clássicos da Antiguidade, as traduções de nosso
colega de IEL, o professor Trajano Vieira, que, na linha
dos irmãos Campos e Odorico, tem produzido belas traduções
das tragédias gregas. No campo do trabalho mais estritamente
filológico, muita coisa interessante se tem feito. Mas o
fato mais animador é que várias editoras do país têm publicado
traduções dos clássicos. O mercado está aberto. Acho que,
considerando as últimas décadas, nunca o momento foi mais
propício para o tradutor de obras em latim ou grego antigo.
Isso é essencial.