O
consumo de produtos falsificados, muito presente nos dias
que correm, não é uma prática específica do capitalismo
contemporâneo. No caso brasileiro, o fenômeno tem suas raízes
fixadas no início do processo de formação desse sistema,
que seu deu entre o final do século 19 e começo do século
20. Já naquela época, as classes que não tinham acesso aos
artigos sofisticados vindos da Europa, primazia das famílias
produtoras de café e de alguns comerciantes em ascensão,
recorriam às imitações. “Como a industrialização brasileira
foi tardia, por volta dos anos 70, a falsificação foi um
dos elementos que contribuíram para dar impulso à dinâmica
própria do capitalismo, que diferencia e massifica a um
só tempo”, explica a economista Milena Fernandes de Oliveira,
autora da tese de doutorado “Consumo e Cultura Material,
São Paulo, Belle Époque (1890-1915)”, apresentada recentemente
no Instituto de Economia (IE) da Unicamp”. O trabalho foi
orientado pelo professor Fernando Antonio Novais.
Em sua pesquisa, Milena buscou compreender a questão do
consumo a partir de sua construção histórica. De acordo
com ela, o tema constitui um importante instrumento para
o melhor entendimento do capitalismo e da sua dinâmica.
“A conexão entre as dimensões econômica e cultural permite
a interpretação dos conflitos de classe para além da esfera
da produção, o que amplia as possibilidades de estudo do
materialismo histórico”, detalha. A pesquisadora informa
que o marco do processo de formação do capitalismo brasileiro
foi a abolição da escravatura e a consequente adoção do
trabalho livre, processo este que teve em São Paulo seu
carro-chefe. O período coincidiu com a incipiente acumulação
capitalista, que se manifestou na forma de administrar a
propriedade agrícola, no desenvolvimento de atividade bancária
urbana, no nascimento da indústria e na própria dinâmica
de consumo. “Foram os primeiros indícios de uma sociedade
capitalista nascente”, afirma a economista.
É a partir desse novo cenário, prossegue Milena, que surgem
conflitos de classe que podem ser captados pela dinâmica
de consumo. As famílias oriundas da riqueza cafeeira tinham
um padrão de aquisição de bens materiais e culturais considerados
sofisticados, fundado no modelo europeu, mais especificamente
o francês. A cultura das lojas de departamentos e os romances
de Gustave Flaubert, por exemplo, eram introduzidos no país
por meio daqueles que viajavam à Europa, seja a passeio,
seja a estudo ou trabalho. Subjacente a esse comportamento
estava a intenção de ratificar uma posição social. Ao mesmo
tempo, uma elite ascendente, formada por comerciantes de
sucesso, aspirava ter acesso aos mesmos produtos. “Os documentos
que analisei, principalmente no acervo dos Arquivos de Paris,
revelam que a burguesia tradicional desprezava essa classe
emergente, por considerá-la menos preparada e educada”,
informa a autora da tese.
Nesse sentido, os grupos mais abastados procuravam se distinguir
dos demais não somente pelo produto consumido, mas também
pelo capital cultural acumulado. Isso ficava especialmente
claro no ambiente da Ópera. De acordo com os representantes
dessa “aristocracia”, os integrantes dos segmentos em ascensão
não tinham cultura e educação suficientes para entender
o que se passava durante o espetáculo, e somente frequentavam
o teatro para tentar demonstrar um status que de fato não
detinham. “Em uma revista que analisei, datada da década
de 20, havia uma clara crítica aos ‘esnobes’ que iam à Ópera,
mas que não compreendiam nada do que estava sendo representado
no palco. Eram chamados pelo autor do artigo de ‘esnobes
profissionais’”, conta Milena.
Paralela a essa situação, conforme a pesquisadora, havia
também o desejo de consumo por parte dos segmentos ainda
menos abastados. Como a base produtiva nacional, que ainda
era incipiente, não tinha capacidade para atender à crescente
demanda, aconteceu inicialmente a diferenciação para apenas
posteriormente ocorrer a generalização desse mesmo consumo.
“Num primeiro momento, a burguesia tradicional deu sequência
ao seu padrão de aquisição de bens baseado no modelo europeu.
O que nós chamaríamos hoje de classe média foi atendida,
em parte, pela indústria nacional, que produzia artigos
mais simples, como tecidos, pentes, chapéus, bolsas e luvas.
Já os segmentos mais pobres passaram a recorrer às falsificações,
também como forma de afirmação de uma identidade. Aliás,
a chamada pirataria é intrínseca ao capitalismo. Tanto no
passado quanto hoje ela é uma forma de generalização espúria
do que é particular”, analisa.
Esse
processo de contrafação como suporte de generalização de
padrões, continua Milena, incomodou os franceses, importantes
parceiros comerciais do país, principalmente no setor de
bens de luxo. Vários dos produtos exportados por eles passaram,
então, a concorrer com imitações nacionais, obviamente mais
baratas. Por essa época, assinala a economista, existiam
marcos legais relacionados às importações. Ela diz, porém,
não ter conseguido identificar uma clara preocupação das
autoridades brasileiras em defender a indústria nacional.
“Alguns produtos considerados supérfluos, como bebidas e
cigarros, passaram a ser taxados, mas isso nem de longe
representava uma iniciativa ligada a um projeto nacionalista,
como o que viria a ser implantado posteriormente no governo
Vargas”, esclarece.
Alguns
comportamentos presentes na formação do capitalismo no Brasil,
reforça a autora da tese, continuam orientando até hoje
hábitos de consumo que são representativos, em alguma medida,
do fenômeno de construção e reconstrução de hierarquias.
A aquisição de produtos falsificados é apenas um deles.
Outro é a aquisição por parte de trabalhadores, ainda que
de forma árdua, de símbolos de status. “O piano é um símbolo
claro para o século XIX. Um funcionário público da época,
um trabalhador de recursos médios, segundo Jorge Americano,
economizava a vida toda para comprar um piano para uma filha
que logo casaria e, então, deixaria o piano de lado. O consumo
funcionava, dessa forma, como uma ponte entre a base material
e a cultura”, aponta Milena.
Ademais, completa a economista, o consumo também esteve
ligado desde sempre ao conceito de modernização. Associado
ao processo de urbanização, o consumo se reportou a um modo
de vida cosmopolita, relacionado por sua vez à forma como
alguns segmentos entendiam a modernidade naquele momento.
Inicialmente, as famílias ruralistas mantinham casas na
cidade apenas para passar breves temporadas. Com o passar
do tempo, elas foram se mudando definitivamente para a área
urbana, em busca de luxo, comodidade e uma vida cultural
mais atrelada à Europa. “Foi nesse contexto que foram formados,
por exemplo, os bairros paulistanos de Campos Elíseos, Higienópolis
e Santa Cecília. Em meio à transformação cultural em curso
e à expansão das ideias cosmopolitas, também foram abertas
as ‘grandes avenidas’, versões locais dos bulevares parisienses”,
diz.