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O mosaico do desemprego

Tese de doutorado interpreta as novas
configurações do fenômeno

Marineide Maria Silva, autora da pesquisa: “Quanto mais escolarizado e qualificado, mais vergonha o desempregado tem da sua situação” (Foto: Antonio Scarpinetti)A doutora em ciências sociais Marineide Maria Silva foi feliz no título que escolheu para a tese que apresentou na Unicamp em 9 de junho: O mosaico do desemprego, que bem sintetiza o conjunto de informações que colheu sobre o fenômeno do desemprego, principalmente junto aos próprios desempregados. “A estatística trabalha com dados do desemprego como uma categoria mais uniforme. Minha pesquisa de campo revelou um verdadeiro mosaico de significados e vivências que o fenômeno suscita. É impossível afirmar que o desemprego ‘é isto’; é preciso perguntar: o que é o desemprego para quem vive a situação?”.

Marineide Silva é de Florianópolis e, no percurso até o trabalho, já tinha atentado para o aumento do número de andarilhos que se esgueiravam pela praça à espera do sopão. Há alguns anos, prestou concurso para a cadeira de sociologia na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), como diz, em busca do seu “emprego seguro”. Daí, o fato de as 57 entrevistas que embasam a pesquisa, com muitas horas de gravação e observações, terem sido realizadas na urbana Salvador e em Vitória da Conquista como contraponto regional.

A autora defendeu a tese no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, com a orientação da professora Márcia de Paula Leite. Para compor o mosaico, promoveu recortes no rol de desempregados: geracional (jovens e adultos), gênero e escolaridade/qualificação. Fez as entrevistas nas agências de intermediação de mão-de-obra, como a Setre (Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e do Esporte da Bahia), vinculada ao Sine (Sistema Nacional de Emprego). Também ouviu funcionários das agências e integrantes do Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD).

A pesquisadora justifica que a maneira como os indivíduos compreendem o desemprego, com todas as tensões envolvidas, fornece informações sobre o mundo do trabalho e a oportunidade de interpretar suas novas configurações. “Por isso mesmo, os entrevistados foram escolhidos a partir daquele que se considera desempregado, mesmo que não seja assim enquadrado pelos critérios oficiais. Acho que essa é a riqueza da pesquisa, que procura entender o desemprego para além dos dados oficiais, buscando a compreensão subjetiva de quem vive essa condição”.

De acordo com Marineide Silva, até o início da década de 1980, havia um ciclo emprego-desemprego-emprego e o sujeito demitido tinha perspectiva de retornar ao mercado, preservando sua identidade de trabalhador mesmo depois de meses de inatividade. “A partir dos anos 90, esse ciclo foi rompido, e esse retorno ficou cada vez mais difícil e incerto”.

Marineide Maria Silva, autora da pesquisa: “Quanto mais escolarizado e qualificado, mais vergonha o desempregado tem da sua situação” (Foto: Antonio Scarpinetti)A autora da tese lembra que, de maneira geral, entende-se que o desempregado se considera um alijado da sociedade, que vive uma experiência dolorosa, carregada de culpa e vergonha, por conta do sentimento de improdutividade. Porém, em sua opinião, a vivência do desemprego não pode ser traduzida como homogênea. “Uma generalização, por exemplo, é de que o desemprego é sofrido. Com a pesquisa, cheguei à conclusão de que sofrimento não é igual para todos”.

A cientista social afirma que o sofrimento subjetivo desencadeado pelo desemprego liga-se diretamente à forma como os indivíduos apreenderam o trabalho, à trajetória familiar que tiveram (sobretudo do pai), aos projetos de futuro e aos investimentos familiares em seu processo de escolarização e profissionalização. “Se a vivência do desemprego é dolorosa para aqueles que foram socializados com a idéia do trabalho como forma de inclusão e ascensão social, o mesmo não acontece com quem nunca visualizou essa possibilidade”.

Esta constatação de Marineide Silva vem do recorte referente à escolaridade e qualificação, no qual as entrevistas contrariaram o que imaginava. “Quanto mais escolarizado e qualificado, mais vergonha o desempregado tem da sua situação. Minha interpretação é de que ele contava com suporte financeiro maior e teve quebrada sua trajetória de vida. Como manter um padrão próximo daquele que gozava? O desemprego é mais sofrido para esse sujeito”.

Por outro lado, a pesquisadora explica que o pobre (normalmente não escolarizado e não qualificado) teve toda a sua trajetória marcada por miséria e sofrimento. “Ele sempre esteve na viração (o bico), na precariedade, assim como seus pais. Não está procurando um emprego, mas caçando a sobrevivência, que se vier será com outro trabalho precário. O desemprego, nesse caso, não tem o que agravar, pois sua vida é tocada praticamente sem renda”.

Recortes
Dentre os mosaicos que construíram a pesquisa, a autora vê como significativo o que contrapõe jovens e adultos. “Os adultos foram socializados em outro mundo do trabalho, onde havia mais emprego e a expectativa de absorção pelo mercado desde que estivessem dispostos. Para eles, o desemprego é um peso, pois imaginavam uma trajetória igual à dos pais que, mesmo tendo estudado pouco, conseguiram um emprego que durou a vida toda”.

Os mais jovens, segundo Marineide Silva, já quebraram este elo com o mundo anterior, transformado pelo processo de globalização, pela reestruturação produtiva e pelo discurso da empregabilidade. “Os jovens mergulharam na nova cultura do trabalho, com os empregos temporários, flexíveis e os estágios. Utilizam inclusive outro jargão: não estão procurando emprego, mas buscando experiência. Ao invés de sofrimento, o desemprego é visto como uma oportunidade de rever seus conceitos”.

O desemprego é considerado mais sofrido para os homens, desde que a mulher não seja chefe de família. Entretanto, a pesquisadora ressalta um aspecto curioso em relação a gênero. “O homem assume a condição de desempregado e, em casa, fica ansioso, deprimido, começa a beber. Já a mulher vive um dilema entre reassumir as ocupações do lar e procurar uma atividade correlata para prover algum sustento, como vender doces, salgados e bijuterias. Isto, mesmo entre as mulheres mais qualificadas”.

Igualmente curioso, acrescenta a autora, é a percepção do entrevistado quanto às causas do seu desemprego e dos outros. “Quando falam de si, o desemprego se deu por motivos externos, como reestruturação produtiva ou fechamento da empresa. Quanto ao outro, foi por escolhas erradas ou falta de empenho e qualificação. Já dentro do Movimento de Trabalhadores Desempregados, o desemprego nunca é visto como um problema individual: culpam-se as empresas, as circunstâncias econômicas e a falta de oportunidades; não há qualquer sentimento de culpa ou vergonha por sua condição”.

Dualidade
Uma preocupação na tese de doutorado, elogiada pela banca e indicada para publicação, foi avaliar o atendimento nas agências de intermediação de mão-de-obra. “Vejo uma dualidade na forma como as agências institucionalizam o desemprego. Em um primeiro discurso, ele é visto como um problema individual do sujeito, que não atende aos requisitos mínimos do mercado. Por outro lado, diante da presença frequente do sujeito qualificado, mas que também não consegue emprego, os funcionários identificam um problema social”.

Marineide Silva acusa as empresas de se aproveitar da crise no emprego para exagerar nas exigências, por vezes descumprindo a legislação trabalhista. “Constatei que o desemprego tem cor, idade e endereço, haja vista a exclusão de negros, mais velhos e moradores de bairros periféricos. Entre as exigências absurdas está a de ‘boa aparência’, cuja tradução é ‘não negros’. O limite de idade é de 35 anos, mesmo com boa escolaridade, e o candidato deve residir perto da empresa para evitar atrasos e o custo com vale transporte”.

A pesquisadora considera um tanto escusa a relação das agências de intermediação com essas empresas, ainda que atendentes e coordenadores reconheçam o exagero das exigências. “O critério da boa aparência, por exemplo, não pode constar no formulário, mas fica implícito: se a atendente não acatar, a empresa recusará o candidato e, consequentemente, a agência deixará de contabilizar uma colocação profissional – os recursos vindos do governo dependem das colocações efetivadas. Se o desemprego já é um monstro assustador, acaba se revestindo de mais perversidade”.

 

As quatro identidades do desempregado

Por considerar os recortes geracional, de gênero e de escolaridade/qualificação insuficientes para descrever o desempregado dos dias de hoje, a pesquisadora Marineide Maria Silva recorreu às estratégias identitárias preconizadas por um conceituado sociólogo estudioso do tema, o francês Claude Dubar. Construiu, assim, quatro categorias de identidade do desempregado:


1 - O sobrevivente

Sujeito que foi pobre a vida inteira e, assim como os pais, começou a trabalhar muito cedo, sem poder estudar e se especializar. Sabe que não tem chance no mercado, mas não está preocupado com a qualificação e sim em sobreviver. Não sente vergonha da condição de desempregado; no fundo, sente orgulho por manter-se vivo. Sua identidade não repousa no emprego, mas na índole de batalhador na vida.

2 - O esperançoso

É tão pobre quanto o sobrevivente, com uma diferença: tem pais que construíram uma trajetória ascendente, como de porteiro a zelador e supervisor. É um filho que continua na linha da pobreza, quase não possui qualificação, mas alimenta a esperança de repetir a trajetória de ascensão dos pais. Como nem vaga de porteiro consegue, sofre com o desemprego.

3 - O apreensivo

É aquele que mais sofre entre os desempregados. Seus pais ascenderam economicamente pelo trabalho, deram-lhe qualificação a ainda assim não consegue seguir na mesma linha. Para as agências, é o sujeito com potencial, mas preso ao conceito do passado, buscando o emprego seguro que não mais existe. É apreensivo porque diante do novo discurso do emprego temporário e flexível disponível no mercado, herdou a identidade de ascensão pelo trabalho e não consegue se desprender da socialização recebida dos pais.

4 - O otimista

Trata-se principalmente do jovem, com qualificação ou não, que mergulhou neste novo universo do trabalho frágil e instável. Vê o desemprego como um período para rever valores. Para ele, a trajetória dos pais é de quem nunca obteve sucesso com o trabalho e passou a vida na mesma empresa, executando a mesma tarefa, até se aposentar – e ele quer uma trajetória oposta. Perguntado sobre a condição de desempregado, responde que está buscando uma boa oportunidade, ainda que a busca já dure dois anos.

 

 
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