A
doutora em ciências sociais Marineide Maria Silva foi feliz
no título que escolheu para a tese que apresentou na Unicamp
em 9 de junho: O mosaico do desemprego, que bem sintetiza
o conjunto de informações que colheu sobre o fenômeno do
desemprego, principalmente junto aos próprios desempregados.
“A estatística trabalha com dados do desemprego como uma
categoria mais uniforme. Minha pesquisa de campo revelou
um verdadeiro mosaico de significados e vivências que o
fenômeno suscita. É impossível afirmar que o desemprego
‘é isto’; é preciso perguntar: o que é o desemprego para
quem vive a situação?”.
Marineide Silva é de Florianópolis e, no percurso até o
trabalho, já tinha atentado para o aumento do número de
andarilhos que se esgueiravam pela praça à espera do sopão.
Há alguns anos, prestou concurso para a cadeira de sociologia
na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), como
diz, em busca do seu “emprego seguro”. Daí, o fato de as
57 entrevistas que embasam a pesquisa, com muitas horas
de gravação e observações, terem sido realizadas na urbana
Salvador e em Vitória da Conquista como contraponto regional.
A autora defendeu a tese no Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH) da Unicamp, com a orientação da professora
Márcia de Paula Leite. Para compor o mosaico, promoveu recortes
no rol de desempregados: geracional (jovens e adultos),
gênero e escolaridade/qualificação. Fez as entrevistas nas
agências de intermediação de mão-de-obra, como a Setre (Secretaria
do Trabalho, Emprego, Renda e do Esporte da Bahia), vinculada
ao Sine (Sistema Nacional de Emprego). Também ouviu funcionários
das agências e integrantes do Movimento dos Trabalhadores
Desempregados (MTD).
A pesquisadora justifica que a maneira como os indivíduos
compreendem o desemprego, com todas as tensões envolvidas,
fornece informações sobre o mundo do trabalho e a oportunidade
de interpretar suas novas configurações. “Por isso mesmo,
os entrevistados foram escolhidos a partir daquele que se
considera desempregado, mesmo que não seja assim enquadrado
pelos critérios oficiais. Acho que essa é a riqueza da pesquisa,
que procura entender o desemprego para além dos dados oficiais,
buscando a compreensão subjetiva de quem vive essa condição”.
De acordo com Marineide Silva, até o início da década de
1980, havia um ciclo emprego-desemprego-emprego e o sujeito
demitido tinha perspectiva de retornar ao mercado, preservando
sua identidade de trabalhador mesmo depois de meses de inatividade.
“A partir dos anos 90, esse ciclo foi rompido, e esse retorno
ficou cada vez mais difícil e incerto”.
A
autora da tese lembra que, de maneira geral, entende-se
que o desempregado se considera um alijado da sociedade,
que vive uma experiência dolorosa, carregada de culpa e
vergonha, por conta do sentimento de improdutividade. Porém,
em sua opinião, a vivência do desemprego não pode ser traduzida
como homogênea. “Uma generalização, por exemplo, é de que
o desemprego é sofrido. Com a pesquisa, cheguei à conclusão
de que sofrimento não é igual para todos”.
A cientista social afirma que o sofrimento subjetivo desencadeado
pelo desemprego liga-se diretamente à forma como os indivíduos
apreenderam o trabalho, à trajetória familiar que tiveram
(sobretudo do pai), aos projetos de futuro e aos investimentos
familiares em seu processo de escolarização e profissionalização.
“Se a vivência do desemprego é dolorosa para aqueles que
foram socializados com a idéia do trabalho como forma de
inclusão e ascensão social, o mesmo não acontece com quem
nunca visualizou essa possibilidade”.
Esta constatação de Marineide Silva vem do recorte referente
à escolaridade e qualificação, no qual as entrevistas contrariaram
o que imaginava. “Quanto mais escolarizado e qualificado,
mais vergonha o desempregado tem da sua situação. Minha
interpretação é de que ele contava com suporte financeiro
maior e teve quebrada sua trajetória de vida. Como manter
um padrão próximo daquele que gozava? O desemprego é mais
sofrido para esse sujeito”.
Por outro lado, a pesquisadora explica que o pobre (normalmente
não escolarizado e não qualificado) teve toda a sua trajetória
marcada por miséria e sofrimento. “Ele sempre esteve na
viração (o bico), na precariedade, assim como seus pais.
Não está procurando um emprego, mas caçando a sobrevivência,
que se vier será com outro trabalho precário. O desemprego,
nesse caso, não tem o que agravar, pois sua vida é tocada
praticamente sem renda”.
Recortes
Dentre os mosaicos que construíram a pesquisa, a autora
vê como significativo o que contrapõe jovens e adultos.
“Os adultos foram socializados em outro mundo do trabalho,
onde havia mais emprego e a expectativa de absorção pelo
mercado desde que estivessem dispostos. Para eles, o desemprego
é um peso, pois imaginavam uma trajetória igual à dos pais
que, mesmo tendo estudado pouco, conseguiram um emprego
que durou a vida toda”.
Os mais jovens, segundo Marineide Silva, já quebraram este
elo com o mundo anterior, transformado pelo processo de
globalização, pela reestruturação produtiva e pelo discurso
da empregabilidade. “Os jovens mergulharam na nova cultura
do trabalho, com os empregos temporários, flexíveis e os
estágios. Utilizam inclusive outro jargão: não estão procurando
emprego, mas buscando experiência. Ao invés de sofrimento,
o desemprego é visto como uma oportunidade de rever seus
conceitos”.
O desemprego é considerado mais sofrido para os homens,
desde que a mulher não seja chefe de família. Entretanto,
a pesquisadora ressalta um aspecto curioso em relação a
gênero. “O homem assume a condição de desempregado e, em
casa, fica ansioso, deprimido, começa a beber. Já a mulher
vive um dilema entre reassumir as ocupações do lar e procurar
uma atividade correlata para prover algum sustento, como
vender doces, salgados e bijuterias. Isto, mesmo entre as
mulheres mais qualificadas”.
Igualmente curioso, acrescenta a autora, é a percepção
do entrevistado quanto às causas do seu desemprego e dos
outros. “Quando falam de si, o desemprego se deu por motivos
externos, como reestruturação produtiva ou fechamento da
empresa. Quanto ao outro, foi por escolhas erradas ou falta
de empenho e qualificação. Já dentro do Movimento de Trabalhadores
Desempregados, o desemprego nunca é visto como um problema
individual: culpam-se as empresas, as circunstâncias econômicas
e a falta de oportunidades; não há qualquer sentimento de
culpa ou vergonha por sua condição”.
Dualidade
Uma preocupação na tese de doutorado, elogiada pela banca
e indicada para publicação, foi avaliar o atendimento nas
agências de intermediação de mão-de-obra. “Vejo uma dualidade
na forma como as agências institucionalizam o desemprego.
Em um primeiro discurso, ele é visto como um problema individual
do sujeito, que não atende aos requisitos mínimos do mercado.
Por outro lado, diante da presença frequente do sujeito
qualificado, mas que também não consegue emprego, os funcionários
identificam um problema social”.
Marineide Silva acusa as empresas de se aproveitar da crise
no emprego para exagerar nas exigências, por vezes descumprindo
a legislação trabalhista. “Constatei que o desemprego tem
cor, idade e endereço, haja vista a exclusão de negros,
mais velhos e moradores de bairros periféricos. Entre as
exigências absurdas está a de ‘boa aparência’, cuja tradução
é ‘não negros’. O limite de idade é de 35 anos, mesmo com
boa escolaridade, e o candidato deve residir perto da empresa
para evitar atrasos e o custo com vale transporte”.
A pesquisadora considera um tanto escusa a relação das
agências de intermediação com essas empresas, ainda que
atendentes e coordenadores reconheçam o exagero das exigências.
“O critério da boa aparência, por exemplo, não pode constar
no formulário, mas fica implícito: se a atendente não acatar,
a empresa recusará o candidato e, consequentemente, a agência
deixará de contabilizar uma colocação profissional – os
recursos vindos do governo dependem das colocações efetivadas.
Se o desemprego já é um monstro assustador, acaba se revestindo
de mais perversidade”.
As quatro identidades do desempregado