Fabrício explica que decidiu estudar os dois livros em meio a tantos outros que tratam da ditadura militar, como O que é isso, companheiro? (Fernando Gabeira) e Os carbonários (Alfredo Sirkis), por dois motivos principais. Primeiro, porque ambos apresentam algumas características em comum no que toca à narração e linguagem. Segundo, porque foram escritos e publicados muito tempo depois dos fatos ocorridos. “Ou seja, não foram produzidos no calor da hora. Eles são resultado de anos de reflexão”, afirma. Orientado pelo professor Márcio Seligmann, que ajudou a introduzir a teoria sobre a literatura de testemunho no Brasil, o pesquisador aponta que os textos apresentam peculiaridades estruturais comuns ao gênero. Os escritores, por exemplo, demonstram hesitação em determinadas passagens, notadamente no momento de narrarem a violência sofrida. Nesse instante, eles perdem a fluência.
Ademais, continua Fabrício, ambos incorporam na narrativa um interlocutor. Flávio Tavares, por exemplo, dirige-se à mulher amada. Luiz Roberto Salinas Fortes emprega o recurso do vocativo, no caso o “senhor”. “Eles se remetem ao leitor, como se simulassem um diálogo psicanalítico. Em outras palavras, eles esperam a atenção desse leitor”, avalia o autor da tese. Outro aspecto comum aos livros, mais especificamente em termos de construção sintática, é a repetição de termos. A palavra “dor”, para ficar numa única citação, aparece várias vezes no mesmo período. “Além disso, existe uma aparente dificuldade dos narradores em ordenar os fatos cronologicamente. A narrativa não é linear, ela vai e volta”, destaca.
Ainda segundo Fabrício, os textos são fragmentados. No momento de relatarem a própria tortura, os autores o fazem como se o episódio tivesse acontecido com outra pessoa. Eles alternam a primeira e a terceira pessoa do singular dentro do mesmo período. “O Salinas, por exemplo, diz em determinada altura do seu livro que seus algozes depositaram ‘o fardo’ no chão, numa referência ao próprio corpo”, exemplifica o pesquisador.
A hipótese defendida na tese sustenta que esses problemas estruturais ocorrem porque os relatos assumem um caráter complexo. São testemunhos históricos, mas também exercícios pessoais de enfrentamento dos traumas sofridos. “Os testemunhos negam a versão oficial e procuram falar por toda uma geração. Ao mesmo tempo, o narrador é vítima das experiências traumatizantes que revela. Para narrar o trauma, o discurso se fragmenta e assume similaridades com o diálogo psicanalítico. Funciona como uma válvula de escape para aliviar o peso do passado”, analisa Fabrício.
Dessa forma, prossegue o pesquisador, os autores procuram colocar o passado no “lugar certo”, por meio de suas experiências. Eles querem ser ouvidos, pois do contrário seria como se fossem submetidos a um novo trauma. “A missão que eles se impõem não é trivial. Estudos relativos aos relatos das vítimas do holocausto mostram claramente as dificuldades que essas pessoas tinham de falar sobre o assunto. Muitas sequer conseguiam, em razão do que Freud classificou de ‘neurose traumática’”, esclarece Fabrício. Esse aspecto fica ainda mais patente a partir da comparação com a fala dos militares. Além de obviamente justificarem e legitimarem as ações cometidas ao longo da ditadura, eles mantêm um discurso ordenado, linear e repleto de detalhes. “Para eles, que não foram vítimas, mas autores da violência, tudo é funcional. Suas narrativas assumem características de uma linguagem técnica, visto que não é orientada pelo trauma”, assinala.
Resgate Ao se contraporem à versão oficial, livros como Retrato calado e Memórias do esquecimento contribuem para resgatar um período importante da histórica recente do Brasil, na opinião de Fabrício Flores Fernandes, autor da tese de doutorado que analisou as obras sob a perspectiva da literatura de testemunho. Por mais incrível que possa parecer, segundo ele, trata-se de um pedaço da história que ainda é desconhecido por muita gente. “Ainda hoje, vemos pessoas escrevendo para os jornais para manifestar saudade em relação à ditadura. Elas incorporam o discurso dos militares, que usavam o crescimento econômico para justificar suas ações. Entretanto, muitos não sabem o que acontecia nos porões dos órgãos da repressão”, infere.
Para ilustrar essa percepção, Fabrício relata uma experiência pessoal, ocorrida recentemente. Ao participar de uma lista de discussão sobre a ditadura mantida por um dos maiores portais de informação do país, ele deparou com pessoas de vários estados que não somente defendiam o regime militar, como negavam que tivesse existido tortura no período. “Infelizmente, a compreensão de que a ditadura foi um mal não é consensual. Ela só encontra guarida entre intelectuais, artistas e alguns poucos grupos”, considera.
Currículos Flávio Tavares nasceu no Rio Grande do Sul em 1934 e foi o principal colunista político do jornal Última Hora, cujo proprietário era Samuel Wainer. Preso em 1967 pela ditadura militar, foi expulso do país em 1969. Ele integrava o grupo de 15 presos políticos trocados pelo embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, que fora seqüestrado por membros do MR-8. Entre os executores da ação estavam o atual secretário de Comunicação Social do governo Lula, Franklin Martins, e o atual deputado federal Fernando Gabeira. Tavares viveu dez anos no exílio. Foi correspondente internacional do jornal Excelsior (México), do Estado de S. Paulo na Argentina e na Espanha e da Folha de S. Paulo em Buenos Aires. Em 2000, ganhou o Prêmio Jabuti com o livro Memórias do esquecimento, lançado no ano anterior.
Luiz Roberto Salinas Fortes nasceu em Araraquara, interior de São Paulo, em 1937. Foi professor de filosofia da Universidade de São Paulo (USP). Considerado um dos maiores especialistas brasileiros na obra de Jean-Jacques Rousseau, Fortes não foi propriamente um militante político na época da ditadura, mas sempre se posicionou contra o regime de exceção. Foi preso e torturado. O intelectual morreu em 1987. Seu livro, portanto, foi editado postumamente.
Excertos
“Nu, completamente nu. Obrigaram o paciente a sentar no chão. Amarraram-me as mãos, que protegem com uma cobertura de pano, uma contra a outra. Forçam-no a manter os joelhos unidos, dobrados contra o peito e envolvidos pelos braços amarrados”
(Retrato calado)
“A dor que continua doendo até hoje e que vai acabar por me matar se irrealiza, transmuda-se em simples ‘ocorrência’ equívoca, suscetível a uma infinidade de interpretações, de versões das mais arbitrárias, embora a dor que vai me matar continue doendo, bem presente no meu corpo, ferida aberta latejando na memória”
(Retrato calado)
“São 30 anos que esperei para escrever e contar. Lutei com a necessidade de dizer e a absoluta impossibilidade de escrever”
(Memórias do esquecimento)
“Agora que chego ao fim, pergunto-me o que me angustiou mais: ter vivido o que vivi ou ter rememorado, aqui, tudo o que quis esquecer”
(Memórias do esquecimento)