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DNA da riqueza paulista
Tese revela como trajetória da
família
Lacerda Franco forjou a ‘locomotiva do Brasil’
Tese
desenvolvida por Gustavo Pereira da Silva junto ao Instituto
de Economia (IE) da Unicamp procura elucidar como se deu a
formação, a acumulação e a diversificação da riqueza dos membros
da família Lacerda Franco durante o século XIX. Estudando
a trajetória desta família, o autor procura desvendar a dinâmica
da riqueza paulista no século que antecedeu a transformação
da São Paulo do café na capital industrial do Brasil. Para
ele, os Lacerda Franco testemunham o que acontecia na província
em uma época: “Parti do micro para entender o macro”, diz.
A pesquisa documental foi realizada no Arquivo Público do
Estado de São Paulo e nos arquivos da Associação Comercial
de Santos e das fazendas Montevidéo (Araras/SP) e Paraizo
(São Carlos/SP), ambas pertencentes a descendentes da família.
Silva recebeu orientação da professora Lígia Maria Osório
Silva e contou com financiamento da Fapesp.
Criando
porcos, gado, cavalos, mulas, produzindo gêneros básicos da
alimentação paulista como arroz, feijão, milho – e inclusive
cachaça – para o mercado interno, dinastias nacionais chegaram
à exportação de açúcar e de café que as levaram à acumulação
de capitais que alavancariam os primórdios da indústria paulista,
transformando São Paulo na “locomotiva do Brasil”. Uma destas
jornadas iniciou-se nos princípios de 1800, nas cercanias
da vila de São Paulo, nas então vilas de Atibaia e Jundiaí,
em decorrência da união matrimonial de duas famílias, os Franco
de Camargo com os Lacerda Guimarães, dando origem à dinastia
dos Lacerda Franco. Nessa época, os Lacerda Franco produziam
e comercializavam seus gêneros essencialmente no mercado interno.
Mas, já em meados da primeira metade do século XIX, o capital
acumulado nessas atividades passa a ser convertido em canaviais.
Foi o que fez o Alferes Franco quando migrou rumo às terras
de Mogi Mirim e posteriormente Limeira, onde se fixou.
A circunstância
de o açúcar constituir o principal produto de exportação da
Província levou o Alferes à formação de um patrimônio de propriedades
agrícolas na própria vila de Limeira e na vizinha Rio Claro.
Com cuidadosa e calculada condução dos matrimônios dos herdeiros,
a família controlava a entrada de novos membros de forma a
ampliar ou pelo menos manter o capital acumulado, o que era
conseguido com a promoção de casamentos entre primos e mesmo
entre tios e sobrinhas, hábito depois progressivamente abandonado
por causa de problemas genéticos. Em decorrência de uniões
conjugais e concomitante aumento de capital e patrimônio,
parte do clã dos Lacerda Franco que havia permanecido na vila
de Jundiaí passou a migrar para a região que seria depois
denominada de Oeste Paulista, já então formada por vilas açucareiras.
Lá se
tornaram proprietários rurais e de escravos, em uma sociedade
marcada pelo uso extensivo da terra e intensivo da mão de
obra africana. A família exerceu papel fundamental no desenvolvimento
de algumas localidades como Limeira e Araras. Essas futuras
cidades assistiram a concentração de poder econômico, político,
militar e religioso dos Lacerda Franco na condição de senhores
de terras e escravos, vereadores, delegados de polícia e vigário.
Na segunda
metade do século XIX ocorreu a transição das lavouras paulistas
da cana para o café ao longo do Oeste Paulista (região hoje
coberta pela via Anhanguera). A elevada demanda internacional
da bebida dinamizava economicamente São Paulo no Império e
impunha a busca de novas terras, mais distantes de Santos,
aumentando os custos de transporte. Simultaneamente, o fim
do tráfico negreiro agravou a escassez de mão de obra. As
famílias dos produtores paulistas enfrentam esses obstáculos
utilizando os capitais, até então acumulados, na construção
no Oeste Paulista das ferrovias necessárias, valendo-se da
constituição de sociedades anônimas. A imigração europeia
subsidiada introduziu o trabalho assalariado e o governo provincial,
respondendo a uma demanda da elite cafeeira, encarregava-se
de financiar “os intentos orquestrados pelos cafeicultores”,
diz o autor do estudo.
Também
durante a segunda metade do século XIX o associativismo marcou
os Lacerda Franco. A riqueza familiar era reorganizada através
de matrimônios e de heranças disponibilizando capitais que
passaram a ser empregados na formação de sociedades que tinham
como característica predominante a preferência pela associação
entre familiares. Foi assim que surgiu a Lacerda & Irmãos
– sociedade agrícola que produzia café; a J. F. de Lacerda
& Cia. – casa comissária e exportadora de café; a Lacerda,
Camargo & Cia. – firma industrial que importava e produzia
máquinas para outras indústrias; e o Banco União de São Paulo
– que, entre seus ativos, contava com uma fábrica têxtil,
a atual Votorantim. Essas empresas atendiam à crescente economia
cafeeira paulista e às demandas da nova organização social.
Exportação e importação
A casa comissária era o principal dos empreendimentos dos
Lacerda Franco por englobar o maior número de familiares e
por se constituir fonte de recursos e expertise aos outros
negócios da família. Inicialmente, a casa comercializava diferentes
gêneros agrícolas, como café, comprando dos produtores paulistas
e vendendo aos exportadores, em geral estrangeiros, no porto
de Santos. Mas, simultaneamente, adquiria de importadores
bens que revendia a fazendeiros e lojistas que comercializavam
esses produtos no varejo. Assim, a comissária atuava como
intermediária na exportação agrícola e na importação de bebidas,
móveis, sal, cal, vidro, ferro, papel, tintas, enfim tudo
que não era produzido no país.
Todavia,
a casa se distinguiu das congêneres nacionais ao expandir
suas atividades tornando-se também uma firma exportadora.
Segundo Gustavo, “a J. F. de Lacerda & Cia. merece destaque
por englobar atividades exercidas pelos demais empreendimentos
porque, como casa exportadora, mantinha laços com firmas estrangeiras
que lhe possibilitavam a importação de matérias-primas – como
ferro aço e vidro – necessárias a outras empresas do grupo.
Além disso, importava máquinas, equipamentos e bens consumidos
pela elite”.
Ele explica que, com a exportação
direta, a casa comissária livrava-se da intermediação das
exportadoras de café estrangeiras, além de importar diretamente
bens de consumo, o que lhe aumentava os lucros. Além de tudo,
a posição de destaque de membros da família na sociedade cafeeira
facilitava a obtenção de empréstimos bancários necessários
à formação do capital de giro. O sucesso da empreitada se
consolidou com a abertura, em 1884, de uma filial da J. F.
de Lacerda & Cia. na cidade portuária francesa do Hâvre.
Ao se transformar em uma comissária e exportadora, a casa
dos Lacerda Franco, que mantinha com os produtores do interior
amplas relações, inclusive facilitadas por vínculos familiares,
tornou-se a maior casa exportadora de café pelo porto de Santos
entre 1885/1886, superando as concorrentes, na maioria estrangeiras,
ainda que por um pequeno período.
Para o pesquisador, a elevada
lucratividade da casa comissária levou um dos seus membros
a participar da constituição do Banco União de São Paulo,
em 1890, um dos poucos bancos com o privilégio de emitir moeda
no início da República. Outros sócios da empresa fundaram
a Lacerda, Camargo & Cia que importava e produzia máquinas
no Brasil. Os lucros revertiam para a própria economia paulista
ao serem investidos em ações de ferrovias, bancos, empresas
de serviços públicos, além de imóveis e novos cafezais.
Gustavo
Pereira da Silva explica que em um mundo pós-Revolução Industrial
a demanda por café por parte dos trabalhadores crescia na
mesma proporção que a necessidade de matérias-primas. Nesse
mundo novo, aberto às novas possibilidades e à livre iniciativa,
o café constituía o estimulante perfeito às novas necessidades
do homem moderno, dinâmico e produtivo. O capitalismo industrial
que movia as sociedades centrais era o mesmo que engatinhava
na ex-colônia portuguesa. Após a Abolição, a formação de um
mercado de trabalho e consumidor estabelecia as bases para
o capitalismo brasileiro. Para ele, a pujança e diversificação
dos investimentos da família Lacerda Franco dão mostras da
força do capitalismo nacional no século XIX, na figura dos
representantes do grande capital cafeeiro, através de figuras
que, apesar terem seus capitais originários da lavoura, embrenharam-se
nos mais diversos empreendimentos ligados à produção e comércio,
possibilitando a formação de uma riqueza portentosa e diversificada,
conforme permitiram apreender as análises dos vários documentos
da fazenda Montevidéo e Paraizo, encontrando-se esta última
ainda nas mãos dos Lacerda Franco. Sobre a dimensão da riqueza
acumulada pelos cafeicultores, o autor lembra que o café tornou-se
o primeiro produto da pauta de exportação brasileira por volta
de 1830 e só perdeu essa posição depois de 1950, ocupando
o primeiro lugar na economia brasileira por cerca de 130 anos.
Devidamente dimensionadas
as diferenças das épocas, o trabalho suscita ao autor algumas
comparações. O capital é sempre canalizado para a atividade
de maior lucratividade e isso explica a substituição de canaviais
por cafezais no século XIX, bem como a inversão ocorrida no
século passado. As associações de capitais, familiares ou
não, visam à ampliação de mercados e dos domínios econômicos
e políticos. Antes isso se fazia com a aquisição de terras
e escravos, o concurso das uniões familiares e utilização
de heranças. À semelhança da dinastia dos Lacerda Franco na
São Paulo do café, ainda hoje, grandes grupos familiares exercem
elevado poder na economia nacional.
Publicação
Tese: “Uma
dinastia do capital nacional: a formação da riqueza dos Lacerda
Franco e a diversificação da economia cafeeira paulista (1803
a 1897)”
Autor: Gustavo Pereira da Silva
Orientadora: Lígia Maria Osório Silva
Unidade: Instituto de Economia (IE)
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