O receituário de Canuto
ISABEL
GARDENAL
A primeira lição que se deve aprender
com a crise econômica é que não se pode brincar com as bolhas
e com os ciclos de euforia que acompanham processos de alavancagem
excessiva do sistema financeiro. A segunda lição é que uma
janela de oportunidade está se abrindo no mundo de desenvolvimento
para se incorporar a redução da pobreza como um objetivo
da política econômica, dada a importância assumida pela
dinâmica de expansão dos mercados domésticos. Estas duas
receitas partiram do vice-presidente do Banco Mundial para
Redução da Pobreza e Gestão Econômica, Otaviano Canuto,
que concedeu uma entrevista especial para o Jornal da Unicamp
no contexto de um workshop sobre economias emergentes e
a crise econômica global, realizado no último dia 9 no auditório
do Instituto de Economia (IE). Segundo o economista, o Brasil
soube responder bem à crise por não ter incorrido em excessos
financeiros no período anterior e por dispor de margem de
manobra fiscal, monetária e creditícia possibilitada pela
gestão macroeconômica responsável dos anos anteriores. Otaviano
Canuto foi professor do IE da Unicamp até 2003, deixando-a
para assumir a Secretaria de Assuntos Internacionais do
Ministério da Fazenda. Depois foi diretor-executivo no Board
do Banco Mundial, representando o Brasil e mais sete países.
Em seguida, foi vice-presidente do Banco Interamericano
de Desenvolvimento e, desde 2009, tem sido um dos vice-presidentes
do Banco Mundial. Leia sua entrevista a seguir.
Jornal da Unicamp
– Qual tem sido a ajuda fornecida pelo Banco Mundial para
os países mais pobres? E para aqueles que estão em crise?
Otaviano Canuto – O Banco Mundial tem um trabalho
de parceria e de ajuda de várias formas. O tipo de cooperação
do Banco com cada país é definido em estratégias individualizadas.
Para um país como o Brasil, não é o volume dos empréstimos
fornecidos que é o essencial hoje em dia, mas principalmente
o tipo de operação que acompanha tais recursos. Por exemplo,
no período mais recente, a ênfase das operações do Banco
Mundial no Brasil tem sido com Estados e municípios, mais
do que com o Governo Federal, porque é no caso dos primeiros
onde existe uma maior necessidade hoje de capacitação técnica
e gerencial. Logo, a cooperação técnica facilitada por aquelas
operações de empréstimos tornou-se um dos principais meios
pelos quais o Banco pode adicionar valor e contribuir para
o desenvolvimento no país. O Banco traz experiência de outros
países e, na outra direção, leva a esses a experiência do
Brasil.
Esse é o caso também de
países como a Rússia, a Índia ou a China. Agora, é importante
diferenciar o caso desses países – que são de renda média
– dos países de renda baixa. Para os países de renda baixa,
o Banco Mundial opera sobretudo com empréstimos altamente
subsidiados ou doações. Aí o dinheiro importa mais do que
para os países de renda média. E o Banco tem alguns critérios
que premiam o bom desempenho macro, gerencial, de qualidade
de governança no país e sua ênfase em políticas de redução
da pobreza. Tudo isso faz parte de um conjunto de critérios
que definem quanto dos recursos disponíveis o Banco coloca
individualmente para os países.
JU – Como o
Banco Mundial enxerga o Brasil neste momento?
Canuto
– O Brasil é visto como um parceiro fundamental
naquele duplo sentido. O Banco Mundial tem que ser bem mais
seletivo naquilo que ele oferece para o país, porque o Brasil
adquiriu capacidade em muitas áreas. Também é um parceiro
no sentido inverso, porque o Banco aprende muito com o Brasil.
O sucesso brasileiro, nos últimos anos, em termos de redução
da pobreza e de melhora no perfil de distribuição da renda,
faz do país uma fonte de aprendizagem muito importante para
o restante do mundo, para outros países em desenvolvimento.
O Banco Mundial serve como uma espécie de beija-flor, polinizando
o conhecimento.
JU – Para situar,
quando se dá o marco do crescimento econômico do Brasil?
Canuto – O que mais se realça é definitivamente
a sedimentação da estabilidade macroeconômica, combinada
com políticas agressivas de redução da pobreza. Esse é o
marco distintivo da política econômica brasileira.
JU – O aumento
do PIB menor do que o esperado para 2011 vem sendo justificado
pelo Governo Federal como decorrente da crise europeia.
O senhor concorda com isso?
Canuto – Concordo com o governo nos seguintes termos:
o cenário nas economias avançadas não tem sido favorável
a um crescimento mais rápido da economia brasileira; ao
mesmo tempo, se sabe que as dificuldades para um crescimento
mais acelerado do PIB no Brasil se deve também a fatores
domésticos. Há problemas e obstáculos na preservação da
competitividade da indústria brasileira e nos aumentos de
produtividade nos diversos setores, que muito dependem das
ações de políticas no próprio país. Não é tudo culpa do
resto do mundo.
JU – O que precisa
ser feito para que o PIB retome o seu crescimento?
Canuto – Acho que, para além do que se faz hoje,
é avançar mais rapidamente na direção de melhor qualidade
na educação. Avançamos muito no lado quantitativo – no acesso
–, mas falta melhorar na qualidade; cabe uma revisão dos
gastos públicos para encontrar espaço para o aumento da
parcela disponível para o investimento em infraestrutura;
e ajudaria muito uma reforma tributária que fosse inteligente
o suficiente para diminuir o custo tributário para empresas
e que fosse mais racional e melhorasse a competitividade
do sistema produtivo brasileiro.
JU – É sabido
que boa parte das fontes de riqueza do Brasil advém das
commodities. Essa fonte não está muito sujeita a riscos
e a intempéries? O que deve ser feito para que o Brasil
entre de vez para o ciclo virtuoso?
Canuto – Eu diria duas coisas, ambas aproveitando
a oportunidade aberta pelo momento favorável no preço de
commodities. Uma delas é aproveitar o período de bonança
para construir reservas para a época de vacas magras e a
outra é utilizar parte desse ganho, do período de bonança,
para criar outros ativos na economia, tais como educação,
infraestrutura e capacidade em outros setores, diversificando
a economia. Temos que aproveitar para a acumulação de capital
e para formar reservas fiscais e de divisas que serão necessárias
nos momentos menos favoráveis.
JU – Como situa
a inovação do Brasil face à economia e qual é a participação
da universidade?
Canuto – A inovação é fundamental em qualquer experiência
de desenvolvimento. O Brasil apresenta um paradoxo. Quando
você olha a pesquisa básica, ele até que sai bem na fotografia,
isso quando se trata da produção científica. As prateleiras
das universidades estão cheias de bons resultados de pesquisa
científica aplicada. Porém, na outra ponta, quando chega
o momento da absorção criativa dessa tecnologia em nível
empresarial, aí a fotografia do país é completamente oposta.
Então temos essa esquizofrenia: de um lado, uma pesquisa
básica que vai muito bem e, do outro lado, a pesquisa incorporada
no meio empresarial muito aquém do que seria o ideal. Para
resolver esse paradoxo, deve haver uma maior aproximação
entre os dois universos porque também não serve ter uma
universidade fechada em si mesma, fazendo produção científica
de qualidade se ela não se desdobra em absorção pelo aparelho
produtivo.
JU – Nacionalmente,
a mão de obra no setor industrial está diminuindo. Dos países
que compõem o Brics, qual deles, depois dos asiáticos, tem
maior capacidade de resiliência?
Canuto – Na indústria manufatureira, fora da Ásia,
poucos países estão conseguindo manter dinamismo no emprego
industrial. Isso não quer dizer que esses outros países
estejam em situação de desemprego elevado, mas a mão de
obra tem sido absorvida em outras atividades, como é o caso
do Brasil. Contudo, a tendência à absorção da mão de obra
pela indústria tem sido decrescente e concentrada principalmente
na Ásia, algo que já está colocando desafios para o restante
do mundo.
JU – Estudos
realizados na Unicamp nos últimos anos já davam conta de
que o setor industrial brasileiro enfrentava uma forte retração,
fato que se comprovou ao longo de 2011. A que se atribui
essa desindustrialização e em que medida acredita que isso
pode interferir no crescimento do país?
Canuto – Isso se atribui à perda de competitividade
em relação a outros produtores industriais decorrente da
valorização cambial (mas não apenas), do aumento dos custos
e da redução na margem de setores industriais, por conta
dos preços de serviços que vão subindo junto com o enriquecimento
que tem acompanhado os elevados preços de commodities. O
setor industrial não vinculado a recursos naturais está
sendo imprensado, dado que seus preços vêm ficando para
trás em relação aos demais, e, além disso, a produtividade
industrial brasileira vem aumentando em ritmo lento, comparativamente
aos demais países emergentes, aos novos concorrentes do
mercado. Não se deve permitir que esse longo boom, possibilitado
pelos recursos naturais, leve ao desaparecimento completo
da capacidade na indústria. Paralelamente ao longo boom,
o país tem que garantir, a meu juízo, que se conquiste e
se preserve competitividade em segmentos industriais com
requisitos de tecnologia, de educação e de mão de obra qualificada.
JU – Quais são
as perspectivas de crescimento do PIB?
Canuto – As perspectivas do crescimento do PIB
são boas, enquanto se mantiver esse longo boom de preço
de commodities. Mas os riscos e o foco maior de interesse
dizem mais respeito ao país depois desse boom. O importante
é aproveitar o período de bonança para dar um salto no país
para, quando chegar o momento em que acabar o boom de recursos
naturais, o país possa estar num outro patamar, no tocante
à educação, à capacidade local de absorção tecnológica,
à infraestrutura e à competitividade em segmentos produtivos
intensivos em tecnologia e mão de obra qualificada.
JU – O
que os países têm a aprender com essa crise?
Canuto – A primeira lição é que não se pode brincar
com as bolhas e com os ciclos de euforia que acompanham
processos de alavancagem excessiva do sistema financeiro.
Essa é uma lição claríssima. O Brasil soube responder bem
à crise por não ter incorrido em excessos financeiros no
período anterior e por dispor de margem de manobra fiscal,
monetária e creditícia possibilitada pela gestão macroeconômica
responsável dos anos anteriores. A segunda lição é que uma
janela de oportunidade está se abrindo no mundo de desenvolvimento
para se incorporar a redução da pobreza como um objetivo
da política econômica, dada a importância assumida pela
dinâmica de expansão dos mercados domésticos.