Untitled Document
PORTAL UNICAMP
4
AGENDA UNICAMP
3
VERSÃO PDF
2
EDIÇÕES ANTERIORES
1
 
Untitled Document
 

 

Manual do improviso

MARIA ALICE DA CRUZ


A tese “Improvisando em Música Popular: um estudo sobre o choro, o frevo e o baião e sua relação com a música instrumental brasileira”, de autoria do multi-instrumentista Almir Côrtes, oferece um conjunto de sugestões para a utilização de elementos musicais destes três gêneros na prática da improvisação idiomática (específica de cada gênero). O material deve auxiliar estudantes e novos profissionais ligados à música instrumental brasileira, na qual a improvisação é prática comum. “Como os músicos da geração atual ainda bebem da fonte deixada pelos precursores do choro, do frevo e do baião, a proposta é oferecer aos jovens instrumentistas possibilidades que levem a conhecer melhor estes gêneros e adquirir ferramentas para improvisar sobre eles”, explica Côrtes. A tese foi orientada pelo professor Esdras Rodrigues Silva, do Instituto de Artes (IA) da Unicamp.

Por meio da audição, da execução, da transcrição e da análise de um repertório selecionado, Côrtes demonstra que a “música instrumental” produzida no Brasil no período que compreende as décadas de 1970 a 1990 utiliza elementos musicais (melódicos, rítmicos e de articulação) advindos do período de 1920 a 1950, próximo da chamada “época de ouro” do rádio. Nessa época, instrumentistas e compositores como Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Levino Ferreira, José Menezes, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira estavam em plena atuação dentro do circuito rádio-disco.

De acordo com Côrtes, a proposta de escrever um “passo a passo” para o desenvolvimento da improvisação idiomática sobre o choro, o frevo e o baião surgiu da preocupação com a carência deste tipo de material na área de educação musical no Brasil. O autor começa sugerindo linhas melódicas simples, com poucas notas, aumentando o nível de dificuldade e ampliando as possibilidades com o acréscimo de elementos recorrentes nos gêneros estudados. O ideal, segundo o instrumentista, é não obrigar o aluno ou o instrumentista a seguir uma metodologia rígida, mas estimulá-los a desenvolver sua própria forma de aperfeiçoar a improvisação referente aos três gêneros estudados. “Eu pego progressões harmônicas dos gêneros, destaco os principais elementos rítmico-melódicos e, a partir deles, ofereço sugestões para a prática. Mostro que existem várias formas de conectar os elementos e realizar variações com os mesmos”, exemplifica.

Diferentemente da composição, que pode ser repensada, a improvisação acontece em tempo real, o que exige do músico um conhecimento amplo de procedimentos musicais, padrões melódicos e rítmicos que fazem parte do vocabulário de um determinado gênero. Conforme Côrtes, o instrumentista incorpora esses elementos e improvisa com eles, realizando combinações diferentes. É preciso investir mais em trabalhos acadêmicos voltados para a improvisação no Brasil, na opinião do autor. “Quanto mais esses jovens músicos conhecerem a música daquela época, mais liberdade terão para dialogar com seus elementos musicais, ao invés de reproduzir literalmente o que já foi feito”, acrescenta.

A observação de aulas, entrevistas com professores e estudo sobre a metodologia desenvolvida para o ensino do jazz durante doutorado-sanduíche no Departamento de Jazz da Universidade da Indiana, nos Estados Unidos, ajudaram a enriquecer o passo a passo preparado por Côrtes. Segundo o autor, na universidade norte-americana, a improvisação é realizada em disciplinas obrigatórias, que se dividem em improvisação 1, 2, 3 e assim por diante. No curso de música da Unicamp, o estudo da improvisação geralmente se dá em aulas individuais de instrumentos ou dentro da disciplina “prática de conjunto”, quando os alunos se reúnem para desenvolver trabalhos em grupo. “Observa-se que aos poucos algumas universidades e os professores estão desenvolvendo pesquisas e voltando sua atenção para a improvisação idiomática no Brasil”, pontua. O artista espera que a partir dessas sugestões ocorram alguns desdobramentos, como o desenvolvimento de métodos e a elaboração de disciplinas ligadas à improvisação.

O instrumentista também reflete a respeito do ambiente em que a improvisação será executada. Ao contrário da composição, esta prática, segundo ele, depende também da interação com o público. “Procuro falar de coisas que estão fora do ambiente acadêmico. Juntar toda essa atividade metódica como ato de improvisar em si. A necessidade de se arriscar, cometer erros, experimentar caminhos diferentes, a interação que sua prática exerce com o ambiente, entre outros. Porque a improvisação não é composta apenas pelos elementos musicais que o instrumentista dispõe, mas também da sua relação com a audiência: o bar, teatro, o que o público espera ouvir. O músico interage com isso tudo”, acrescenta.

Tradição
A tendência ao nacionalismo “folclorizante” evidenciada na política populista do segundo período de governo de Getúlio Vargas (1951-1954) desvalorizava a música contemporânea, elegendo determinados gêneros como representativos do que seria a “autêntica música nacional”, segundo Côrtes. Entre os gêneros considerados autênticos estavam os ligados à “época de ouro do rádio”. Neste período, o rádio representava o maior meio de comunicação de massa, a indústria fonográfica estava consolidada e os diferentes estilos musicais precisavam ser claramente denominados, a fim de facilitar sua assimilação e venda ao grande público. Apesar de toda a atuação de músicos e intelectuais em prol do que seria a “autêntica música brasileira”, tal predomínio passa a ser questionado em virtude, principalmente, do surgimento da bossa nova, que se impõe como estilo moderno, justamente em uma época na qual vigorava uma política voltada para o desenvolvimento e modernização nacional, promovida pelo governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960).

Por estabelecer um novo parâmetro de escuta, devido principalmente ao tratamento harmônico-melódico diferenciado e a estilização do samba, a bossa nova é considerada um divisor de águas, demarcando os estilos “tradicional” e “moderno” de se fazer música no Brasil. Nas décadas de 1970 e 1980, além do samba, outros gêneros tradicionais como o frevo, o choro e o baião passam por um processo similar de “atualização” ou transformação, segundo Côrtes.

Mudam as formações, inserem-se novos instrumentos, como bateria e guitarra elétrica, elementos do jazz e do rock são incorporados, mas o diálogo com a tradição dos mestres é inevitável. “As novas gerações dialogam com o que está presente hoje, como elementos do jazz, da música erudita, da música afro-cubana, entre outros, mas quando querem fazer improvisações que remetam ao que é considerado idiomático em relação ao choro, o frevo e o baião, vão buscar referências naquele período”, acrescenta Côrtes. Os elementos dos “áureos tempos da música brasileira”, estão presentes atualmente no choro de Nailor Proveta, no frevo de Antonio Nóbrega e no baião de Dominguinhos. Ao mesmo tempo, são recorrentes também em interpretações de nomes ligados à música instrumental contemporânea, como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Guinga, Dori Caymmi, Victor Assis Brasil, Spock e Heraldo do Monte.

Antes de proceder à transcrição e análise do repertório, Côrtes já trazia na bagagem a vivência desses gêneros populares. Ele gravou dois discos, um dedicado à música instrumental brasileira e outro dedicado à canção, gravado em parceria com a cantora paulistana Bel Dias. Durante seu estudo, Côrtes mostra como algumas composições mais experimentais fogem um pouco do choro considerado tradicional. “Tem os tradicionalistas que vão dizer que choro é somente aquele produzido por Pixinguinha, Jacob do Bandolim e que a música feita por Guinga e Hermeto Pascoal hoje não é mais choro. É preciso entender que tais compositores trabalham numa perspectiva contemporânea que dialoga com o tradicional”. Este experimentalismo já tinha acontecido pelas mãos de Radamés Gnattali, que propunha a mistura do choro e a música erudita e utilizava guitarra elétrica e bateria em seu grupo. Em seguida, segundo Côrtes, surge a banda A Cor do Som, também utilizando instrumentos elétricos e misturando o choro com procedimentos do rock e da black music.

 

O Recôncavo e a mistura de gênero

Côrtes lembra que mesmo na época em que a música popular não estava institucionalizada dentro das universidades, muitos músicos já transitavam entre o popular e o erudito. Ele mesmo afirma que quando estava cursando violão clássico na Universidade Federal da Bahia (UFBA), dedicava-se também a trabalhos de música popular tocando guitarra.

O multi-instrumentista fala com propriedade sobre a improvisação idiomática, pois conhece bem esse terreno. Vem do Recôncavo Baiano essa experiência em misturar gêneros. Em Santo Antônio de Jesus (BA), o menino de 12 anos já se animava a experimentar alguns acordes em rodas de amigos e tocando guitarra em bandas locais. Ao chegar à UFBA, dedica-se à formação em música erudita, mas ao mesmo tempo se envolve em projetos de música instrumental popular, começando pelo choro, presente na Bahia na época de sua formação. Em seguida, empresta seus dedos mágicos ao trio elétrico, executando frevos, baiões e choros, inspirado pela musicalidade de Armandinho, Dodô e Osmar. São esses fazeres musicais que o conduzem ao bandolim e ao cavaquinho, encontrando posteriormente a Unicamp, onde dedica sua dissertação de mestrado a Jacob do Bandolim e, por último, sua tese de doutorado à improvisação, que o permite ir mais fundo nas combinações de gêneros “tradicionais” e outras musicalidades dentro do universo da música instrumental brasileira.

 

Publicação
Tese:
“Improvisando em música popular: um estudo sobre o choro, o frevo e o baião e sua relação com a música instrumental brasileira”
Autor: Almir Côrtes
Orientador: Esdras Rodrigues Silva
Unidade: Instituto de Artes (IA)

 




 
Untitled Document
 
Untitled Document
Jornal da Unicamp - Universidade Estadual de Campinas / ASCOM - Assessoria de Comunicação e Imprensa
e-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP