O que há de melhor em uma democracia é que se deve obedecer à lei ao mesmo tempo em que se tem o direito de não concordar com ela. Do contrário, leis seriam eternas. Se são modificadas, é porque há discussão pública e avaliação da sua pertinência e adequação.
E, no entanto, bloquear a discussão é o que fazem sistematicamente as Forças Armadas quando o assunto é assassinato de presos e prática de tortura durante a ditadura.
A única declaração oficial é sempre a de que a Lei de Anistia de 1979 pôs um ponto final no debate.
Cabe perguntar por que e até quando as Forças Armadas vão carregar nas costas os crimes da ditadura. Sua recusa ao debate é tanto mais incompreensível porque é um tiro no pé: tem como única conseqüência prolongar uma confusão entre Forças Armadas e violência de Estado. Deveria ser do seu maior interesse mostrar que não se confundem com tortura e assassinato de presos.
A verdade só virá à tona quando se deixar de atribuir a culpa ao Estado como entidade abstrata. Não são todos os militares que torturaram e assassinaram. Cabe identificar quem praticou tais atos.
Esse é o sentido de uma ação declaratória de responsabilidade civil por tortura proposta por cinco membros de uma mesma família contra um coronel reformado do Exército. O objetivo da ação é o de declarar a responsabilidade do réu pela prática de tortura, e não de condená-lo.
É verdade que, se a ação tiver êxito, nada impedirá que os autores ingressem posteriormente com uma ação condenatória. Mas, independentemente de possíveis punições, o mais importante no momento é identificar e responsabilizar indivíduos. Separar a declaração de responsabilidade de possíveis punições é uma estratégia jurídica de vistas largas. Mostra que é possível buscar a verdade sem se enredar no bloqueio antidemocrático da discussão que fazem hoje as Forças Armadas.
Trazer a verdade à tona tem conseqüências de grande alcance. Uma das mais importantes é a de que, distinguindo militares de criminosos, será possível finalmente retirar de circulação a expressão ditadura “militar”.
Não só porque as Forças Armadas vão poder enfim olhar a sociedade brasileira de frente outra vez, sem serem confundidas com arbítrio e violência, mas também porque deixar para trás a denominação “ditadura militar” vai revelar com clareza os muito mais numerosos beneficiários e colaboradores não-militares da ditadura. Que também não foram ainda declarados responsáveis por nada na ditadura que sustentaram com tanto zelo e empenho.
Marcos Nobre é professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH). Este artigo foi publicado na Folha de S. Paulo.