Albert
Camus brincava com uma situação parecida. Sonhava
com um tempo em que poderia escrever tudo o que lhe viesse à
cabeça. Camus não chegou a esse tempo abençoado.
Morreu antes. Mas eu tive sorte. Fui poupado. E, contrariando
o agouro sombrio do meu conhecido, depois de dez anos continuo
vivo. Foi necessário que eu deixasse a casca dos rigores
da vida acadêmica para que eu me transformasse em um escritor,
escrevendo tudo o que me vem à cabeça
Rubem
Alves
Tudo o que veio à cabeça da professora Vilma Clóris
de Carvalho desde o momento em que voltou a sua terra natal,
Recife, após aposentar-se do departamento de Anatomia
do Instituto de Biologia da Unicamp, em 1996, está no
livro Vivendo sem Calendário, concebido durante caminhadas
de 6 quilômetros pela Praia da Piedade, ao som do mar,
no barulho do vento e escrito num apartamento de um prédio
que tem os portões instalados diretamente na areia da
praia. O livro é prefaciado pelo professor, psicanalista
e escritor Rubem Alves e editado pela Editora Komedi.
No
momento em que começara a escrever passagens de sua vida
que vieram a compor Vivendo sem Calendário, Vilma tentava
se acostumar com a idéia de ser novamente cidadã
pernambucana, após passar 32 anos em Campinas zelando
pela formação de 3 mil médicos hoje certamente
no exercício de sua profissão.
Viver
sem Calendário é estar livre para fazer as coisas
que se tem vontade na hora em que estiver disponível.
Longe da entrega exigida pela academia, período
que a autora menciona com muito carinho em seu livro, foi possível
reunir fragmentos da infância à juventude até
o momento da aposentadoria e da readaptação a
seu povo, um povo que, durante 32 anos, recebeu suas visitas
somente no final do ano. Pouco tempo para ver o que se
tornou o Grande Recife onde passou a infância e
graduou-se em medicina pela Universidade Federal de Pernambuco,
afirma Vilma. Eu ia para lá para passar o fim de ano
com minha mãe, lembra.
Parte
da história de vida da professora de neuroanatomia Vilma
Clóris de Carvalho, por diversas vezes convidada a assumir
a chefia do Departamento de Anatomia, é contada sem ordem
cronológica. Os cutbacks (em cinematografia um corte
do presente para o passado) são constantes na publicação
da médica e fazem parte da política da liberdade
de viver sem calendário, pois as coisas eram escritas
à medida que a autora se lembrava de um marco importante.
No livro lembro fatos de minha vida que foram pinçados,
explica.Como trabalhou muito tempo com sistema neurológico,
a autora fala sobre a memória, o pensamento organizado
da mente, sem ares de catedrática. Falo como uma
pessoa que faz uma reflexão.. Faz parte da obra
de Vilma, escrita sem compromisso, momentos vivenciados com
alunos e colegas de trabalho e fatos ocorridos no Instituto
de Biologia.
Um
trecho do texto escrito em primeira pessoa para a quarta capa
do livro exprime o que é viver sem calendário
e aposentar-se sem medo da solidão.
Nessa
fase de retorno, de adaptação, sou, freqüentemente,
um tumulto, incluindo reencontros, reposições,
mudanças(...). Tentando nada fazer, me dou conta de que
para isso é preciso pegar o jeito e percebo que estou
sem aptidão para tal. Foi tempo demais fazendo, cumprindo
e apresentando a obra resultante. Agora tento me exercitar para
não dever nada. Esvaziar a cabeça. Quero criar
espaço para desfrutar mais as horas.
Para
tirar Vilma Clóris de Carvalho da vida sem calendário
só mesmo o reconhecimento dos amigos. A professora e
médica aposentada arriscou ausentar-se por duas semanas
da maresia para participar da inauguração do auditório
Prof. Dra. Vilma Clóris de Carvalho do Departamento de
Anatomia, uma homenagem justa a quem dedicou todo o tempo vivido
em Campinas a organizar e coordenar o setor de Neuroanatomia
do departamento, o qual ela não abandonou um dia sequer
durante sua permanência na Unicamp. O setor era reservado
à realização de cursos ministrados a alunos
de graduação, residentes de especialidades afins,
disciplinas de pós-graduação em áreas
de neurociências que integravam, principalmente, os cursos
ministrados pelas Faculdades de Medicina e Odontologia. Lá,
doutora Vilma realizou aulas especiais, palestras, cursos de
especializacão, orientação de estágios,
teses e pesquisas. Outro momento de glória que trouxe
a professora para Campinas foi o lançamento de Vivendo
sem Calendário, no dia 19 de outubro, em Barão
Geraldo.
No
Instituto de Biologia, Vilma é lembrada com carinho pelos
alunos, os quais ela sempre fez questão de encarar como
novos colegas de profissão; pelos professores, alguns
citados em seu livro; e pelos funcionários, que, pelo
menos uma vez por ano, durante suas gestões acompanharam
as cerimônias em homenagem àqueles que doaram seus
corpos para contribuir com os estudos de alunos, professores
e pesquisadores das ciências médica e biológica.
Na apostila para a realização da missa anual,
mimeografada por Zilda Bueno Albieri, funcionária também
aposentada da Unicamp, por sinal a única a operar a máquina
de mimeógrafo para confeccionar apostilas e provas de
todos os cursos, constava até mesmo o nome de desconhecidos
na lista de agradecimentos. Uma realização à
qual a doutora Vilma, como era chamada, dava muita importância
e não se esqueceu de incluir em suas reminiscências.
Os doadores eram homenageados com orações e cantos,
como Morte e Vida Severina, de João Cabral Melo Neto.
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