|
À
beira do precipício
A
aventura de Negrete e Raineri, do paredão de escalada
esportiva da Unicamp ao cume do Aconcágua, maior
monte da América Latina
JOÃO
MAURÍCIO DA ROSA
Duas
horas da madrugada do Ano Novo.
Os alpinistas Vitor Negrete e Rodrigo Raineri estão
acampados em uma
plataforma de gelo a 6.700 metros de altitude, na face
sul do Aconcágua, seu caminho mais íngreme
e nunca vencido por desafiantes brasileiros bem
diferente da subida tradicional, quase semelhante a uma
caminhada. Faltam aproximadamente 250 metros para concluir
a escalada vitoriosa da maior montanha do mundo fora da
cordilheira do Himalaia.
Mas,
naquela madrugada, persiste a forte nevasca que os castiga
desde as três da tarde e os dois homens vão
sendo empurrados para fora do platô que haviam cavado
a duras penas, até ficarem pendurados às
cordas pelos cintos, encharcados, à beira de um
precipício. Nesta posição eles terão
que se manter até as 7 horas da manhã, esperando
o dia clarear para retomar a subida. Eram os piores momentos
que os alpinistas teriam de superar, numa jornada de sete
dias que acabou vencida em 2 de janeiro último.
Enquanto
estavam pendurados, Vitor e Rodrigo não puderam
deixar de se recordar dos três conterrâneos
derrotados pela montanha numa das maiores tragédias
do Aconcágua. Em fevereiro de 1998, Mozart Catão,
de 35 anos, um dos dois brasileiros a vencer os 8.848
metros do Everest (o outro foi Waldemar Nicleviczs), Alexandre
Oliveira, 24 anos, e Othon Leonardo, de 23 anos, encontravam-se
a 700 metros do pico quando foram surpreendidos por uma
avalanche.
Mozart
despencou em um abismo. Seus dois colegas morreram congelados,
atados às cordas, um pouco abaixo do ponto onde
Vitor e Rodrigo ficaram suspensos durante a noite. A passagem
pelos cadáveres dos colegas é relatada com
cautela por Vitor. A gente evita comentar como estão
os corpos, em respeito a eles e aos familiares. Não
queremos que se criem fantasias, pois por mais que a gente
fale uma coisa, as pessoas podem entender outra. Então
é melhor não falar muito, justifica.
A
6.200 metros de uma parede praticamente vertical, e constantemente
sujeita a avalanches, os corpos dificilmente poderão
ser resgatados. Como eu acredito em almas, acho
que as deles estão em outro lugar. Ali ficaram
apenas corpos, conforma-se Rodrigo, que pretende
falar com os familiares das vítimas, caso eles
o procurem.
Patrocínio
A tragédia, se não reduziu o ânimo
dos novos desafiadores da montanha, inibiu os patrocinadores.
Os três alpinistas mortos eram custeados por uma
grande distribuidora de combustíveis, que acabou
descartando este esporte de sua cota de investimentos
publicitários. Vitor e Rodrigo, que até
então não buscaram patrocínio, vêm
bancando do próprio bolso suas aventuras, mas ainda
confiam em obter apoio para escalar o Everest. O
montanhismo não é mais perigoso do que outros
esportes, se praticado com todos os critérios de
segurança. Em 98 aconteceu uma fatalidade. Eles
pegaram 14 dias de tempestade, não tiveram acesso
à previsão do tempo, contemporiza
Rodrigo.
A
chegada ao pico do Aconcágua foi acompanhada por
uma equipe da TV Globo e guardas florestais, provas testemunhais
da façanha. Tão logo o dia clareou depois
da nevasca da madrugada, a dupla recuperou a plataforma
e iniciou a preparação para a última
etapa da viagem. Tais empreitadas começam com a
satisfação das necessidades fisiológicas,
em um buraco cavado no gelo em horas mais quentes do dia
(em torno de 5 a 12 graus negativos).
Tempestades
Os treinamentos para vencer o Aconcágua
começaram quase dois anos antes. Após um
ano de treinamento físico e técnico, em
fevereiro de 2001, realizaram uma escalada de reconhecimento
que terminou depois de dois terços do percurso
pela face Sul, aberta em 1974. A gente estava com
muito peso. Havia possibilidade de êxito mesmo naquele
treino, mas em caso de fracasso seria fatal. Então
resolvemos voltar, lembra Rodrigo. Para a derradeira
e vitoriosa jornada, eles partiram de Campinas em 12 de
dezembro de 2001, rumo a Mendonça, na Argentina.
De lá seguiram para Puente del Inca, porta de entrada
do Parque Provincial do Aconcágua. O acampamento-base
da parede sul chama-se Plaza Francia, ou Praça
França, onde eles permaneceram até 27 de
dezembro.
A
meta era atingir o cume em cinco dias, ou seja, comemorar
a vitória no último dia do ano. Mas
tivemos que enfrentar muitas tempestades e caminhar com
as pernas atoladas até as coxas. Se a neve estivesse
mais dura, teria sido bem mais rápido.
Mas
não são apenas a densidade da neve, pedras
soltas, nevascas e avalanches que dificultam a escalada
de uma montanha daquele tamanho. Os alpinistas ainda enfrentam
descargas causadas por eletricidade estática, um
efeito do atrito do vento com as roupas, e gretas. Estas
últimas são as mais perigosas, pois consistem
em verdadeiros abismos ocultos, quase à superfície
da glaciar e que podem se romper engolindo o alpinista.
Os obstáculos foram vencidos às 20h15 de
2 de janeiro, relembra Vitor: A comemoração
foi rápida. O tempo começava a mudar e tivemos
que nos limitar a um abraço e alguns gritos.
--------------------------------
Tudo
começou num paredão da Unicamp
E
m 10 de janeiro, os alpinistas brasileiros que venceram
o Aconcágua foram recebidos como heróis
pela Prefeitura de Campinas e pela Reitoria da Unicamp,
universidade onde Rodrigo se formou em engenharia de
alimentos e hoje atua como pesquisador, e onde Vitor
se graduou em engenharia da computação
e é candidato ao mestrado na área de qualidade.
Presente
à cerimônia, o senador Eduardo Suplicy
que estava no campus convidado para outra homenagem,
ao prefeito Antônio da Costa Santos, assassinado
em setembro passado quis saber se a Unicamp também
havia ensinado alpinismo aos dois campeões. O
senador quis apenas ser espirituoso, mas espantou-se
com a resposta: Sim. Vitor e Rodrigo, se
não aprenderam o esporte na Universidade, foram
os principais responsáveis por sua introdução
no campus. Por iniciativa deles, a Faculdade de Educação
Física (FEF) possui hoje o seu paredão
de oito metros de altura para a prática de escalada
esportiva, atividade que vem proliferando entre os amantes
de esportes radicais desde a segunda metade da década
de 90.
A
trajetória de Vitor Negrete e Rodrigo Raineri
começou em 1988, com uma série de viagens
de aventura que deu origem ao Grupo Gaia. Vítor,
acompanhado por outros dois colegas, chegou a percorrer
2.400 quilômetros da Rodovia Transamazônica
pedalando uma bicicleta, entre dezembro de 1992 e fevereiro
de 1993.
Quando teve início a construção
do prédio da FEF, eles coletaram nomes para um
abaixo-assinado pedindo a instalação do
paredão. Logo fundamos o GEEU (Grupo de
Escalada Esportiva da Unicamp), até hoje em atividade,
conta Vitor. A escalada esportiva pode despertar as
pessoas para o alpinismo, mas está longe de dar-lhes
preparo para tal aventura. A parede é legal,
mas essa atividade é restrita, controlada. Não
rolam pedras, não aparecem abelhas, não
chove, não caem raios, compara o alpinista.
Para
escalar montanhas, explica Vitor, é preciso treinamento
em primeiros socorros, conhecimento de técnicas
para galgar gelo e rocha, e efetuar resgates, além
de uma série de outros cursos e experiências.
Só escalar em parede e depois tentar subir
montanha, pode ser fatal. É comum ver gente que
se mete em enrascada por se achar capaz de subir em
qualquer lugar. Não é por aí,
alerta.
|
|