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SAÚDE

 

No asilo das Madalenas
Estudo sobre doenças venéreas e gênero mostra porque as prostitutas, acusadas de fonte de males aos homens, eram confinadas em sanatórios

JOÃO MAURÍCIO DA ROSA

“Costuma dizer-se que a civilização e a sifilização andam juntas. O Brasil, entretanto, parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado. A contaminação da sífilis em massa ocorreria nas senzalas, mas não que o negro já viesse contaminado. Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram as negras das senzalas. Por muito tempo dominou no Brasil a crença de que para um sifilítico não há melhor depurativo que uma negrinha virgem”.
(Trecho de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre)

 

No século 19, a sífilis era considerada uma doença venérea transmitida por prostitutas. Por conta disso, a prostituição já rendia ficha na polícia de alguns países e até o confinamento. Entre 1910 e 1940, reforçou-se a idéia de uma feminilidade perigosamente descontrolada e causadora de males aos homens. O comportamento sexual da mulher era demonizado, preconceito que acabou interferindo no próprio espaço urbano, por conta das decisões governamentais de zoneamento das prostitutas.

Contudo, o antropólogo Sérgio Carrara, professor do Instituto de Medicina Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ), afirma que era muito difícil interferir no comportamento dos homens (por conta do prestígio social vinculado à sua posição nas hierarquias sociais e de gênero) do que na vida das prostitutas. “Os homens sempre foram o problema principal”, afirmou o professor, durante conferência realizada pelo Núcleo de Estudos da População (Nepo) da Unicamp. “Ambos os sexos podiam espalhar a doença, mas o homem era vetor privilegiado, pois através dele a doença passava das prostitutas para as “mulheres de família”. Essas últimas nunca eram consideradas vetores, pois se supunha sempre castas e puras”, argumenta. “O problema é que, atuando apenas sobre um dos elos da cadeia (as prostitutas), ficava muito mais difícil controlar a endemia”.

Graduado na Unicamp e com mestrado no Museu Nacional do Rio de Janeiro, Carrara especializou-se em antropologia da saúde, que investiga a relação de médicos e pacientes com a doença sob o ponto de vista antropológico. Em 1996 ele publicou o livro “Tributo a Vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do século (19) aos anos 40 (século 20)”. Sua conferência no Nepo foi baseada nesta obra, que também garantiu seu doutoramento no Museu Nacional.

“Afinal, alguém contaminava as prostitutas. A doença permanecia circulando em uma população de homens, mulheres e crianças. A visão moralista do período fazia supor que a prostituta transmitia a sífilis ao homem e ele à sua esposa e filhos. O movimento, que era circular, acabava visto como unidirecional”, explica Carrara.

A culpa foi lançada sobre as prostitutas numa época em que não se distinguia a sífilis da blenorragia e de outras doenças venéreas. Muitos médicos supunham que as doenças eram fruto de uma irritação intensa das mucosas, devido à prática sexual muito intensa e repetitiva. Daí o fato de as prostitutas – e não as mulheres em geral – serem vistas como produtoras e não apenas transmissoras. “Isto, é claro, ocorreu antes da divulgação das teorias bacterianas. Mas é no Ocidente o corpo feminino sempre foi visto como fonte de perigos e de poluição”,lembra.

Autocontrole – Carrara desenvolveu sua pesquisa sobre doenças venéreas no Brasil com vistas ao doutoramento. De início, o foco do trabalho era a sífilis e, na interpretação do material coletado, não havia a preocupação com o gênero. “No campo da antropologia, eu estava mais interessado na discussão da pessoa, seu autocontrole, em saber qual era o controle possível sobre o comportamento sexual”.
Mas o sexo como necessidade fisiológica é uma concepção relacionada ao gênero, pois está muito mais ligada ao homem. “Ele possui uma necessidade que precisa ser regularmente atendida, não tem controle sobre o exercício da sexualidade. Por isso, o material pesquisado acabou marcado por concepções de gênero, é difícil perceber alguma discussão que não traga esta marca”.

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Sífilis atingiria até a 7ª geração da vítima

Nas quatro primeiras décadas do século 20, todas as políticas contra as doenças venéreas
tinham como alvo o sexo feminino. A ação se baseava em concepções tradicionais de gênero, com expectativas diferentes em relação a homens e mulheres. “Nunca havia mistura, nenhuma campanha era endereçada conjuntamente a homens e mulheres”.

Sem se estender na história da sífilis, Carrara lembra que ela era muito mais perigosa até a Segunda Guerra, quando não havia penicilina. À doença eram atribuídas características hereditárias, supondo-se que atingiria até a sétima geração da vítima, produzindo degeneração racial. “Havia esta conotação racial, ou seja: representava uma ameaça à raça e, nas gerações seguintes, não era relacionada ao sexo”, conta.

Foi neste período que surgiram as tentativas de combater a sífilis com a regulamentação da prostituição em zonas de meretrício. Na França do século 19 foi implantada uma política onde a polícia e os sanitaristas elaboravam estatísticas e cadastravam as prostitutas, que depois eram submetidas a uma vigilância permanente. Elas não podiam sair daquelas zonas ou mudar de cidade sem avisar a polícia, passavam por exames médicos regulares e, se contaminadas, acabavam compulsoriamente internadas em um hospital.

“A idéia era de que, “saneando” as prostitutas, eliminaria-se a sífilis, pois os homens não teriam como se contaminar”, afirma o professor. Prevalecia um princípio básico: o homem não podia abster-se do sexo e, sendo as prostitutas imprescindíveis para isso, restava saneá-las. “Ninguém questionava o duplo padrão de moralidade, que permitia inclusive aos homens casados visitar prostíbulos (o que dizer dos solteiros), porque era fisiológico”.

Regulamentação –A França e vários outros países europeus conseguiram manter aquele regulamento para a prostituição do fim do século 19 até a Segunda Guerra. No Brasil Imperial, Dom Pedro II era pessoalmente contra, pois não lhe interessava adotar uma idéia de um país republicano. Quanto à Igreja, recusava-se a discutir o tema, pois regulamentar a prática parecia profissionalizá-la.

Foram os médicos da Academia Brasileira de Medicina que se viram obrigados a tomar a iniciativa de implantar uma política antivenérea. Eles chegaram a planejar uma adesão à França e a realização de um censo no Rio de Janeiro, então Distrito Federal. “Mas isso não passava pelas elites políticas, por causa da rivalidade entre o império brasileiro e a república francesa”.

Apesar disso, longe da Capital Federal, aconteceram algumas experiências no Brasil. Em Belém, um sistema foi montado, embora abortado mais tarde. Lá o poder público criou uma carteirinha para as prostitutas, contendo dados pessoais, altura, peso e o resultado do exame médico. “Elas eram classificadas como boas, suspeitas ou interditadas, supondo-se que antes do ato sexual o cliente pediria a carteirinha”, relata Carrara.

Assim como na França, a prostituta não podia mudar de endereço, sofria multas e tinha outras obrigações, além de estar igualmente sujeita ao Asilo das Madalenas em caso de interdição. O professor destaca uma foto curiosa coletada em sua pesquisa: no asilo só de mulheres, elas estão perfiladas em corredor para serem visitadas por um grupo de ilustres cidadãos, todos homens.

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Continua...

 

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