Constatações como estas é que orientam a escolha de cultivares pela Divisão de Agrotecnologia, coordenada pelo professor Pedro Melillo de Magalhães, do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA), da Unicamp. O cultivar é o desenvolvimento, a partir de espécies nativas previamente selecionadas, de espécie cultivável homogênea, que apresenta características agrícolas importantes, como boa germinação, crescimento e florescimento uniformes, boa produção de biomassa e capacidade de rebrotar depois da colheita. E, naturalmente, constância de composição, o que possibilita um estudo científico sistemático no âmbito da farmacologia, fotoquímica, bioquímica e microbiologia.
Este feito foi conseguido pelo pesquisador Ílio Montanari Junior, da Divisão de Agrotecnologia do CPBQA, que desenvolveu um cultivar para a carqueja. A partir de agora, o agricultor que se interessar por esse cultivo passa a ter à disposição uma variedade com boas características agrícolas, o que contribui para o sucesso do seu empreendimento.
O professor Montanari considera que desenvolver cultivares constitui uma forma de satisfazer simultaneamente o produtor agrícola e a indústria processadora, pois podem ser previstas qualidade, quantidade e freqüência com que a matéria-prima é produzida. “Além disso, cultivares de espécies nativas contribuem para a preservação ambiental, já que as plantas cultivadas substituem as coletadas pelos extrativistas em áreas de ocorrência natural da espécie”.
O trabalho desenvolvido pelo pesquisador acaba de dar origem ao primeiro registro de cultivar de plantas medicinais brasileiras junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Ele esclarece que no mesmo órgão podem ser feitos o registro e a proteção do cultivar: “A proteção garante que a utilização do cultivar seja feita mediante o pagamento de royalties a quem o desenvolveu. É o que fazem as empresas produtoras de sementes”.
Segundo o pesquisador, o registro permite que o cultivar fique à disposição dos usuários sem qualquer custo, garantindo os créditos para quem o desenvolveu. “É o nosso caso, porque somos universidade pública e pretendemos passar essa tecnologia para o agricultor, preservando os créditos do pesquisador. Assim, de alguma forma, retornamos o investimento da sociedade”.
Montanari lembra que o trabalho teve início em 1996, com a coleta de sementes de carqueja principalmente em Minas Gerais, no norte de São Paulo e em algumas áreas do Paraná. As sucessivas populações das plantas resultantes da semeadura inicial realizada no CBQBA foram sendo selecionadas durante cinco gerações. “Trata-se de um trabalho sem fim e que cada vez mais conduz a aperfeiçoamentos do cultivar, como aconteceu e acontece com o milho híbrido desenvolvido por algumas empresas”, diz.
‘Fazemos um convênio com a natureza’
O professor Pedro Melillo de Magalhães, coordenador da Divisão de Agrotecnologia do CPQBA, lembra que o setor tem um histórico de vinte anos de experiências junto à agricultura familiar, com agricultores e empresas de médio e grande porte e que os trabalhos desenvolvidos têm impacto sobre o agronegócio, atividade cada vez mais presente hoje.
Ao tomar como exemplo a utilização de plantas medicinais aromáticas pelas indústrias de cosméticos, explica Magalhães, o lançamento de um produto só pode ser feito desde que haja garantia de fornecimento ininterrupto de matéria-prima uniforme, o que leva ao estabelecimento de uma cadeia que tem, na outra ponta, o agricultor com mais alternativas de produção. “Costumo dizer que em nosso trabalho estabelecemos um convênio com a natureza, aproveitando as variações que ela oferece. Para isso, começamos com as viagens de coleta para mapear e determinar as escolhas entre as variedades silvestres disponíveis”.
Magalhães explica que, em cultivares desenvolvidos anteriormente na Divisão de Agrotecnologia, não houve a preocupação com o registro, mas o considera importante como ferramenta técnica para monitoramento do desenvolvimento da qualidade da variedade: “Através do DNA se consegue saber se lá do outro lado do País estão plantando a variedade, o que permite a rastreabilidade, muito importante em plantas medicinais. Faz parte do registro do medicamento a manutenção de sua composição que, por tabela, depende da reprodutividade da matéria-prima”.
O especialista revela que, no caso da artemisia annua, utilizada na elaboração do medicamento para a malária, o CPQBA passou a produzir as sementes que vende para agroindústrias do mundo todo, o que o torna responsável hoje por 80% do cultivo da planta no planeta. Lembra que para breve os pesquisadores da Divisão terão concluído cultivares de espécies como macela (aromática), estévia (edulcorante), quebra-pedra (no tratamento de cálculo renal e hepatite B), espinheira santa (anti-úlcera) e erva baleeira (antiinflamatório).
O pesquisador lembra, no entanto, que o CPQBA não é uma unidade que dispõe de campo de multiplicação de sementes para abastecer diretamente o agricultor. Credita esse trabalho a instituições como a Embrapa, que possui estrutura adequada para atingir todo o Brasil. A expectativa é que a instituição tenha interesse em fazer a multiplicação das sementes da carqueja.
Por dentro da linha de produção
A equipe de pesquisadores da Divisão de Agrotecnologia do CPQBA trabalha no desenvolvimento de diversos cultivares tais como a espinheira santa, erva baleeira, estévia, pfaffia, guaco, crajiru, quebra-pedra, macela. A exemplo da carqueja, deverão ser encaminhados para registro à medida que concluídos.
Montanari esclarece que três fatores principais determinam a seleção das espécies a serem desenvolvidas: a importância social, o valor econômico e o risco ecológico no caso, por exemplo, de plantas drasticamente coletadas, situação que coloca em risco as populações naturais, como o da espinheira santa. Isto se verifica com a carqueja, que já se encontra em listas que alertam sobre os perigos de sua extinção devido ao extrativismo ou à degradação dos ambientes naturais.
Segundo o pesquisador, as plantas do mato nem sempre se adaptam ao cultivo porque o ambiente agrícola é diferente do ambiente natural. “Na natureza, quanto maior a variação da espécie, maior a sua possibilidade de sobrevivência, mas para o cultivo há necessidade de uma variedade homogênea. O cultivar tem essa característica”. Ele explica que o processo de uniformização, com o objetivo de obter uma variedade cultivável, começa no viveiro com a seleção das mudas que germinam primeiro e que apresentam maior vigor.
Uma vez no campo, procede-se à seleção das mudas que apresentam características boas para cultivo. No caso de uma planta perene como a carqueja, são selecionadas mudas que garantem: 1)a rebrota que permite vários cortes; 2) plantas eretas, que não se acamem, características comuns nas plantas selvagens; 3) plantas produtivas no caso, com abundantes folhas; e 4) plantas com florescimento uniforme, referência para o ponto de colheita importante para orientação do agricultor e garantia de padronização das características químicas.
No campo, as mudas selecionadas se cruzam através do pólen conduzido pelos insetos. As sementes das plantas então resultantes são levadas para o viveiro e iniciam nova geração, que é submetida aos mesmos critérios de seleção. O cultivar registrado da carqueja corresponde à quinta geração e começou com a coleta de sementes junto às espécies silvestres em 1996. Este é o processo clássico de melhoramento genético, em que a transferência dos genes é natural e não utiliza biotecnologia.
Montanari observa que o mercado de plantas medicinais carece de produtos com uniformidade. O estabelecimento de um padrão permite que os órgãos públicos possam estabelecer diretrizes para que uma determinada planta seja comercializada como medicinal. Ele alerta, ainda, que o trabalho de melhoria de uma variedade nunca termina, pois o cruzamento permite adicionar à variedade cultivável propriedades desejáveis descobertas e presentes em variedades silvestres.
Esse trabalho de aperfeiçoamento, e enriquecimento, explica o pesquisador, continua enquanto houver interesse econômico pela planta, como ocorre com o milho. O primeiro passo é oferecer ao agricultor uma variedade cultivável, em função de uma demanda e do comprometimento ecológico. “Sempre que se descobrir em variedades silvestres características desejáveis, pode-se incorporá-las ao cultivar através de cruzamento”.
Para Montanari, o cultivar oferece ao agricultor alguma coisa de valor e ao mesmo tempo satisfaz às necessidades da indústria processadora, que precisa de matéria-prima de qualidade, e, de quebra, ajuda o meio ambiente.
Um hábito herdado dos indígenas
A carqueja é um subarbusto perene (não morre depois de florescer), ereto, muito ramificado na base (forma touceiras de 50 cm de raio e por isso as mudas devem ser plantadas com distanciamento de um metro), de caules e ramos verdes, com 50/80 cm de altura. Tem inflorescência de cor esbranquiçada disposta ao longo dos ramos. É nativa do sul e do sudeste do Brasil, principalmente nos campos de altitude.
A planta é amplamente utilizada no Brasil na medicina caseira, hábito este herdado dos indígenas que há séculos faziam uso dela para tratamento de vários males físicos. Os primeiros registros escritos sobre seu uso remontam à década de 1930 e informam sobre a infusão de suas folhas e ramos para o tratamento da esterilidade feminina e impotência masculina. São atribuídas à planta propriedades tônicas, antifebris e estomacais. Posteriormente passou a ser utilizada como antiinflamatório, para problemas hepáticos, intestinais, tratamento de diabetes, malária, anginas etc.
Montanari lembra que algumas destas propriedades amplamente consagradas no uso popular foram validadas em pesquisas farmacológicas com animais. Um estudo de 1996 comprova seus efeitos analgésico, anti-úlcera e antiinflamatório. Estudo clínico realizado em 1967 descreve a ação do extrato desta planta na redução dos níveis de açúcar no sangue e valida seu efeito hipoglicêmico.