De 1963 a 1970, trabalhei como médico no pequeno hospital de Três Passos (RS), onde mais de 70% da população era de origem alemã. Muitas dessas pessoas não falavam o português, principalmente as mulheres acima de 40 anos e as crianças abaixo dos 7 anos. Como eu não falava alemão, necessitei durante muitos anos do auxílio de uma tradutora que me auxiliava a fazer a anamnese e nas outras etapas do atendimento.
Naquela oportunidade não aprendi o alemão, porém decidi que um dia o faria. Comecei a estudar o idioma de Goethe em janeiro de 1996 e percebi logo a grande dificuldade em aprender uma língua como aquela depois de velho. Fiz vários cursos intensivos e passei a me socorrer de professores particulares. Como se não bastasse, em maio de 1998 me inscrevi num curso superintensivo no Goethe Institut de Munique, o que não foi uma boa decisão, pois é impossível assimilar, com algum proveito, uma língua tão complexa em oito aulas diárias durante duas semanas.
Minha classe tinha como alunos um jornalista finlandês, um advogado holandês, uma engenheira italiana, uma universitária francesa, um músico argentino e eu, um médico brasileiro, o mais idoso da turma. Logo no final do primeiro dia de aula, cada um de nós foi solicitado a escolher um tema, que dissesse respeito a seu país, para uma apresentação no último dia que serviria para avaliação do aproveitamento.
O título da minha apresentação, “O Tityus serrulatus e o tetracampeonato”, despertou grande curiosidade. Em primeiro lugar, o que é Tityus serrulatus? Eu respondi que é um escorpião assassino brasileiro. Em seguida: que tetracampeonato? Respondi que era o tetracampeonato de futebol que o Brasil conquistou em 1994. E o que esse escorpião assassino tem a ver com o tetra do Brasil? Respondi que então aguardassem pela minha apresentação.
O 1º campeonato
O Brasil ganhou a primeira Copa do Mundo em 1958, com um grupo de jogadores jovens, alguns deles, como é o caso de Pelé, excepcionais. Durante as fases de preparação, nosso time foi criticado violentamente pela imprensa, que responsabilizava os cartolas por terem convocado jogadores inexperientes, um time inexpressivo para representar o país em uma competição de importância fundamental para os brasileiros. Lembro-me que passei pela cidade mineira de Poços de Caldas quando nosso time estava lá concentrado. A unanimidade das críticas era impressionante. Porém, como todos sabem, o Brasil ganhou na Suécia o título pela primeira vez.
Eu, que não gosto de futebol, mas que sou brasileiro e não posso ficar totalmente alheio ao que acontece ao meu redor, tenho a minha interpretação do porquê de o Brasil ter conquistado o primeiro campeonato, apesar de todas as críticas. O Brasil ganhou na Suécia porque tinha vários jogadores extraordinários – não só Pelé – que decidiam jogadas através de lances individuais que até hoje são lembrados na história do futebol.
O bicampeonato
O bicampeonato no Chile foi ganho, na minha interpretação, outra vez pela atuação destes jogadores excepcionais. Aquele que se interessa por futebol sabe que Pelé, considerado a alma do time, contundiu-se logo no primeiro jogo. De pronto, Garrincha assumiu com desenvoltura a posição de Pelé. É possível perceber nos lances disputados por Garrincha uma profunda intimidade com a bola. Para nós médicos, parece que os prolongamentos neuronais do jogador ultrapassaram os limites físicos do seu corpo e se instalaram na própria bola, possibilitando a ele sentir a bola como parte de seu corpo.
O tricampeonato
Para um observador amador como eu, não era mais possível identificar jovens jogadores com habilidades tão marcantes como os de 1958 e 1962. João Saldanha, um comentarista inteligente e agressivo, que estava debutando como técnico, passou sua agressividade pessoal para o time que convocou. Em jogo-treino com a Argentina, quebrou-se a perna de um jogador portenho. Imaginem a reação dos argentinos. Os jogadores da nossa seleção passaram a ser chamados de “feras do Saldanha”. Circulavam frases atribuídas ao técnico: “futebol é um jogo de machos”, “se a bola passar o cara não passa”. Um perigo! Um desastre! E olhe que a doutrina Bush ainda não existia.
Após tantos desatinos, Zagalo assumiu como novo técnico e convocou Claudio Coutinho como preparador físico e Parreira como auxiliar. A seleção de 1970 tinha Pelé como remanescente de 1958 e uma maioria de jovens, todos submetidos a um treinamento físico competente, com a utilização do método de Cooper – que então empolgava Coutinho. O resultado dessa preparação física colocou o Brasil como o time mais combativo e competitivo durante o segundo tempo dos jogos no México. Quem observar as gravações pode perceber claramente que o Brasil foi o time do segundo tempo (o primeiro era sofrido para a torcida brasileira).
Mas a safra de jogadores extraordinários, jovens ou velhos, desapareceu e o Brasil perdeu sucessivos campeonatos. Levou 24 anos para voltarmos a levantar a taça.
O tetracampeonato
Em 1994, com a dobradinha Parreira-Zagalo remanescente de 1970, outra vez nossa seleção não possuía jogadores extraordinários e foi desacreditada e combatida pela imprensa e pela maioria da população. Por instinto, por sorte ou até por análise racional, a dupla Parreira-Zagalo, na minha percepção, perguntou para si mesma: comovamos ganhar o tetra com essa turma de pernas-de-pau?
Aventuro-me a dar a resposta. Para ganhar com pernas-de-pau é preciso dar aos jogadores um treinamento físico superior ao de todas as outras seleções, de modo com que o Brasil fosse, como em 1970, o time do segundo tempo. Também era preciso não mudar os jogadores – ainda que existissem outros melhores no país –, dar-lhes segurança e fazer uma fezinha para que conseguissem formar um excelente time, no estilo do melhor futebol europeu. Parece que isto foi feito e a fé funcionou.
Lembro-me que quando eu, no Pronto-Socorro da Unicamp, falava para os docentes, médicos residentes e internos que Parreira e Zagalo estavam fazendo o correto, quase apanhava. Diziam-me: “é que você não entende de futebol”, o que era verdade. Apontavam aqueles dois muito bons no Rio Grande do Sul, outro excelente em Minas, mais um em São Paulo e outro no Rio que “esses cabeças duras do Zagalo e do Parreira não convocam”. Deviam estar certos, deviam existir melhores, porém não o suficiente para ganharem os jogos sozinhos. O paradigma adotado, por instinto, era o do time, o do futebol europeu, e para isso era necessário manter o mesmo grupo.
Como você sabe, em 1994 nosso time ganhou o tetra e a imprensa, que estava desacreditando os preparadores, não entendeu bem como a seleção conseguiu ganhar. O Brasil comemorou o título, porém não foi dado aos técnicos o devido valor, pois o brasileiro gosta do futebol arte, o futebol alegre, o futebol esperto, quase maroto, o futebol de Pelé de 1958 e de Garrincha de 1962.
Tityus serrulatus,
o escorpião assassino
Encontrado em fósseis do período Siluriano (425-450 milhões de anos), o escorpião, como figura mística, povoa de murais religiosos e bélicos a utensílios domésticos. Não só como agente do mal (da morte), o que é o mais freqüente, mas também colocado entre os deuses, no Zodíaco, associado ao bem. Segundo Mello Leitão, Orion (filho de Zeus) foi morto pela picada de um escorpião, por ser um caçador que se vangloriava de que mataria todos os animais da Terra.
O maior escorpião atual é o Hadogenes troglodytes, que atinge 21 cm, mas alguns espécimes do período Siluriano-Devoniano, como o Brontoscorpio anglicans, chegavam a mais de 80 cm. No Brasil encontramos o Tityus serrulatus (foto nesta página) principalmente na Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Goiás, Minas Gerais, São Paulo e Paraná. Devido a grande expansão de distribuição nos últimos 25 anos, ele vem ocorrendo bastante em áreas de Campinas, São José dos Campos e Brasília.
De 1971 a 1980, na Enfermaria de Emergência do HC, não recebemos nenhum espécime de Tityus serrulatus proveniente de Campinas, onde os acidentes eram quase todos por Tityus bahiensis. Hoje, no Centro de Controle de Intoxicações, aproximadamente a metade dos escorpiões que recebemos de Campinas é de serrulatus, muito mais perigoso que o bahiensis.
A expansão do Tityus serrulatus foi estudada por Wilson R. Lourenço, filho de franceses nascido em Rio Claro, que trabalha no Museu Nacional de História Natural da França. Segundo ele, uma causa é uma característica rara entre os escorpiões, que é a partenogênese. A capacidade de se reproduzir por partenogênese – o ovo se desenvolve sem ser fecundado, não havendo necessidade de um casal – possibilita a um único espécime, transportado em uma mala, móveis ou outro veículo se reproduzir e se desenvolver em outras regiões.
Entre os predadores naturais dos escorpiões estão algumas aranhas, o louva-a-deus, alguns coleópteros, sapos e rãs, lagartos, alguns mamíferos como ratos, ouriços e quatis, e numerosas aves como galinha, pato, peru, ganso, galinha de angola, coruja. As corujas, por seus hábitos noturnos como dos escorpiões, podem ter um papel relevante no controle desta população. As galinhas, mesmo com hábitos diurnos, conseguem encontrar os escorpiões porque ciscam.
A peçonha do Tityus serrulatus atua sobre os canais de sódio das membranas celulares, induzindo a despolarização, com atuação no sistema nervoso autônomo, terminações de fibras nervosas sensitivas, motoras e musculares.
A manifestação mais freqüente do acidente escorpiônico é a dor, geralmente intensa, de aparecimento imediato no local da picada, com irradiação para a raiz do membro acometido. Podem aparecer manifestações gerais de taquicardia, bradicardia, hipertensão arterial, hipotensão arterial, náuseas, vômitos, sudorese, palidez, alterações eletrocardiográficas e ecocardiográficas, ansiedade, agitação, falência cardíaca, edema agudo de pulmão, choque e morte.
Vômito é um valoroso indicador de gravidade, desde que não tenha sido provocado pela dor. Na avaliação de um paciente é conveniente a infiltração local de anestésico para que se possa valorizar o vômito como indicador seguro de gravidade. A morte por escorpião serrulatus pode ocorrer principalmente em crianças, porém é rara. No HC da Unicamp, de 1971 até hoje, faleceram duas crianças acidentadas por escorpião, a última delas na manhã do dia 6 de março de 2005.
Urbanização
e migração
Os dados do IBGE sobre a migração da população da área rural para a área urbana, nos últimos 40 anos, são impressionantes. O surgimento do BNH (Banco Nacional de Habitação), na década de 60, tinha o propósito de atender à colossal demanda de moradias nas áreas urbanas. Recordo de uma reportagem nos idos de 1966-68, com uma senhora de 75 anos da zona rural do norte de Minas, que perguntada sobre o que achava das casas populares em construção pelo BNH, respondeu: “Não vai dar certo, pois as casas são muito próximas e as galinhas se misturam todas”. Para ela, não podia haver uma moradia sem espaço suficiente para seus animais.
A essa altura o leitor deve estar questionando o que fazem as galinhas aqui.
A relação entre o
serrulatus e o tetra
Na minha interpretação a migração, a urbanização desorganizada e acentuada, assim como presença do automóvel contribuíram para subtrair da periferia das cidades as ruas de terra que serviam de campo de futebol. Isto impediu que meninos de 1 a 6 anos treinassem com a bola durante longas horas do dia, a ponto de estimular o crescimento de seus axônios (prolongamentos neuronais, nervos), além dos limites físicos de seu corpo, chegando a atingir a bola e possibilitando a percepção da mesma como parte de seu corpo. A figura do menino nesta página representa o que em 1998, em Munique, denominei LangaxonfuBballspieler (jogador de futebol de axônios longos) – é uma representação feita a meu pedido por Jorge Luis Vitale Perdomo, ex-aluno FCM da Unicamp, hoje cirurgião plástico em Campinas.
Na minha hipótese, um jogador de futebol tem muito mais chance de se tornar extraordinário, com habilidades especiais, quando sente a bola como parte de seu corpo. Ele deve ser um LangaxonfuBballspieler.
Nessa linha de idéias, não devemos mais esperar ganhar Copas do Mundo a partir de alguns poucos jogadores extraordinários, capazes de decidir partidas com brilhantes atuações individuais, e sim adotar o paradigma do melhor futebol europeu, isto é, uma equipe bem preparada fisicamente, atuando em conjunto, através de jogadas ensaiadas. Não é o futebol que o brasileiro gosta de ver.
Quanto à expansão do serrulatus, as causas são certamente a partenogênese, as migrações e a urbanização desorganizada. A presença do automóvel e a ausência de quintais, hortas, cercas vivas – do ambiente biologicamente saudável – não permitiram o desenvolvimento dos inimigos naturais do escorpião. Faltou espaço para a galinha. A galinha da idosa senhora de Minas não faz parte da nossa urbanização.
Por sorte, o Brasil conquistou o pentacampeonato atuando contra seleções não muito bem preparadas. Nossa seleção foi se entrosando e acabou por se transformar, ao longo do torneio, num verdadeiro time. Se tivéssemos jogado de inicio com as seleções que vencemos no final, teríamos sido derrotados.
Agora com o fracasso na Alemanha, em 2006, sem o adequado preparo físico e o entrosamento, só resta procurar culpados ou criar ambientes que permitam o aparecimento de novos LangaxonfuBballspieler. Ou então adotar definitivamente o paradigma do futebol europeu. Ou, o que seria melhor, abraçar as duas últimas alternativas.