Na entrevista que segue, o professor Jorge Coli, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), comenta seu papel de orientador e aspectos da tese “Pintura, história e heróis no século XIX: Pedro Américo e Tiradentes Esquartejado”, de autoria da historiadora Maraliz de Castro Vieira Christo e vencedora do Grande Prêmio Capes de Teses “Florestan Fernandes”.
Jornal da Unicamp – Maraliz afirmou que sua orientação foi fundamental para a elaboração da tese. Revela que, sem sua presença, não teria alcançado esse resultado. Quais foram as maiores contribuições – mesmo aquelas subjetivas – que o senhor deu?
Jorge Coli – Acredito muito naquilo que chamo de "entorno" do trabalho de pesquisa. É preciso que o aluno aprenda a desenvolver uma espécie de atmosfera cultural, que tenha afinidade com seu próprio temperamento, que venha nutrir, sem que haja uma relação instrumental, mecânica, direta, imediata com seu trabalho. No caso, houve uma troca: pude estimular Maraliz para esse clima, e ao mesmo tempo, aprender muito com ela. Maraliz. Ela também recebeu uma bolsa da Fundação Getty, de Los Angeles, que permitiu que ela passasse um ano no Instituto Nacional de História da Arte de Paris.
Gostaria porém, de assinalar, que as autênticas formações de historiadores da arte no Brasil terminam sendo tardias. Recentemente, Brasileiro de História da Arte (CDHA) fez um encontro na Faap, onde foi martelado o fato que é preciso uma graduação específica em História da Arte no Brasil. Todas as grandes universidades internacionais têm, mas no Brasil não existe. Existem pós-graduações como a da Unicamp, em Campinas, mas não existem graduações.
Seria muito bom que houvesse uma graduação, dentro do Departamento de História, e esse é outro ponto importante. Quando se criou a universidade moderna no Brasil, com a USP, em 1936, cogitou-se abrir departamentos de todo o tipo - Geografia, Física, Química, etc. Foi necessário trazer grandes professores europeus para formar esses departamentos, mas não se pensou em formar um departamento de História da Arte.
Com isso, a História da Arte sempre teve um lugar extremamente precário na universidade brasileira, dependente de outras formações. Havia História da Arte para arquitetos, havia alguns historiadores da arte que formavam alunos de Belas Artes. Era uma disciplina um pouco amadorística e, dentro da universidade, quem se interessava por História da Arte conseguia fazer seu trabalho somente se o enxertasse em alguns programas de pesquisa diversos, às vezes bem distantes da especificidade exigida pela História da Arte.
JU – Por que essa distorção?
Coli — Nós temos uma bela e forte tradição em História da Literatura, em História da Filosofia, que são coisas perfeitamente comparáveis à História da Arte e que sempre tiveram seu lugar legítimo e claro dentro da instituição e das grades universitárias. Aliás, quero assinalar que a primeira pós-graduação instalada em História da Arte no Brasil foi a da Unicamp, em 1989. De um modo geral, as pessoas - colegas, universidade - pensam que História da Arte é uma disciplina artística e, portanto, tem que ficar nos institutos de arte. Mas História da Arte não é uma disciplina artística, e sim uma disciplina histórica, em que você precisa aprender os métodos da história, a trabalhar com documentos, a ir a fontes primárias, filtrar arquivos, a ter uma formação de historiador. Esse aspecto é crucial.
Acredito que, mais cedo ou mais tarde, teremos uma graduação em História da Arte no Brasil. Com o desenvolvimento de pós-graduações em História da Arte atualmente, com a presença de historiadores da arte em várias universidades brasileiras, acho que essa possibilidade ganha um impulso considerável.
JU – A autora afirmou ainda que a pesquisa foi um "exercício de olhar". Segundo ela, falta este olhar nos estudos na área de história da arte. O senhor concorda? Se sim, que olhar seria este? De que maneira ele dialoga com o objeto de estudo?
Coli – Eu acho que falta muito. No Brasil, temos uma formação, desde o ensino médio, que é eminentemente literária e acreditamos que aprendemos tudo pelos livros, pelas palavras, pela leitura. Nós não temos uma formação de olhar, de aprender a ver as obras, e por isso seria importante uma graduação em História da Arte. É necessário aprender a ver as obras, a trabalhar visualmente, da mesma maneira que se aprende a ler. Não há atalho, nem receita mágica. Essa leitura das obras é feita com exercícios, é um trabalho lento, progressivo. É como aprender a ler de fato, ou aprender uma outra língua. O olhar encontra não apenas uma dificuldade de aprendizado na base, como também uma dificuldade de barreira. Como o pesquisador não tem esse olhar, e às vezes nem sabe que ele existe, tende a substituí-lo por processos que são puramente intelectuais, discursivos.
Quando se tem um quadro para analisar, o que se deve fazer? Olhar para o quadro. Geralmente, o pesquisador primeiro vai ler tudo o foi publicado sobre a obra, vai buscar a teoria X ou Y, para ver se dá certo. Ao contrário, a primazia do olhar, e que introduz aquilo que eu chamo de a ética da obra, impõe a obra como sujeito. Ou seja, primeiro você recebe da obra as indicações necessárias para compreendê-la. Depois que você mergulhou, se familiarizou, aprendeu a captar os sinais que a obra emite, depois que você aprendeu a fazer relações visuais que muitas vezes não são passíveis de serem traduzidas em palavras, aí sim é possível fazer uma análise. Não é nada simples chegar lá e, para tanto, é preciso uma longa formação.
JU – O senhor poderia exemplificar?
Coli – Um dos processos de demonstração clássica em História da Arte ocorre quando eu tenho tal quadro, de tal pintor. Basta ver o fundo em que está essa paisagem desse pintor italiano, por exemplo, para perceber que ele conhecia perfeitamente os pintores flamengos. Mas como se demonstra isso? Você põe lado a lado um detalhe da paisagem do pintor italiano e um detalhe do pintor flamengo, e o olhar constata que existem afinidades e semelhanças, mas isso não se traduz com palavras, não cabe no texto. Não existe maneira de trazer essa prova, que é eminentemente visual e intuitiva, para o texto. Eu posso escrever páginas e páginas a respeito disso, mas se você, como estudioso, não vir as duas coisas, a prova não é feita.
JU – É preciso fazer a análise comparativa?
Coli – Exatamente. A História da Arte do século XIX no Brasil é relativamente precária. Você pega um quadro como Batalha do Avaí, do Pedro Américo, que eu estudei. Todo mundo diz: é um quadro que tem enorme influência francesa. Aí você vai ver o quadro, compara com o que se fazia então na França, na Itália, em matéria de pintura, e começa a perceber que as escolhas do Pedro Américo têm uma dose imensa de influência italiana, que ninguém tinha visto porque simplesmente ninguém refletiu sobre isso. Uma das questões é que ele se volta para um gênero fora de moda no tempo dele, que é a pintura de batalhas à maneira do século XVII. Não as pinturas de batalhas oficiais, mas as pinturas de batalhas como gênero.
Havia um gênero que era o dos “batalhistas”. Da mesma maneira que existiam pintores que se especializavam em paisagens, natureza morta, existiam aqueles pintores que se especializavam em pintar batalhas que eram simplesmente cenas de combate. A Batalha do Avaí deriva, em grande parte, de uma reflexão do pintor sobre esse universo. Mas é um processo longo. É preciso aprender a olhar: aos poucos vai-se percebendo como a obra se constrói, quais são as intenções do artista. Como eu disse, não há atalho. É como aprender a nadar: se você não pular na água e não fizer os exercícios específicos, não adianta ler todos os livros e teorias do mundo sobre natação – você vai se afogar.
Nesse aspecto, Maraliz adquiriu um olho extraordinário, como se diz no jargão dos historiadores da arte, uma intuição visual prodigiosa.
JU – Na condição de historiador (e de crítico, por que não?), que avaliação o senhor faz do quadro de Pedro Américo (originalidade, estética, aspectos iconográficos etc) e, também, dos outros quatro que integrariam a narrativa do pintor acerca da Inconfidência, mesmo que estes sejam estudos/esboços e registros escritos?
Coli – Existem dois esboços feitos por Pedro Américo, a obra completa e o projeto de uma seqüência, que Maraliz reconstituiu perfeitamente na tese. Ela demonstra que o Tiradentes Esquartejado ficou oculto durante muito tempo em um museu pouco conhecido, em Juiz de Fora, e começou a aparecer nos anos 60. A tela criou um fascínio, e o professor Bardi tem um papel importante nisso, solicitando a um artista contemporâneo de primeira linha, Wesley Duke Lee, para fazer uma retomada do quadro. Depois, Adriana Varejão, entre outros, também trabalha sobre o quadro. Tiradentes Esquartejado teve um papel-pivô na Bienal do Corpo, que ocorreu em São Paulo em 1993. Foi a primeira vez que o quadro saiu de Juiz de Fora, ou seja, ele ficou praticamente 90 anos isolado.
Um dos problemas de Pedro Américo é a questão do heroísmo, de como tratar o herói. Pedro Américo era um intelectual, e não era um artista de formação puramente pictórica. Fez uma tese de filosofia defendida na Bélgica, escrevia romances, e a questão do herói para ele mostra-se evidente. Maraliz foi procurar na história quais eram os grandes heróis nacionais que morreram esquartejados. Um deles, talvez o mais célebre, é Wallace, herói nacional da Escócia. Maraliz mandou cartas para todos os especialistas, institutos históricos, universidades escocesas, museus, buscando saber onde havia uma representação de William Wallace, o herói esquartejado e descobriu que não existe. Ela recebeu uma carta, que eu a orientei a colocar na tese, de um museu da Escócia, nestes termos: "Minha senhora, não se representa o herói nacional como esquartejado. O herói nacional é alguém que tem uma unidade física e espiritual, e tem que mostrar essa unidade". Só isso, já demonstra a originalidade da tela de Pedro Américo. Maraliz demonstra na tese é que o artista procede não como alguém que faz como encomenda, mas como alguém que reflete como historiador.
Um aspecto que sempre ressalto para meus alunos é que o trabalho do historiador da arte debruça-se sobre algo que pertence à história da cultura e, em particular, à história da cultura material, porque é um objeto. Porém, cada obra tem uma singularidade, é única. Essa é uma das características da obra de arte: ela é única e não pode ser substituída, como cada um de nós, que pertencemos ao gênero humano, mas somos cada qual um indivíduo. O que acontece quando um de nós é assassinado e não se sabe quem é o criminoso? Há todo um trabalho de inquérito, por traços, elementos intuitivos, reflexão, para se buscar quem é o culpado. Na história da arte não é muito diferente.
O historiador da arte muitas vezes tem que trabalhar sobre um quadro, sem assinatura, sem saber de quem é, de onde veio. É só um objeto. Você começa então a procurar pistas. Renata Bittencourt, outra aluna minha, fez um excelente trabalho de mestrado sobre um retrato de negra do século 19, um quadro que pertence ao Museu do Ipiranga, exposto pelo Manuel Araújo na Exposição do Barroco na Fiesp há alguns anos, que não tem nenhuma documentação no museu, não se sabe de onde veio. Trata-se de um quadro estranho em relação à representação dos negros no Brasil. A pesquisadora passou dois anos e meio, o tempo do mestrado, a quebrar a cabeça para saber que elementos podia trazer para compreender o quadro.
O interesse não é saber quem pintou – se um dia for descoberto vai ser ótimo -, mas sim como esse quadro era possível dentro da cultura brasileira daquele momento. Mas assim como nos crimes, existem pistas falsas. O quadro era chamado de A Baiana, mas esse é um nome, não tem nada a ver com a origem do quadro. Pode até ser uma baiana, mas não quer dizer que seja de fato uma baiana. Os historiadores da arte têm muito o que aprender com romance policial. É uma leitura que eu aconselho a todos os historiadores da arte.
JU – Como o senhor vê o fato de Pedro Américo colocar um herói despedaçado no quadro, naquele contexto histórico, logo depois do advento da República?
Coli – Não se trata ali de uma crítica à República, mas de uma visão que se quer reflexiva sobre a história. Interessante é que Pedro Américo tem um irmão, chamado Aurélio de Figueiredo, que pinta Tiradentes como um misto de mártir histórico e mártir sagrado. O quadro tem um cadafalso parecido com o de Pedro Américo, visto de baixo para cima, exaltando a figura do herói que será enforcado. Ou seja, fabrica uma imagem que vai no sentido do que a recente república então desejava.
Pedro Américo não era um republicano militante, nem um monarquista militante. Ele tinha uma posição singular quando pintou o quadro. A formação intelectual do artista tem aspectos interessantes. Ele fez a pintura mais célebre de herói brasileiro, Pedro I no Grito do Ipiranga, que é a grande celebração heróica brasileira. Por outro lado, também fez a Batalha do Avaí, na qual o herói desaparece completamente. Eu digo que, neste quadro, a batalha é atropelada pela guerra e o que interessa ao pintor é a fúria guerreira. Ele se pinta dentro do quadro, como um louco, com uma baioneta ensangüentada. Ele está postado no centro do quadro, como soldado raso. Mas a batalha inteira é como um caos e não se encontra o herói. Os personagens estão devorados pela fúria guerreira, pela loucura dos homens.
JU – A tese revela a apropriação e a releitura, em diferenças instâncias (Estado Novo, ditadura, enciclopédias, artes plásticas), do caráter mítico de Tiradentes. À luz da historiografia tida como oficial (e/ou oficiosa), o que o estudo traz de elementos novos ao esmiuçá-las?
Coli – Um estudo como o de Maraliz nunca alimenta o imaginário, porque o imaginário é sempre alimentado por elementos simples e fortes. Eu fico muito impressionado, por exemplo, com textos filosóficos extremamente complexos, que por vezes engendraram mesmo uma intervenção direta no mundo. O que entra desses textos complexos na percepção das pessoas num uso “corrente” e mesmo na daqueles que conhecem a complexidade desses textos? Uma redução extremamente simplificada, porque a gente não consegue pensar complexamente o tempo todo e você precisa de motores simples para que a coisa funcione.
O escritor italiano Fogazzaro escreveu um romance chamado Malombra, que tem como personagem um refugiado alemão na Itália, um revolucionário de 1848. Esse personagem diz que é um refugiado porque existem palavras que são mecânicas, funcionam no cérebro, abstratamente, e outras palavras que são pneumáticas, que vêm do fundo do pulmão e se tornam um motor de ações. É um pouco isso: os heróis e os loucos precisam de convenções simples e diretas, de um objetivo claro para que a vontade individual e coletiva possa se canalizar.
Está claro que uma tese como a de Maraliz não vai trazer nenhum elemento novo para reforçar a imagem sumária de um episódio da história, já que é profundamente analítica, de extrema complexidade. Entre outras coisas, a tese mostra como esse quadro está inserido na tradição da cultura visual do Ocidente, que expõe o horror das torturas, dos martírios, das mortes violentas, como essa tradição toma uma configuração específica no final do século XIX. Todos esse elementos não dão uma palavra de ordem, ou seja, não dão um Tiradentes heróico nem vil. Mostram uma situação cultural complexa em torno da questão de Tiradentes no momento em que o quadro é pintado, em 1893. Para a história e para a reflexão, é uma contribuição imensa, mas para a imagem de Tiradentes, não traz nada.
JU – A tese transita por várias áreas e tem pontos de contato com três séculos, havendo imbricações na política, literatura, jornalismo, artes plásticas etc, do cenário nacional e internacional. Em que medida essa característica interdisciplinar enriqueceu o resultado final?
Coli – A História da Arte é um ramo da história da cultura e esse ramo pressupõe intersecções. Uma reflexão efetiva sobre história da cultura, amarra os elementos pertinentes ao objeto que você está tratando. Esses elementos pertinentes muitas vezes vêm de zonas as mais inesperadas. É o que eu disse sobre a questão da ética da obra. Que questões o quadro Tiradentes propõe? Uma delas é a questão da crueldade. Como uma obra de grande violência, de grande crueldade, é possível numa certa época? É possível porque entre outras coisas, existe uma sensibilidade cultural própria naquele momento. Como é que essa sensibilidade e esse gosto pelo horror se formaram nessa época? Eles estão estanques? Absolutamente não. Eles estão tanto em formas sofisticadas e elaboradas como em experiências mais correntes, como o jornalismo, por exemplo.
Uma das coisas que eu rejeito são as divisões impostas entre cultura elevada e cultura de massa, porque as obras têm contaminações inesperadas. Os artistas podem ver filmes de terror, ler gibis, ou podem ler coisas extremamente complicadas. E tudo isso forma um “clima de época”. Se você não consegue captar esse clima, está perdido, produzindo algo de mecânico e de esquemático.
Um dos aspectos que a Maraliz não quis trabalhar na sua tese, e acho que tinha razão, porque seria uma outra tese, é o aspecto da violência exposta como triunfo da civilização no Brasil. Para exemplificar, cito um autor que me é muito caro, Euclides da Cunha. No final de Os Sertões, enterra-se o corpo de Antônio Conselheiro, desenterra-se o corpo de Antônio Conselheiro, corta-se a cabeça de Antônio Conselheiro, e Euclides da Cunha diz, manda-se a cabeça para as multidões em festa no Brasil. Há também as cabeças cortadas nas fotografias de medicina legal dos cangaceiros. Isso, para mim, revela a dimensão subterrânea da presença da violência degustada como um prazer, e legitimada do modo o mais oficial. Tema bem interessante para uma tese: a questão da violência sobre o corpo na cultura brasileira no final do século 19, e no século 20.
JU - Qual a maior contribuição da tese para a História da Arte? Em que medida a pesquisa preenche lacunas e contribui para revelar nuances da cena cultural brasileira, sobretudo (mas não só) do século XIX?
Coli – Acho que essa contribuição se dá em dois aspectos. Primeiro, um aspecto pontual, trata-se de uma análise que completa com informações, novidades, compreensões, absolutamente novas, o que se sabe sobre a produção artística no Brasil no final do século XIX. Sobre o outro aspecto, a tese, que recebeu o Grande Prêmio Capes, por isso mesmo se torna um ponto de referência. Muitos pesquisadores vão ler, alguns talvez digam: “isso não é história, não é assim que se faz, o meu método que é o bom”. Mas elas leram e alguma coisa dessa leitura vai se infiltrar. Outras vão dizer: puxa, mas eu não havia pensado nisso, eu não sabia que se podia trabalhar desse jeito!
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