Num trabalho científico que guarda semelhanças com uma investigação policial, a pesquisadora Flávia Cristina Nery identificou possíveis funções da Ki-1/57, uma proteína reguladora do organismo humano da qual ainda pouco se sabe. O estudo verificou associação funcional e semelhança da Ki-1/57 com as chamadas oncoproteínas. Essas proteínas são codificadas pelos oncogenes que promovem a transformação celular e o desenvolvimento de tumores. O trabalho, que garantiu a Flávia o título de doutora em Genética e Biologia Molecular pelo Instituto de Biologia (IB) também lhe rendeu o Prêmio Capes de Teses, edição 2006, na área de Ciências Biológicas.
Estudo gera cinco artigos em revistas de prestígio
“Mutações em genes que controlam o ciclo celular transformam esses genes em oncogenes, que passam a codificar proteínas modificadas, chamadas de oncoproteínas. Essas modificações são características de células cancerosas”, explica a pesquisadora, que atualmente desenvolve pós-doutorado na Harvard Medical School, em Boston, nos Estados Unidos. Intitulada “Estudos funcionais e estruturais da proteína reguladora humana Ki-1/57”, a tese contou com orientação do pesquisador doutor Jörg Kobarg, que atua no Centro de Biologia Molecular Estrutural do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas (SP), onde Flávia Nery desenvolveu todo o trabalho experimental.
“Agora sabemos para onde olhar, pois temos como formular hipóteses sobre a função, desenhar novos experimentos e tentar descobrir a função dessa proteína no contexto celular”, diz Kobarg. O trabalho, que teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), motivou a publicação de cinco artigos em revistas internacionais, entre elas as prestigiosas The Journal of Biological Chemistry e FEBS Journal (antiga European Journal of Biochemistry).
O trabalho, apresentado em maio de 2005 no Instituto de Biologia da Unicamp e no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, teve como objeto de estudo a identificação das interações com outras proteínas humanas, e a análise das funções e também de aspectos estruturais da Ki-1/57. “As informações que temos até o momento sobre a Ki-1/57 indicam que ela provavelmente atua como uma proteína reguladora, possivelmente associada a processos celulares básicos, como a regulação da transcrição e o metabolismo de RNA”, explica Kobarg. Segundo ele, antes do estudo muito pouco se conhecia sobre as possíveis funções dessa proteína.
“O estudo da função e estrutura de qualquer proteína humana é um projeto de ciência básica importante”, pondera o orientador. “Somente quando soubermos a função e a estrutura de todas as proteínas humanas poderemos realmente entender, em nível molecular, como uma célula ou o corpo humano funcionam”, complementa. A tese mostrou que a Ki-1/57, que os pesquisadores isolaram de células malignas de linfoma de Hodgkin, tem características semelhantes às de oncoproteínas.
“Oncoproteínas são muitas vezes proteínas que atuam em vias celulares de sinalização e regulação”, explica Flávia. Essas vias, segundo ela, começam com receptores na superfície da célula, envolvem processos de interação entre proteínas, eventos de fosforilação (mecanismo central da regulação celular) e outras modificações das proteínas sinalizadoras e, em última conseqüência, proteínas reguladoras da transcrição que vão até o núcleo da célula onde elas ligam e desligam a expressão gênica de genes alvos específicos.
“Apesar de ainda não termos o quadro completo que explicaria todas as possíveis funções da Ki-1/57, identificamos que ela transita entre o citoplasma e o núcleo da célula, é alvo de fosforilação e interage com uma série de proteínas envolvidas na regulação da transcrição”, relata a pesquisadora. “Tudo indica que a Ki-1/57 participa de vias importantes de regulação da expressão gênica e, por conta disso, especulamos que ela também possa estar envolvida em processos que levam ao câncer”.
Embora a pesquisa tenha revelado resultados importantes, tanto Flávia quanto Kobarg dizem que ainda é cedo para classificar a Ki-1/57 como uma oncoproteína. “É bem provável que ela seja um regulador da expressão gênica, possivelmente no nível da transcrição”, diz a pesquisadora. Segundo ela, outros estudos devem demonstrar se a proteína atua mais como um ativador ou como um repressor da transcrição, podendo identificar genes alvos específicos. “Com sua interação e associação com a proteína supressora de tumor p53, que verificamos no estudo, ela se constitui boa candidata a oncoproteína”, arrisca.
Apesar dos indícios, Flávia ressalta que outros experimentos, combinando análises genéticas e epidemiológicas, precisam ser realizados em colaboração com oncologistas e pesquisadores clínicos. A pesquisadora explica que, de certa maneira, o grupo caminhou de maneira inversa. “Normalmente se tem um fenótipo ou uma doença e se chega a uma dada proteína ou gene; nós tínhamos a proteína e chegamos agora a possíveis funções”. Segundo ela, os estudos da função desta proteína abriram agora novos caminhos para entender como o mau funcionamento ou a ausência dela podem contribuir para o desenvolvimento de câncer.
Semelhante – A partir do estudo, também foi possível relacionar semelhanças entre a Ki-1/57 e uma outra proteína, chamada CGI-55, também estudada pelo grupo de Kobarg no LNLS. Segundo Kobarg, a Ki-1/57 e a CGI-55 são proteínas humanas e têm elevada semelhança na seqüência de aminoácidos (que compõem a cadeia polipeptídica). “Elas podem ter surgido ao longo da evolução por um evento de duplicação gênica e podem ter papéis parecidos ou até redundantes na célula humana”, explica. Ele admite, porém, que mais experimentos são necessários para esclarecer suas funções específicas. A parte do estudo sobre a proteína CGI-55 e suas interações foi realizada por uma aluna de doutorado da Unicamp, Taíla Andrade Lemos, que defendeu sua tese em 2003, também pelo curso de pós-graduação em Genética e Biologia Molecular (IB).
Mesmo cauteloso com a interpretação dos resultados, Kobarg reconhece a importância da contribuição de Flávia. Segundo ele, a identificação das proteínas que interagem com uma dada proteína de função desconhecida, como a Ki-1/57, é o primeiro passo importante para o conhecimento aprofundado da sua função dentro da célula. “É como uma investigação criminal: após um crime a polícia entrevista os familiares e amigos da vítima para conhecer o círculo de amizade e a vida social desta última. Por meio da rede de interações com outras pessoas, torna-se possível reconstituir o crime, formular hipóteses, buscar motivos ou provas”, compara.
Na pesquisa que envolve a identificação das proteínas que interagem com a Ki-1/57, de acordo com Kobarg, ocorre o mesmo: “As proteínas também têm uma ‘vida social’ e interagem de forma muito específica com outras proteínas para realizar suas tarefas dentro da célula”, explica. O próximo passo, explica o cientista, será testar se a Ki-1/57 é um ativador ou repressor da transcrição e identificar quais são os genes alvos regulados por ela. “Para isso, vamos estimular ou inibir sua expressão em células humanas e depois realizar estudos de micro-arranjos utilizando ‘chips de DNA’ para descobrir genes cuja expressão foi alterada”. Como o perfil das interações da Ki-1/57 com outras proteínas foi descrito no trabalho apresentado por Flávia Nery, a principal conclusão até o momento é que ela está envolvida na regulação da expressão gênica e possivelmente no metabolismo de RNA.