A partir do final da década de 1990 e início do século 21, este mundo emaranhado passou a atrair um número crescente de pesquisadores, mas o mistério faz com que eles colham muito mais perguntas que respostas. Sendo assim para os cientistas, para nós que vivemos no mundo macroscópico onde tudo se enxerga e se mede, seja a dimensão, a densidade, a velocidade ou a incidência da luz , um trabalho intitulado “Estados quânticos emaranhados” traz a expectativa de conteúdo incompreensível. No entanto, no mundo ultramicroscópico, emaranhamento não significa confusão; ao contrário, oferece respostas para alguns desses fenômenos.
O emaranhamento, uma das propriedades fundamentais da mecânica quântica, é o objeto da tese de doutorado de Gustavo Garcia Rigolin, orientada pelo professor Carlos Escobar, do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp, e que ganhou o Prêmio Capes de Teses de 2006 na área de Astronomia e Física. Um prêmio que aluno e professor tomam como bandeira. “Além do reconhecimento pelo nosso trabalho, mais importante é mostrar ao público que existe gente trabalhando em informação quântica no Brasil, e razoavelmente bem, apesar das circunstâncias. Muitas descobertas serão feitas nos próximos vinte anos, especialmente em termos de experimentos e implantação de dispositivos, pois já contamos com embasamento teórico suficiente para isso”, comemora Gustavo.
“Temos uma pequena rede de pesquisadores em estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, mas ainda é incipiente. Agências de fomento deveriam criar mecanismos de indução a pesquisas em computação quântica, permitindo que esses jovens com a ajuda de cientistas experientes se dediquem a isso em tempo integral. Em comparação com China e Índia, para citar apenas países emergentes, o esforço do Brasil é ínfimo”, critica Escobar. Segundo o professor, mesmo que os estudos teóricos sejam mais densos em outras partes do planeta, ainda não se idealizou um dispositivo que permita a prática do conhecimento acumulado. “Portanto, o nosso país se encontra em pé de igualdade com os demais”, assegura.
A pesquisa premiada pela Capes, realizada no Departamento de Raios Cósmicos do IFGW, já rendeu dois artigos de destaque na Physical Review, o que comprova sua relevância no meio científico. Ao leigo, Gustavo Rigolin começa explicando que a Teoria Quântica da Informação, recém-criada, é constituída por três grandes frentes de pesquisa: a computação quântica, a comunicação quântica e o emaranhamento quântico. “Na verdade, as três áreas se interpenetram e essa divisão é um tanto arbitrária”, ressalva. De fato, o estudo do pesquisador em torno do terceiro vértice, o emaranhamento, contribui tanto para a computação como para a comunicação quânticas.
Uma comparação entre os computadores de hoje e os sonhados computadores quânticos, também oferece ao leigo uma idéia do que perseguem os cientistas. “Para fatorar um número gigantesco, como os utilizados em protocolos de segurança de transações comerciais, o computador clássico pode levar dezenas de anos. Uma operação da mesma dimensão, envolvendo bits quânticos ao invés dos bits atuais, seria realizada em tempo exponencialmente menor, talvez em minutos”, afirma Gustavo.
Convém esclarecer que o bit clássico possui o valor zero ou o valor 1, ao passo que o bit quântico ou qbit (pronuncia-se “qiubit”) pode assumir o valor 0 e 1 ao mesmo tempo. “Utilizando-se “n” qbits temos “2n” valores possíveis, em oposição aos “n” valores de “n” bits clássicos. Assim, “n” qbits possuem um espaço exponencialmente maior, multiplicando a potência do computador quântico”, explica Gustavo. Este salto astronômico na capacidade e que inclusive gera dúvidas quanto à possibilidade de se criar os dispositivos para tanto está estreitamente relacionado com o emaranhamento quântico.
Correlações Carlos Escobar explica que no mundo invisível as correlações são bem mais fortes, como no caso dos dados emaranhados para somarem seis. Para dar um exemplo de correlação no sistema clássico, aqui no nosso mundo, Escobar imagina um amigo destrambelhado, que gosta de usar meias de cores diferentes nos pés: se põe uma meia branca no pé direito, a do esquerdo será azul; meia amarela no direito, meia verde no esquerdo. Assim, basta ver o pé direito para saber a cor da meia do pé esquerdo. “Acontece que a correlação quântica não é tão simples. Não se trata de uma cor ou outra, mas de uma cor e outra. A mecânica quântica não atribui propriedades com valores definidos às grandezas, e sim probabilidades para que essas grandezas sejam observadas. Tais correlações, difíceis de entender do ponto de vista clássico, são a essência do emaranhamento quântico: o todo não é a soma das partes; o todo possui mais informações do que cada uma das partes”, observa o professor.
Nesse ponto, Gustavo Rigolin lembra um famoso experimento mental proposto em 1935 por Erwin Schrödinger, um dos fundadores da mecânica quântica. Segundo aquele cientista, uma partícula microscópica podia estar em uma superposição de várias posições. Daí, o fato de um átomo ocupar dois lugares ao mesmo tempo, desafiando o senso comum. Schrödinger descreveu então a historinha do gato preso em uma caixa e que seria morto por um dispositivo perverso, caso um átomo radiativo presente no ambiente se desintegrasse. Ao entrar em uma superposição dos estados, a de “não desintegrado” e “desintegrado”, o átomo radiativo produziria um gato que estaria morto e vivo, simultaneamente. “No mundo quântico microscópico há estados que podem estar acontecendo ao mesmo tempo. Esse aspecto espanta as pessoas, mas forma o arcabouço teórico do emaranhamento quântico, que possui várias aplicações”, diz Gustavo.
O trabalho A tese de doutorado, na opinião do professor Escobar, é bem completa. A primeira parte mostra como quantificar o grau de emaranhamento e caracteriza as correlações quânticas. A segunda parte discute aplicações do emaranhamento na computação quântica, na criptografia quântica e no teletransporte, e ainda em sistemas realistas. “O emaranhamento é como se fosse a ‘energia’ do computador quântico ou de protocolos de comunicação quântica. Ou seja, quanto mais emaranhamento, mais rapidamente será realizado um processo de computação e mais segura será a transmissão de protocolos”, observa Gustavo.
Em relação às aplicações, o autor da pesquisa afirma que haveria dois usos importantes das correlações quânticas. Um deles na própria computação quântica, visando a criação de protocolos para a solução de problemas que os computadores de hoje demorariam muito tempo para obter. O outro uso seria no teletransporte, que na verdade é um modelo para transmitir a informação. “Muita gente logo pensa no doutor Spock, da série Jornadas nas Estrelas, onde a matéria é teletransportada. Na verdade, no teletransporte quântico trata de transmitir a informação sem transportar o sistema físico para outro ponto distante”, brinca o professor Escobar.
Gustavo Rigolin reforça que, apesar do nome pomposo, teletransporte implica, por exemplo, transferir as características de uma partícula para outra partícula, à distância, o que já foi conseguido experimentalmente entre dois átomos. A tese de doutorado, além de aferir o quanto de emaranhamento é necessário para isso, revelou que é possível a transmissão das informações de várias partículas simultaneamente. Gustavo informa que a criptografia quântica, em si, não foi objeto de estudo, pois nem todos os protocolos utilizam o emaranhamento. Porém, existem protocolos de criptografia que se utilizam do emaranhamento, reforçando a importância de se quantificar e caracterizar o emaranhamento quântico.