Em seu mais recente romance, Cérebro mente, Gastão Wagner brinca com estudiosos que se dividem em dois grupos: os que atribuem o comportamento humano a funções biológicas, à constituição e ao funcionamento de cada cérebro, e os que consideram esse comportamento oriundo da mente, que resulta da interação do indivíduo com o ambiente. Ao utilizar no título um jogo de palavras, “Cérebro/mente” (o livro inicialmente se chamaria “Torre de Babel”), o autor traz à tona uma das grandes contradições da pós-modernidade: o excesso de informações. “Elas mais confundem do que esclarecem”, diz.
“Eu vinha comentando com o escritor e médico Moacyr Scliar, que também atua na área de saúde pública, minha intenção de explorar num romance alguns paradoxos da tragédia contemporânea. Um deles é este excesso de informações nas publicações, na Internet e na mídia em geral. Essa profusão dificulta a seleção e não conduz, necessariamente, ao conhecimento”, explica Wagner. Ao mesmo tempo, o autor considera a questão muito ligada à área da medicina, da psiquiatria, envolvendo uma polêmica antiga sobre cérebro e mente: “O nosso comportamento é determinado pela genética ou resulta das relações familiares e sociais? Resolvi montar uma história em torno disso. A ilustração da capa, que mostra um grupo familiar envolvido pelo cérebro, já sugere essa dicotomia”, observa.
O livro conta a história do neurologista e professor Lógicus da Silva e do seu meio-irmão René de Toledo e Camargo, nomes que remetem ao positivismo. Cientista renomado, Lógicus acredita ter descoberto o “fator frontal” particular conformação cerebral que dota seus portadores de grande capacidade empreendedora e de previsão do futuro. Para estudar o comportamento desses portadores, o médico constrói um projeto que promove a interdisciplinaridade ao nível máximo. O meio-irmão, por sua vez, aplica a descoberta do “fator frontal” à administração de empresas e cria o método de “reengenharia emocional”, com a pretensão de utilizar fundamentos neurocientíficos na gestão de pessoal.
As peripécias acontecem no Instituto de Neurociência (INC), hospital-laboratório de uma universidade. A vida acadêmica serve de pano de fundo. “No meio de tudo isso, um detetive perplexo, Vigil Dedalus, tenta esclarecer uma morte misteriosa. Mas o acúmulo de informações, o efeito ‘torre de Babel’, embaralha as investigações. O mesmo efeito tolhe a pesquisa cientifica. Além disso, como o cérebro mente e faz trapaça, policiais e cientistas vêem-se desnorteados”, conta Gastão Wagner.
O autor explica que quis usar a literatura para expor os dilemas da ciência contemporânea, entre os quais o fato de se atribuir à genética o lenitivo para muitos dos males. Daí a brincadeira do título: cérebro/mente. “Preocupam-se com a mente os que valorizam o social, o subjetivo. O cérebro é mais valorizado pelos geneticistas, médicos, positivistas. A determinação genética existe, mas não de forma absoluta. A “torre de Babel” pós-moderna é virtual, as informações são acumuladas em arquivos eletrônicos e, no romance, os personagens não sabem o que fazer com o volume de informações. Eles acabam enganados por seus cérebros, mas isso já faz parte do suspense...”, interrompe o médico.
Humor Gastão Wagner recorre a preceitos da filosofia clássica (Sêneca, por exemplo, é um dos autores mencionados) para alertar “que se deve aprender a procurar, selecionar, focar e analisar as informações com objetividade. O livro diverte, é de leitura fácil e estimula as pessoas à reflexão”, afirma o autor, como base nas opiniões de quem já leu o romance.
O humor está sempre presente na obra, assim como a compreensão pelo ser humano, como ressalta na contracapa o professor Jorge Coli, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp: “Os personagens são desenhados com contornos firmes. Não têm ações de fato espontâneas e naturais. Têm reações: um dos motores melhores é o ressentimento. Nesse livro, o caráter cáustico bem presente não vem desprovido de uma generosidade terna. As ações se encadeiam numa lógica rigorosa e perfeitamente enlouquecida. Mistura constante de humor e de mal-estar no mundo que brota destas páginas”. As ilustrações de Cérebro mente são de Daniel Braga Campos, que estudou Artes na USP e é filho do autor.
Saúde e letras Gastão Wagner formou-se em Medicina na UnB, universidade concebida por Darcy Ribeiro: “Era uma grande universidade multidisciplinar em que se aprendia medicina e se adquiria uma visão geral do mundo”. O gosto pela literatura o levou a freqüentar boa parte do curso de Letras. A atuação na saúde pública conduziu o médico aos ensaios e a vários títulos que assina como autor ou co-autor.
Este é o quarto romance de Gastão. Equivoco, uma história alegórica da esquerda brasileira na segunda metade dos anos 1970, narra o drama de um pai comunista à procura do filho desaparecido. Calidoscópio retrata uma cidade interiorana dividida entre resistir ou render-se aos encantos da modernização da sociedade brasileira no final dos anos 1950. Tomar a Terra de Assalto é um livro em que as esquerdas, no paraíso, anseiam tomar a Terra.
Gastão Wagner já arquitetou o próximo romance. Vai abordar as utopias, dificuldades e experiências na política e na gestão pública de sua própria geração. Pessoalmente, o autor acumula dois anos como secretário da Saúde em Campinas, no governo do prefeito Antonio Costa Santos, e mais dois anos como secretário executivo do Ministério da Saúde. “Se grande parte da minha geração foi cooptada e colonizada e se integrou às instituições, não se pode negar sua influência nas mudanças que vieram posteriormente. O mundo depois dela não é o mesmo. É um tema que dá literatura”, finaliza.