Edição nº 540

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 01 de outubro de 2012 a 07 de outubro de 2012 – ANO 2012 – Nº 540

Milho, alimento de uma
civilização em movimento

Cultura alimentar paulista é tema de dissertação de mestrado defendida no IFCH

A constatação da pesquisadora Rafaela Basso de que a famosa culinária mineira – tão valorizada pelo milho e a carne de porco – tem sua origem em São Paulo foi considerada uma “blasfêmia” por um graduando da aula sobre o Brasil Colônia, no curso de História da Unicamp. “A motivação do historiador é buscar um pouco dessas origens”, diverte-se a autora da dissertação de mestrado intitulada “A cultura alimentar paulista: uma civilização do milho?”, orientada pela professora Leila Mezan Algranti, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).

Foi ao estudar as práticas alimentares dos habitantes do Planalto do Piratininga, no período que vai da segunda metade do século 17 à primeira metade do século 18, que Rafaela pôde acompanhar os bandeirantes pelas trilhas marcadas por grãos de milho até as minas descobertas em Goiás, Mato Grosso e nas Gerais. “Nunca tive muito talento na cozinha, mas sempre gostei de comida e, daí, meu interesse pela história dos alimentos. A ideia de pesquisar os hábitos alimentares na São Paulo do período colonial surgiu ainda na graduação.”

Diante da escassez de estudos acadêmicos focando a história da alimentação no Brasil, a pesquisadora foi trabalhando com autores da São Paulo Colonial que em certos momentos descreviam a cultura e os hábitos da população, tocando também na alimentação. “Esses autores atentaram sempre para uma especificidade de São Paulo, que teria uma cozinha colonial diferente das outras regiões da América portuguesa, por conta da presença do índio e do milho, que é um cultivo ameríndio.”

Entretanto, ainda na graduação, Rafaela Basso desenvolveu duas iniciações científicas sobre o tema e notou uma contradição: se os historiadores descreviam o milho como fundamental, quando ela foi buscar efetivamente os documentos históricos, o alimento não aparecia. “Defini então a hipótese para o meu mestrado: haveria uma civilização do milho na São Paulo colonial? Trabalhar com o conceito de civilização significava abordar os alimentos segundo a sua importância econômica e cultural para os habitantes.”   

De acordo com a historiadora, o milho começa a aparecer na documentação em um período bem específico, por volta de 1670, sobretudo em requerimentos aos camaristas (vereadores) solicitando o envio do grão para as expedições sertanistas dos paulistas. “As atas da Câmara foram fundamentais para a pesquisa. Eram sempre pedidos de socorro para expedições no sertão do Sacramento e nas regiões das minas que iam sendo descobertas. O primeiro aspecto que chama a atenção, portanto, é que a importância econômica do milho estaria no abastecimento de pessoas em situação de vida provisória: nas incursões ao interior e na colonização das novas áreas.”

A ideia de que a culinária mineira é uma extensão da culinária paulista condiz com o fato de que os bandeirantes levaram também para as Gerais as práticas alimentares da vida em movimento. “Eram alimentos de trato e consumo rápidos; culturas rotativas como milho, feijão e abóbora. Os bandeirantes perceberam que o milho, além de barato, se reproduzia em ciclo vegetativo de três meses, dispensava cuidados da terra e podia ser levado em grãos nas expedições. Ao passo que a mandioca, cujo ciclo é bem maior, tinha que ser levada em ramas, dificultando o transporte. Eles plantavam o milho sertão adentro e depois alguns voltavam para colhê-lo, quando isso não era feito por outra expedição que vinha atrás no comboio. Era um processo dinâmico.”

Práticas culinárias

Em relação às práticas culinárias e aos usos do milho em si, Rafaela Basso observa que a documentação do período é muito árida e que apenas no século 19 viriam os menus, livros de receitas e manuais de cozinha. “Por isso, minha fonte mais rica foram os relatos de viajantes para as regiões das minas – Relatos Sertanistas, Relatos Monçoeiros e o Códice Costa Matoso. O Códice, particularmente, reúne documentos referentes às expedições paulistas e aos primeiros núcleos de povoamento em direção às Gerais, descrevendo a vida no sertão e também os usos do milho na região.”

De acordo com a autora da pesquisa, os colonos consumiam muita canjica, que é o milho simplesmente pilado (sem farinação), cozido em água e que dispensava condimentos. Também consumiam o grão na forma de broa, doce ou a própria espiga assada na brasa, como faziam os indígenas. “Posteriormente, viajantes descreveriam o milho como comida típica dos paulistas, por causa da pobreza daqueles habitantes – pobreza que deve ser relativizada, já que o hábito se devia mais à situação de vida provisória. O milho podia não ser o ‘pão da terra’ dos paulistas, mas na mobilidade, era.”

Rafaela ressalta, ainda, que naquelas condições o milho sempre esteve associado com o feijão e a carne de porco. “Toda pessoa tinha um porco no quintal. Era uma carne acessível aos pobres e mais saudável, já que podia ser mais bem conservada, como no caso do torresmo dentro da farinha. Já a carne de vaca era cara, sendo que a documentação mostra muitos moradores reclamando do preço e do produto estragado. Fazendo um contraponto com os dias hoje, temos a comida da fazenda (o tutu e a carne de porco), culinária que se tornou regional porque os mineiros souberam valorizar este patrimônio.”

 

O grão no âmbito

da questão cultural

 

Ao mesmo tempo em que ia localizando o milho nas regiões de minas descobertas pelos paulistas, a historiadora Rafaela Basso observou que na Vila de São Paulo se comia muito pão de farinha de trigo, vinho, azeite e aguardente, num padrão de consumo semelhante ao de outras regiões da América portuguesa. “Isso me levou a problematizar se a alimentação dos paulistas era tão específica como diziam os autores do período colonial. Nos inventários – documentação que utilizei para pesquisar a alimentação dentro das residências da Vila –, o milho quase não aparecia.”

A explicação encontrada pela pesquisadora  é que, quando pessoas morriam, nos inventários eram arrolados somente alimentos de importância comercial: havia muitos registros de roças de trigo e botijas de azeite e de vinho, todos com alto valor atribuído. “O milho, quando arrolado, estava em sítios onde se colhia alimentos para os plantéis de escravos indígenas. Da mesma forma, os inventários não trazem utensílios como o pilão, em contraposição aos moinhos construídos pelos mais abastados. A ausência de utensílios de origem europeia significava que o grosso dos moradores consumia o milho da mesma forma que os índios: pilado na canjica ou assado.”

Também havia, segundo Rafaela, uma questão cultural: a necessidade dos portugueses que chegavam ao novo mundo de se distinguir em todo momento dos nativos e depois dos africanos. “A comida também servia como fator de diferenciação e, quando eles podiam, evitavam consumir milho, feijão ou mandioca. É possível perceber esta faceta também nas atas da Câmara, em que moradores protestam contra o preço do trigo, que os impede de consumir o pão branco, restando no mercado apenas o pão de rala (de trigo misturado a cereais inferiores como mandioca e milho).”

A historiadora informa que em várias ocasiões, sem a opção do trigo e de outros alimentos europeus, a elite tinha que comer o mesmo que os nativos, mas ainda assim de forma diferenciada, como uma canjica mais fina, adossada, salgada ou temperada. “Os inventários sugerem que a mandioca era preferida frente ao milho, por conta do beneficiamento mais elaborado e por ser mais alva. Se tinham que escolher, eles desprezavam o milho, amarelado e pilado. Isso significa que a ideia da aclimação – de que os europeus se adaptaram aos alimentos nativos – não foi devidamente problematizada por Gilberto Freyre. Não foi bem assim, havia um conflito, uma resistência.”

Um dos poucos documentos registrando a vida em residências da São Paulo colonial, de acordo com Rafaela Basso, é de autoria do padre memorialista Manuel Fonseca, que descreve o dia-a-dia de outro padre, enaltecendo sua bondade e santidade, além da abstinência: “Era o seu comer parco e vil, usando muitas vezes o feijão e a canjica, guisado especial de São Paulo e muito pobre de nutrientes”, lê em voz alta a pesquisadora. O projeto de doutorado de Rafaela Basso deve versar sobre a comida dos paulistas no século 19, com a chegada da Corte portuguesa, dos viajantes estrangeiros e dos livros de culinária.

 


Publicação

Dissertação: “A cultura alimentar paulista: uma civilização do milho?”
Autora: Rafaela Basso
Orientadora: Leila Mezan Algranti
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)

Comentários

Comentário: 

Parabéns pelo sucesso do tema desenvolvido no seu mestrado, principalmente pelo linguagem didática que você ultiliza o que proporciona que todos sejam capazes de entender o tema abordado.

lianeuchoga@gmail.com

Comentário: 

Magnífico trabalho, Professora Rafaela!
Sem medo de ser feliz, pode tirar a interrogação do título da sua tese.
Saudações,
Moacyr Castro
Jornalista - Ribeirão Preto

jequitis@uol.com.br