Edição nº 592

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 31 de março de 2014 a 06 de abril de 2014 – ANO 2014 – Nº 592

Da noite às trevas


O golpe de 64 provocou impactos de diversas ordens no sindicalismo brasileiro. Foi um momento de ruptura de um projeto nacional-reformista que estava sendo gestado desde 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, e que ganhou densidade nos anos 60, com João Goulart.  No instante em que o país avançava para a execução de reformas com alguma profundidade, os militares criaram o mito do comunismo, que nada mais foi que uma enorme falsificação da história. Com a intervenção militar, apoiada por amplos setores da burguesia, mais a simpatia das classes médias conservadoras, os sindicatos passaram a ser controlados pelo Ministério do Trabalho, por meio de interventores. As tentativas de resistência foram brutalmente reprimidas. Foi um período no qual o sindicalismo mergulhou nas trevas. O relato, em tom eloquente, é do sociólogo Ricardo Antunes, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Na entrevista que segue, ele analisa, a pedido do Jornal da Unicamp, as consequências do regime de exceção para o movimento sindical do país.

Nos anos 60, conforme o docente, praticava-se no Brasil uma tentativa de sindicalismo autônomo, ainda que este mantivesse um razoável grau de dependência do Estado. Antunes lembra que a estrutura sindical brasileira foi criada por Getúlio Vargas, que buscava travar o surgimento de um sindicalismo independente, principalmente aquele de matiz socialista ligado ao PCB. “Getúlio agiu duramente contra esse modelo sindical. Isso não significava, porém, que os sindicatos se deixassem controlar totalmente. Havia um movimento de mão dupla. O Estado exercia um dado controle sobre a classe trabalhadora e esta, por intermédio dos sindicatos, pressionava o Estado”, afirma.

Naquele momento, diz o professor do IFCH, a estratégia que o movimento sindical de esquerda encontrou para defender seu ideário foi ingressar na estrutura sindical, com o propósito de transformá-la. Assim, quando os governos apresentavam certa flexibilidade, as duas partes se sentavam e conversavam. Quando a posição era intransigente, como no governo Dutra, as autoridades normalmente reprimiam as entidades sindicais e as colocavam na ilegalidade. “Esse ciclo de lutas, que atingiu o apogeu em 64, estava no centro de uma disputa que vinha desde os anos 30. Havia um projeto de caráter nacional-reformista, que tinha o apoio de setores burgueses e a simpatia de setores populares, e outro que propugnava a internacionalização da economia brasileira, capitaneado pela UDN e pelos liberais, o que vale dizer pela direita”, sustenta o sociólogo. 

Pressão dos EUA
Esse embate, segundo Antunes, teve desfecho com o golpe. O docente observa que havia naquele momento uma pressão por parte dos Estados Unidos para desestabilizar o governo de João Goulart, que era visto como reformista. “O curioso é que em 64 o Brasil não estava na iminência de uma revolução socialista. Nem mesmo o PCB a defendia. O partido reivindicava, isso sim, um governo democrático e popular. As Ligas Camponesas, por seu turno, exigiam reforma agrária. A despeito disso, o golpe foi dado, com claro significado contrarrevolucionário. O resultado foi que os militares não apenas recuperaram, mas também aprimoraram e intensificaram a estrutura sindical coibidora e repressora criada por Vargas. Foi quando o sindicalismo brasileiro mergulhou numa longa noite”.

A partir de então os sindicatos passaram a ser controlados pelo Ministério do Trabalho. Houve algumas tentativas de resistência, como as greves de Contagem e Osasco em1968, que foram brutalmente reprimidas. “Foi quando o sindicalismo saiu da noite e mergulhou nas trevas. O período compreendido entre 68 e 74 foi tenebroso. Os sindicatos e a esquerda foram devastados e a resistência armada, massacrada”, define o professor do IFCH. Somente em meados da década de 70, continua, é que começou a se esboçar no país uma nova variante sindical, que não era nem a trabalhista e nem a comunista pré-64 e nem tampouco a identificada com a extrema esquerda de 68.

Era, na classificação do docente, um novo sindicalismo. “Era um movimento menos político, que encontrou a sua maior expressão na figura do líder metalúrgico Luiz Inácio da Silva, o Lula, que na ocasião se dizia um ‘apolítico’. Lula e outros sindicalistas, como Jacó Bittar e Olívio Dutra, diziam: não dá mais, temos que quebrar a lei do arrocho salarial. O aspecto interessante desse posicionamento é que, mesmo que esses sindicalistas não tivessem essa percepção, a ideia de quebrar o arrocho era fundamental, pois ela significava romper também com a política econômica da ditadura que intensificava a superexploração do trabalho”.

A “triste ironia” desse fato, nas palavras de Antunes, é que essas lideranças diziam que queriam promover esse rompimento sem o uso da política. “Todos sabemos que, mais tarde, Lula viria a se transformar na expressão acabada do político tradicional”, sentencia. Num dado momento, destaca o sociólogo, esse “novo sindicalismo” começou a perceber que precisava, sim, criar um instrumento político para representá-lo, visto que nem o PCB e nem os trabalhistas cumpriam mais esse papel. Seus líderes, com Lula à frente, desejavam criar um novo partido, uma variante com algumas similitudes com o Partido Trabalhista da Inglaterra. “Em 1980, eles criaram algo original, que foi o PT, composto por diversas tendências e por uma massa de trabalhadores assalariados do mundo urbano e rural. Três anos depois foi fundada a CUT, algo espetacular à época, uma vez que o Brasil jamais tinha tido uma central sindical com vida longa, dado que todas foram duramente reprimidas. A partir daí, a luta sindical foi finalmente retomada”.

As greves realizadas no ABC paulista, no final de 1979 e início de 1980, no entender de Antunes, exerceram um efeito demonstrativo para o país. Depois delas, outras mobilizações de massa foram registradas. Em 1985, surgiu o movimento pelas Diretas, que saiu derrotado. “A década de 80 foi muito importante para o Brasil. Na sequência desses acontecimentos nasceu um novo proletariado e ocorreu uma expansão do funcionalismo público. Isso contribuiu para que a classe trabalhadora mudasse a sua forma de ser e ganhasse uma nova morfologia. Essas mudanças seguiram seu curso até 1989, quando a direita conquistou o poder com a vitória de Fernando Collor sobre Lula nas eleições presidenciais. Antes disso, porém, tivemos a Constituinte de 88, que foi limitada, mas serviu para mobilizar o país. Foram registrados avanços, embora as classes dominantes tenham criado uma zona pantanosa, que foi o Centrão. O fato curioso é que tudo isso ocorreu antes da chegada do neoliberalismo ao Brasil, ainda que ele já existisse na Europa”, situa o sociólogo.

Retornando ao episódio das eleições presidenciais de 89, Antunes afirma que o processo eleitoral foi vital, pois dividiu o país ao meio. “Eram dois projetos. Foi dificílimo para as classes dominantes encontrar alguém que pudesse vir a derrotar Lula. De repente, apareceu um Bonaparte tropical e descompensando, que era ligado a um grupo empresarial e político que concebia a politica como saque. Foi quando a Rede Globo, que na prática sempre atuou como um grande partido político nacional, decidiu jogar todas as suas fichas em Collor. O que se seguiu foi aquela cena forjada relacionada ao sequestro do empresário Abílio Diniz, na qual os sequestradores foram apresentados vestindo camisetas do PT. Também tivemos a famigerada edição do debate entre Collor e Lula, na qual a emissora mostrou os melhores momentos do primeiro e os piores do segundo. O resto dessa história todos nós sabemos como terminou”, encerra o docente do IFCH.