Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 31 de março de 2014 a 06 de abril de 2014 – ANO 2014 – Nº 592Passado a limpo
Com a pedra fundamental de seu campus lançada pelo primeiro presidente da ditadura, marechal Humberto Castelo Branco, e tendo como primeiro reitor Zeferino Vaz, ex-interventor do regime militar da Universidade de Brasília (UnB), a Unicamp tem uma “situação peculiar” entre as universidades públicas brasileiras, disse ao Jornal da Unicamp a presidente da Comissão da Verdade instalada pela Universidade, professora Maria Lygia Quartim de Moraes, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).
“Por um lado, houve sim perseguições e a interferência dos órgãos de repressão no campus, e é verdade que o Zeferino era um homem comprometido com a ditadura. Aliás, dificilmente uma universidade pública no Brasil poderia ter um reitor que não fosse do gosto dos militares”, disse ela. “Mas, ao mesmo tempo, a Unicamp foi uma universidade de acolhimento de perseguidos políticos”.
A Comissão da Verdade e Memória “Octavio Ianni” foi instalada em outubro do ano passado, e tem um programa de trabalho que prevê pesquisas em arquivos, bibliotecas, troca de informações com outras comissões de verdade e tomada de depoimentos. “A comissão tem a vantagem de contar com professores que são uma espécie de memória viva da Unicamp”, disse Maria Lygia. “O professor Wilson Cano (IE) e o professor Yaro Burian Júnior (FEEC) têm sido não só fonte de informações do passado, como mantiveram contato com algumas pessoas atingidas. A professora Ângela Maria Carneiro (IFCH) estudou na Unicamp e é testemunha, por exemplo, da invasão de 1981”.
Naquele ano, quando Paulo Maluf era governador de São Paulo, a Unicamp sofreu intervenção – oito professores foram exonerados de cargos de direção e 14 funcionários, demitidos, por meio de portaria assinada pelo então reitor Plínio Alves de Moraes. A ação provocou uma forte reação não só na comunidade acadêmica, mas também entre a população de Campinas e na imprensa nacional. Assembleias estudantis tomaram conta da Universidade e uma passeata de três mil pessoas foi às ruas centrais da cidade.Pressionados, os interventores acabaram renunciando aos cargos e a maior parte dos diretores originais foi reintegrada, por meio de liminares judiciais. O educador Paulo Freire foi escolhido reitor na consulta à comunidade, mas a eleição oficial recaiu sobre José Aristodemo Pinotti, nome acolhido pelo governador Maluf. Pinotti tomou posse, em abril de 1982, sob vaias dos estudantes, e uma semana depois tornou oficialmente sem efeito o ato original de Moraes que iniciara a intervenção.
Também membro da comissão, a doutoranda em sociologia Danielle Tega (IFCH) coordena os trabalhos de pesquisa em arquivos e entrevistas, com o apoio de estagiários. O conteúdo pesquisado abarca os nomes de alunos e professores da Unicamp que foram atingidos pela repressão, tanto no histórico congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) de Ibiúna, de 1968, onde cerca de mil estudantes foram presos, como também na década de 70; tenta reconstituir as redes de relações formadas no contexto da Unicamp do período, tanto em partidos como em entidades estudantis; e busca refazer a história dos estudantes expulsos do ITA que vieram parar na Unicamp, em 1976.
Em seu livro O Mandarim, em que narra a história das primeiras décadas da universidade, o jornalista Eustáquio Gomes escreve: “Numa tarde de setembro de 1976, dois agentes do Dops entraram no campus com mandado de prisão contra os alunos Clóvis Goldemberg, Marcelo Moreira Ganzarolli, Osvair Vidal Trevisan, Sérgio Salazar e Waldir Luiz Ribeiro Gallo (...) Os cinco estudantes tinham sido expulsos do ITA um ano antes por encabeçarem um movimento contra o processo de militarização da escola. Na época foram presos, torturados e depois soltos, mas nos três anos seguintes tiveram de responder a um tortuoso inquérito policial militar. Após a expulsão, todas as escolas de engenharia procuradas por eles rejeitaram seus pedidos de transferência, exceto a Unicamp”. O livro de Eustáquio é uma das fontes utilizadas pela Comissão.
“Quando falamos a verdade e da memória também estamos falando de um processo de produção de uma outra história que ficou reprimida pela ‘verdade oficial’ dos vencedores”, explica a presidente da Comissão da Verdade. “Um dos mais importantes objetivos da Comissão é o da transmissão dessa história, de seus personagens e dos ideais pelos quais lutaram. E das circunstâncias que levaram tantos jovens a pegarem em armas para resistir à ditadura”. As principais vítimas da ditadura na Universidade parecem ter sido professores e estudantes, disse Maria Lygia, reconhecendo que faltam dados sobre a repressão sentida pelos funcionários. “Esse é um tema que não podemos deixar de pesquisar”, reconhece.
“Nossa preocupação é uma ‘produção da verdade’ que comporta vários pontos de vistas e, principalmente, que nos permita entender melhor os mecanismos ocultos da repressão política militar e seus agentes, civis e militares”, disse ela. “Nesse sentido, nossa Comissão fez um convênio com a Comissão da Verdade Rubens Paiva da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e participamos de um grande coletivo de comissões universitárias de todo o país, o que tem permitido o compartilhamento de informações importantíssimas”.
Um dado surgido desse compartilhamento, destacado por Maria Lygia, é o da estrutura de funcionamento do SNI – o serviço de espionagem do governo federal durante o regime militar – e de seus órgãos subordinados. “Eu não tinha ideia da capilaridade do sistema de informações, que era também um órgão de coerção e obtenção de dados”, disse ela. “Outra consequência importante desse coletivo de comissões é que fechamos uma pauta em comum, evitando marcar eventos na mesma época e prestigiando os eventos de todos. Nessa pauta comum, um momento importante será o Tribunal Tiradentes, que foi organizado pela PUC-SP”. Realizado em 18 de março, no Teatro da Universidade Católica (TUCA), o tribunal, uma iniciativa da Comissão da Verdade da PUC de São Paulo, fez o julgamento da Lei de Anistia de 1979, que vem sendo invocada para garantir a impunidade de agentes da repressão.
Maria Lygia descreve da seguinte forma a ação da repressão dentro da Universidade, no regime militar: “A ditadura usava tanto das vias institucionais como do terrorismo de Estado. O objetivo era semear medo e comprovar o poder do aparato repressivo. A ditadura tinha seu sistema de informações em todas as instituições públicas, especialmente aquelas que reuniam os subversivos potenciais. E os estudantes eram os primeiros da lista”. O processo era semelhante em outras áreas da sociedade: “A Comissão Nacional está levantando os detalhes das trocas de informações entre a Fiesp e o Dops, sobre os potenciais inimigos do regime entre os trabalhadores. Muita gente perdeu o emprego por conta disso”.
A pesquisadora reconhece que ainda há sobras da ditadura – “entulho autoritário” – nas normas internas da Unicamp. “O levantamento do entulho já começou bem antes dos trabalhos da Comissão, e está sendo realizado pela atual administração”.
Juventude
“O interessante é que a juventude de hoje – essa que tem a idade que minha geração tinha por ocasião do golpe – revela-se muito interessada nesse passado e com maior empatia com os resistentes de ontem”, disse Maria Lygia. “Uma prova disso nós tivemos no processo de seleção para estagiários. A possibilidade de contratarmos quatro alunos como estagiários por tempo parcial concretizou-se no final do ano, e divulgamos pela Universidade a existência de um processo de seleção. Achei que em um dia entrevistaria os 10 ou 15 que apareceram e aí, para nosso completo espanto, a inscrição chegou a 130”.
O passo seguinte, explicou a professora, foi reunir todos os candidatos num anfiteatro e explicando o porque da Comissão e das pesquisas que seriam feitas, especialmente no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), da própria Unicamp. Estabelecido em 1974, a partir do acervo pessoal do pensador anarquista Edgard Leuenroth, o arquivo preserva documentos sobre a história do trabalho e da industrialização, do movimento operário, da esquerda, dos partidos políticos, da cultura e dos intelectuais, da questão agrária, dos direitos humanos, da imprensa, da opinião pública, dos movimentos sociais e da repressão política sob a ditadura militar.
“Foi bom ver como muitos desses jovens estavam interessados pelo tema e se propuseram a ajudar mesmo que sem bolsa. Assim, fomos reunindo um grupo de alunos e estagiários. E a Unicamp conta com o AEL, onde estão guardados arquivos fundamentais. Aí já começava o processo de transmissão e de compromisso dos alunos, de maneira que o golpe seja chamado de golpe e não de ‘revolução’; que o Estado assuma que foi terrorista nos anos da ditadura; e o significado e consequências de uma ditadura que realizou o que chamamos de modernização conservadora”.