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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 31 de março de 2014 a 06 de abril de 2014 – ANO 2014 – Nº 592Os paradoxos da massificação
A ditadura instaurada no Brasil a partir de 1964 viveu uma relação ambígua com a cultura e os intelectuais: se por um lado estimulou o desenvolvimento de uma indústria cultural brasileira, por outro reprimiu e perseguiu artistas, censurou conteúdos. “Artistas e intelectuais que se insurgiram abertamente contra a ditadura foram punidos com censura, prisão, tortura, exílio e até a morte; mas, paradoxalmente, o regime também soube dar lugar a muitos oposicionistas dos meios intelectualizados”, escreve o professor Marcelo Ridenti, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, no artigo “Caleidoscópio da cultura brasileira: 1964-2000”.
“Em paralelo à censura e à repressão política, a partir dos anos 1970, evidenciou-se um esforço modernizador que já se esboçava desde a década anterior, nas áreas de comunicação e cultura, com a atuação direta do Estado ou o incentivo público ao desenvolvimento capitalista privado”.
Ridenti está lançando a edição revista e atualizada de seu livro Em busca do povo brasileiro, artistas da revolução, do CPC à era da TV (ed. Unesp, 2014), e é coorganizador, com Daniel Aarão Reis e Rodrigo Patto Sá Motta, do livro A ditadura que mudou o Brasil – 50 anos do golpe de 1964 (Zahar, 2014).
Em entrevista ao Jornal da Unicamp, o pesquisador explicou que “a indústria cultural brasileira é impensável sem o tempo da ditadura. Porque ela foi basicamente sedimentada ali, com a generalização da economia de mercado, a ampliação do público consumidor, a mentalidade empresarial, além das instâncias que legitimam a própria atividade artística”, disse. E acrescentou: “A profissionalização dos artistas, em grande parte, vem do desenvolvimento da indústria cultural durante o período de modernização conservadora da sociedade brasileira” promovida pelo regime de 1964.
Essa “modernização conservadora” dava-se no contexto da crescente urbanização do país, que já vinha ocorrendo desde antes do golpe. “Havia um projeto maior, com o qual os militares estavam comprometidos, de modernização da sociedade, inclusive no aspecto cultural, educacional, uma modernização também das artes, no sentido de adequá-las ao mercado, de possibilitar a construção de carreiras e de um público consumidor para as artes” no Brasil, disse o pesquisador.
“A Globo e outras redes de televisão surgiram com programações em âmbito nacional, estimuladas pela criação do Ministério das Comunicações, da Embratel e de outros investimentos governamentais em telecomunicações”, escreve Ridenti no artigo “Caleidoscópio”. “Ganharam destaque várias instituições estatais de incentivo à cultura, como a Embrafilme, a Funarte, o Serviço Nacional de Teatro, o Instituto Nacional do Livro e o Conselho Federal de Cultura. A iniciativa privada também cresceu com o apoio do Estado. Estabeleceu-se uma indústria cultural televisiva, fonográfica, editorial, publicitária”.
Para que toda a empreitada pudesse funcionar, no entanto, era preciso mão de obra: artistas e intelectuais. “E essa mão de obra qualificada era muitas vezes de pessoas que compartilhavam de uma certa utopia revolucionária, em que se misturavam influências da revolução cubana, da resistência dos vietnamitas contra a invasão americana”, disse Ridenti ao JU. “Não dava para fazer um projeto de modernização sem mobilizar as pessoas mais capacitadas, e muitas delas tinham ideias de esquerda”.
Ambiguidade
Com o regime comprometido em desenvolver a cultura como negócio, era preciso que houvesse lucro para os empresários atrelados ao sistema. “Para isso, é preciso ter também um mercado consumidor de produtos culturais: pessoas que têm minimamente acesso às letras, ao mundo da cultura, ou a aparelhos de televisão e a rádio, jornais, revistas, então é preciso pensar o universo do público consumidor”, explicou o pesquisador.
“Isso se fez, no Brasil, com o aumento do nível de escolaridade da população, apesar da baixa qualidade média do ensino. Então há um processo ambíguo, que existe até hoje: de um lado envolve a democratização e, de outro, a massificação”.
O pesquisador lembra que, ao mesmo tempo em que há uma democratização do acesso à cultura – “e estou tomando aí no sentido positivo, de que mais gente se escolariza, se alfabetiza, chega a níveis maiores de educação, e que portanto o acesso à cultura se abre”, disse ele – ocorre uma massificação: “Uma padronização dos gostos, da criação de nichos de mercado para os vários setores de consumo cultural que vão surgindo na sociedade, dentro de uma lógica de produção cultural em série, para atender necessidades de mercado”.
De acordo com ele, a esquerda brasileira demorou a fazer a crítica da massificação, e muitos de seus membros embarcaram no processo, visto como parte do movimento histórico de desenvolvimento das forças produtivas. “No Partido Comunista, por exemplo, predominava essa tradição do desenvolvimento das forças produtivas, então havia uma aposta de desenvolver a economia e a sociedade brasileira, inclusive no aspecto cultural. O que envolvia o empenho dos comunistas na construção do cinema, do rádio e da televisão como indústrias que faziam parte do desenvolvimento mais geral do país”.
Nesse ponto, ao menos, parecia haver uma interseção de agendas entre o governo autoritário e a esquerda: “tomem-se de um lado os nacionalistas de esquerda que vinham da tradição varguista e os adeptos do desenvolvimentismo nacionalista do PCB; e, de outro lado, os generais. Eles eram bem diferentes”, disse Ridenti. “Mas todos tinham, em comum, esse ponto de que era necessário desenvolver o país com forte participação do Estado”. A crítica ao desenvolvimento cultural por meio da massificação só viria a ser feita mais tarde, a partir dos anos 70, mesmo assim por setores restritos dos meios artísticos e intelectuais. “Aparecia muito forte essa indiferenciação entre participar de um processo de democratização e da massificação da cultura. Ou seja, o avanço da indústria do cinema era tido por si só como positivo. Aumentar o mercado para a música brasileira era uma coisa positiva em si mesma”.
Censura
No artigo “Caleidoscópio”, o pesquisador lembra que o período entre a derrubada de João Goulart, em março de 64, e a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, foi marcado por uma “superpolitização da cultura”, que estava no Cinema Novo, nos teatros de Arena, Oficina e Opinião, na música popular brasileira, em romances como Quarup, de Antonio Callado. “Muitos buscaram participar da vida política inserindo-se em manifestações artísticas contestadoras, ainda toleradas com relativa liberdade de expressão até o AI-5”, escreveu o autor. “Havia militantes e simpatizantes de esquerda nos meios intelectuais e artísticos, que sofreram repressão comparativamente menor que os trabalhadores, graças a seu prestígio social e a sua origem de classe média, na maior parte apoiadora do golpe de 64”. Ridenti cita o crítico Roberto Schwarz, que chegou a falar em uma “relativa hegemonia cultural de esquerda”, nesse tempo. Tudo isso mudou, no entanto, com o Ato Institucional.
Até o AI-5, a censura baseava-se em leis que já existiam antes da ditadura, e que visavam muito mais aspectos morais que políticos. “A censura de 64 a 68 existiu, mas foi relativamente moderada. Por certo era mais exacerbada que antes do golpe. Agora, depois do AI-5, a coisa ficou muito pior”, disse ele. “A partir do fim de 68 a censura baixou mais pesada, interrompendo esse florescimento cultural, que continuou pelas frestas, depois”.
O pesquisador destaca que o regime não era contra as artes: ele censurava, seletivamente, alguns produtos culturais. “Então, o Chico Buarque não ficou proibido de cantar, embora muitas das canções dele tenham sido proibidas. Aliás, ele continuou a fazer muito sucesso. Era tudo muito ambíguo”. Ridenti lembra que a chamada música brega também foi censurada, “e fala-se pouco disso”.
Havia uma extensa organização burocrática para fazer a censura: documentos oficiais mostram que, em 1978, havia 45 técnicos de censura, além de 36 servidores administrativos. A Censura Federal examinou quase 22 mil peças de teatro durante a ditadura, das quais cerca de 700 foram proibidas na íntegra. Foram censurados 430 livros, 92 deles de autores nacionais, sendo 15 livros de não-ficção, 11 peças teatrais publicadas em livro, além de dezenas de textos literários, na maioria eróticos ou pornográficos.
Ridenti diz que muitos artistas mantinham uma relação ambígua com o regime, às vezes adotando uma postura de colaboração e, às vezes, de crítica. Até a dupla Don e Ravel, autora de canções patrióticas abraçadas pela ditadura, chegou a ser censurada. E mesmo artistas supostamente “alienados”, como os da Jovem Guarda, eram tocados pelo momento que o Brasil vivia.
“Roberto Carlos e Erasmo Carlos eram pouco politizados, foram até elogiados pelo regime. No entanto, se prestarmos atenção em algumas letras de suas músicas, veremos que expressavam algo mais amplo que acontecia na sociedade”, cita o pesquisador. “Por exemplo: a canção ‘Sentado à Beira do Caminho’, de 1969, diz: ‘Preciso acabar logo com isto/Preciso lembrar que eu existo’, é o cara sentado à margem dos acontecimentos, vendo os caminhões passando, assustado em meio ao turbilhão da modernidade imposta em moldes autoritários pelos donos do poder”.