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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 31 de março de 2014 a 06 de abril de 2014 – ANO 2014 – Nº 592A repressão sem fronteiras
A geração de militares latino-americanos responsável pela série de golpes de Estado que submergiu o Cone Sul – Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile – nas ditaduras surgidas entre os anos 60 e 70 do século passado tinha uma ideologia comum, e seus membros já estavam articulados entre si antes mesmo de chegarem ao poder, disse ao Jornal da Unicamp o professor José Alves de Freitas Neto, chefe do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e pesquisador de História da América Latina, na linha de pesquisa Política, Memória e Cidades.
“Eles já estavam unidos antes dos golpes. Houve uma geração de militares que foram formados nos Estados Unidos. Então, a doutrina de segurança nacional, que vai aparecer no Brasil, na Argentina, no Chile, não emerge do nada, emerge por conta dessas aproximações já conhecidas nesses países, mesmo tendo que superar desconfianças e desavenças internas anteriores”, explicou Freitas Neto.
O contexto dessa aproximação era o da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética, e se dava “para evitar riscos de golpes de esquerda, de um golpe socialista”, disse ele.
O pesquisador lembra que, na época em que se instauraram as ditaduras militares – a primeira, a do general Alfredo Stroessner, no Paraguai, começando em 1954, e a última, a argentina, a partir de 1976 –, os países do Cone Sul passavam por importantes transformações sociais: a urbanização crescente provocava tensões, migrações, o fortalecimento de sindicatos e o surgimento de novas demandas políticas, nem sempre bem aceitas pela elite existente e vistas, por alguns setores, sob o prisma da Revolução Cubana de 1959, encarada como esperança por alguns e ameaça por outros.
“Isso é um contexto que passa pela modernização das economias, num processo que envolvia a relação com o capital externo, com a questão do financiamento. E, do ponto de vista dos Estados Unidos, como grande potência e líder desse processo mundial dentro da Guerra Fria, tem a ver com o objetivo de manter o continente inteiro sem a influência do ideário comunista”, disse Freitas Neto.
“É esse discurso que, de alguma forma, é comum a todos esses países dentro do contexto dos anos 60. Então, aquilo que era uma série de rivalidades, em períodos anteriores, as disputas entre Brasil e Argentina, Brasil, Argentina e Chile, passou a ser trabalhado num contexto de cooperação, que foi, de alguma forma, articulado e encabeçado pelos Estados Unidos”, explicou o pesquisador.
“Não creio que a América Latina estivesse a um passo de tornar-se comunista”, disse ele. “Porém, esse discurso foi utilizado. O que podemos perceber é que, por uma questão de preparação dos militares, a escalada autoritária que temos dentro da década de 60, dos anos 70, começa bem antes. Se a gente olha para a história do Brasil, particularmente, os militares sempre tiveram uma atuação muito presente”.
Operação Condor
“Aqui no Brasil, estamos muito atrelados a pensar o fenômeno da nossa ditadura militar, esquecendo-nos de que ela não foi um episódio único e de que o Brasil, por ser o maior território, com um grande aparato militar, também influenciou e estimulou o que houve em outros países”, contou o pesquisador, falando da cooperação e da articulação entre os militares golpistas dos vários países. Freitas Neto cita, como exemplo, a revelação de documentos que mostram que os militares brasileiros já tinham estudos sobre como auxiliar na deposição do presidente chileno Salvador Allende, derrubado por um golpe militar em 1973.
“Tradicionalmente, estamos acostumados a pensar o Brasil como um país que não se envolve nas questões diplomáticas, que não se envolve nas questões internas dos países vizinhos. Isso é uma falácia extraordinária”, afirmou. “A memória da sociedade brasileira em relação às questões da política externa é sempre de uma certa distância, cada país resolve o seu caminho. E na ditadura militar ficou ainda mais visível que não é assim. Houve uma ingerência muito grande, seja por recursos, seja por apoio, seja, especialmente, por essa questão da logística e da troca de informações entre os regimes ditatoriais”.
“A Operação Condor foi uma aliança de caráter militar que previa a troca de informações e uma liberdade para atuação dos aparatos repressivos de cada país nos demais”, definiu ele. “Militares brasileiros poderiam entrar no território de Uruguai e Argentina, e vice-versa, só para dar um exemplo. Então, você tem a criação de uma rede de informações dentro do Cone do Sul, sobre quais as ameaças, ou quais as pessoas que seriam potencialmente perigosas para os regimes”.
Na questão da captura ou desaparecimento de “subversivos” de um dos países por agentes da repressão de outro, o historiador nota que “existia uma certa condescendência em relação aos regimes vizinhos”. “Ou seja: estamos todos do mesmo lado em relação a um inimigo comum. E esse inimigo comum, os comunistas ou qualquer ameaça nessa ordem, estão dentro do nosso território”.
Redemocratização
Assim como os militares e os agentes da repressão, as vítimas das ditaduras também se articularam em redes internacionais, o que ajudou a trazer a democracia de volta ao Cone Sul, disse o pesquisador. “Existia uma lógica de acolhimento entre as vítimas que eram perseguidas, e isso também circulou entre os países. Havia uma lógica de solidariedade internacional entre latino-americanos. Tanto que, por exemplo, os primeiros grupos em relação à solidariedade aos desaparecidos na Argentina emerge aqui em São Paulo”, lembrou Freitas Neto.
“Quando você tem uma pauta pela anistia no Brasil, em 1979, a Argentina está em plena repressão. Há temporalidades diferentes e as pessoas percebem que há um esgotamento desses regimes que já começava a se fazer visível”, disse ele. “Se, por um lado, as forças repressoras têm uma articulação, também houve a articulação entre as vítimas da repressão estatal”.
“Outro dado importante também tem a ver com a pressão dos exilados que passaram pela Europa e pelos EUA. Tem uma atuação importantíssima do presidente Carter”, lembrou Freitas Neto, em referência a Jimmy Carter, presidente dos EUA de 1977 a 1981 e ganhador do Nobel da Paz de 2002. “A sociedade norte-americana, ou as universidades que receberam exilados da América Latina, criaram comitês para que os Estados Unidos alterassem suas regras de apoio internacional. E é nesse sentido que ocorre a visita do presidente Carter aqui, quando ele fala publicamente em tortura e cobra esclarecimentos”. Os Estados Unidos ajudaram a instaurar as ditaduras do Cone Sul, disse o historiador, mas também tiveram um papel em sua remoção.
“Os Estados Unidos são uma democracia, na qual o governo sofre pressões internas. É um dado importante dessa articulação internacional pela redemocratização”.
Outra instituição normalmente citada como apoiadora dos golpes na América Latina, mas que também deu guarida à articulação internacional de vítimas e opositores das ditaduras foi, de acordo com Freitas Neto, a Igreja Católica. “É o mesmo caso dos Estados Unidos: se a Igreja ajudou o golpe, com as marchas religiosas, colocando 500 mil pessoas na marcha da família, depois veio uma reavaliação que tem a ver com a teologia da libertação, um fenômeno latino-americano, e outros discursos mais à esquerda. Ao mesmo tempo em que continuava a ter bispos delatores, que estavam atuando junto ao poder político, tinha outros que acolhiam os perseguidos”.
Mercosul
Para o historiador, tanto a aproximação dos aparatos burocráticos e diplomáticos dos Estados do Cone Sul, por conta da colaboração entre as ditaduras, quanto as redes internacionais de solidariedade entre perseguidos e opositores dos regimes ajudaram a pavimentar o caminho político para o Mercosul.
“As duas coisas funcionaram: as ditaduras, de alguma forma, aproximaram essas diplomacias e os serviços de inteligência, e por outro lado, havia as redes de solidariedade que fizeram com que pudéssemos tentar pensar minimamente um conjunto para a América do Sul”.
Lembrando a experiência da União Europeia, que começou a dar seus primeiros passos após a 2ª Guerra Mundial, e das ditaduras do Cone Sul, Freitas Neto disse que “sociedades que passaram por experiências traumáticas mais ou menos comuns podem olhar para seu passado e podem olhar para seu futuro, e pensar que elas podem ser mais fortes conjuntamente na vigilância de direitos, em projetos comuns de desenvolvimento e cooperação”.
“Não é pouca coisa estabelecer que uma das cláusulas do Mercosul é ser uma democracia. Claro que isso gera às vezes debates histéricos, mas não é pouca coisa em sociedades com tradições autoritárias e quebras de ordem institucional frequentes”, disse.
Memória
O Brasil, no entanto, fica atrás dos demais países do Cone Sul na questão da memória da ditadura. “A Comissão da Verdade brasileira é temporã”, disse ele, lembrando que Chile e Argentina já fizeram seus acertos de contas com o passado. “E é certo que o Brasil não teve uma cooperação, o Brasil não foi nenhum pouco parceiro das Comissões da Verdade do Chile e do Uruguai, nem da Comissão Nacional de Pessoas Desaparecidas da Argentina.”
Ele critica o fato de a Comissão da Verdade brasileira não ter historiadores em sua composição, mas considera seu trabalho “fundamental”: “Não tem como olhar para a frente sem conhecer ou ter um mínimo de clareza sobre os procedimentos e atuações que aconteceram aqui. E, nesse sentido, é central falar de uma ditadura civil-militar. Esse é um esforço que a universidade está criando, de chamar de uma ditadura civil-militar, porque a simples nomenclatura de ditadura militar exclui a sociedade civil, como se ela não tivesse sido, no mínimo, conivente. Não foram só os militares que atuaram, só os militares que reprimiram. Houve financiamento de empresas, atuação da imprensa favorável ao regime e delatores em diferentes níveis. Ao mesmo tempo, se inserimos os civis, não significa isentar as responsabilidades e o protagonismo dos militares, pois sem as armas, não haveria a ditadura tal como, dramaticamente, a sociedade brasileira conheceu”.