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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 31 de março de 2014 a 06 de abril de 2014 – ANO 2014 – Nº 592Na cartilha do mercado
O regime implantado pelo golpe civil-militar de1964 produziu uma democratização do acesso à educação no Brasil, mas dentro de uma lógica de vinculação da educação pública aos interesses do mercado e de estímulo e favorecimento à privatização do ensino, afirma o pesquisador Dermeval Saviani, professor emérito da Unicamp e coordenador-geral do Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil”, da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. Essa opção da ditadura acabou gerando uma situação na qual os professores da rede pública de educação básica são formados, majoritariamente, em instituições superiores de qualidade duvidosa, o que agrava o processo de desqualificação da escola pública, disse.
“Antes do advento da ditadura civil-militar, a oferta de ensino superior era maciçamente pública. Hoje 75% das vagas são preenchidas pelas instituições privadas, na sua maioria de caráter não universitário e de duvidosa qualidade, em contraposição às instituições públicas, na sua maioria constituída por universidades, que cobrem apenas 25% das vagas. Em consequência, no nível superior a qualidade está do lado da educação pública”, lembrou, em entrevista ao Jornal da Unicamp. “Com isso, a educação básica pública fica refém do ensino superior privado mercantilizado, sem possibilidade de resolver seus problemas de qualidade”.
Esse processo, diz Saviani, gera um “cruzamento perverso entre as redes públicas e privadas”. “Os membros das camadas populares têm acesso a um ensino público básico de qualidade insatisfatória, o que faz com que, se quiserem ter acesso ao ensino superior, tenham de pagar por um ensino privado também de baixo nível. Em contrapartida, os membros das elites podem pagar por um bom ensino básico privado, o que lhes permite ocupar as reduzidas vagas das universidades públicas de boa qualidade”.
Reforma
Em artigo publicado nos Cadernos Cedes em 2008, intitulado “O Legado Educacional do Regime Militar”, Saviani retraça a história da reforma educacional implantada pelo regime, começando pela Constituição de 1967, que eliminava a exigência de um gasto mínimo com educação – restabelecido em 1969, mas apenas na esfera municipal –, passando pela Lei da Reforma Universitária de 1968, pelo decreto de regulamentação dessa lei, de 1969, e pela lei de 1971 que, como resume o artigo, “unificou o antigo primário com o antigo ginásio, criando o curso de 1º grau de oito anos e instituiu a profissionalização universal e compulsória no ensino de 2º grau, visando atender à formação de mão de obra qualificada para o mercado de trabalho”.
O fim da vinculação orçamentária obrigatória em nível estadual e federal trouxe uma queda no investimento em educação, enquanto que a unificação de primário e ginásio ajudou a ampliar o acesso ao ensino. “A fusão do antigo primário com o antigo ginásio, criando o ensino de primeiro grau, foi um passo importante para a ‘democratização’, ao eliminar a barreira do exame de admissão ao ginásio, elevando a escolaridade obrigatória de quatro para oito anos”, disse o pesquisador.
Nos primeiros anos da ditadura houve uma grande ampliação do acesso à educação, principalmente ao ensino superior, como relata o artigo de 2008: “Entre 1964 e 1973, enquanto o ensino primário cresceu 70,3%; o ginasial, 332%; o colegial, 391%; o ensino superior foi muito além, tendo crescido no mesmo período 744,7%”. O texto destaca ainda que “entre 1968 e 1976, o número de instituições públicas de ensino superior passou de 129 para 222, enquanto as instituições privadas saltaram de 243 para 663”. Esse aumento da participação privada, escreve o autor, “foi possível pelo incentivo governamental, assumido deliberadamente como política educacional”.
“Os grupos privados atuantes no ensino foram beneficiados, desde o Império, pelas ideias positivistas e liberais, que representavam o campo progressista e pela Igreja Católica, que representava o campo tradicional, conservador”, explicou Saviani. “Parece paradoxal que positivistas e liberais tenham reforçado os interesses privados aliados à Igreja, mas isso ocorreu tendo em vista a defesa, pelos positivistas, da completa desoficialização do ensino sob o argumento da liberdade das profissões e a posição dos liberais que, em nome do princípio de que o Estado não tem doutrina, chegavam a advogar o seu afastamento do âmbito educativo. Nesse contexto foi se constituindo um forte grupo privado de pressão que, em defesa de seus interesses, interferiu na formulação das medidas de política educacional, como se pode documentar nas Constituintes de 1934, 1946 e 1988, assim como na elaboração das leis de educação e na composição dos conselhos de educação”.
O pesquisador lembra que o golpe de 1964 “teve forte apoio nesses grupos, mesmo porque se orientou pelos valores da iniciativa privada e pelos mecanismos de mercado. Assim, faz todo o sentido a opção por realizar a expansão por meio do incentivo à iniciativa privada”.
A reforma trazida pela ditadura transformou as universidades, que deixaram de ser organizadas em termos de cursos e passaram a se estruturar em departamentos – assim, em vez de, por exemplo, cada curso da área de humanidades ter seu próprio professor de filosofia, instituía-se um departamento de filosofia responsável por servir a diversos cursos.
Com essa reorganização vieram o sistema de créditos-aula e da oferta semestral de disciplinas. “Tanto a departamentalização como a matrícula por disciplina e o regime de créditos tinham por principal objetivo a redução de custos. Assim, pela departamentalização, evitava-se a existência de vários professores de uma mesma disciplina, assim como a possibilidade de que uma mesma disciplina fosse ministrada em turmas diferentes, em separado, provocando a necessidade de sua repetição por um mesmo professor ou por diferentes docentes”, escreve o pesquisador.
O espírito da reforma havia sido explicitado, de acordo com Saviani, no fórum “A Educação que Nos Convém”, realizado em 1968. O artigo cita, entre os principais pontos da política educacional defendida no Fórum, os seguintes: “ênfase nos elementos dispostos pela ‘teoria do capital humano’; na educação como formação de recursos humanos para o desenvolvimento econômico dentro dos parâmetros da ordem capitalista; na função de sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho atribuída ao primeiro grau de ensino; no papel do ensino médio de formar, mediante habilitações profissionais, a mão de obra técnica requerida pelo mercado de trabalho; na diversificação do ensino superior, introduzindo-se cursos de curta duração voltados para o atendimento da demanda de profissionais qualificados.”
Resultados
Com a expansão da educação promovida pela ditadura, houve uma percepção de queda de qualidade do sistema. “Enquanto a educação se restringe às elites, ela mantém certo padrão de qualidade. Na medida em que a oferta se estende, abrangendo as massas populares, tende a ocorrer uma compressão da qualidade”, por motivos que vão da dificuldade de operar um sistema de massa à falta de recursos para atender ao novo patamar de demanda. “No entanto, do ponto de vista das camadas populares não houve queda, mas aumento da qualidade. Isso porque, para quem não tinha acesso a escola alguma, o acesso à escola elementar permitindo-lhe aprender, ainda que minimamente, a ler, escrever e contar significa um importante aumento qualitativo de sua formação. E isso vale também para os graus de ensino ulteriores ao antigo primário”.
Com o “cruzamento perverso entre as redes públicas e privadas” gerado pela expansão da educação básica via setor público e do ensino superior via rede privada, “o argumento difundido que sustenta a baixa qualidade da educação pública tecendo loas ao ensino privado resulta frágil”, diz Saviani. “A baixa qualidade da educação básica pública é reforçada pela baixa qualidade das instituições privadas de ensino superior, pela via da formação precária dos professores que atuam nas escolas públicas. Eis a razão pela qual tenho defendido, nas discussões sobre o projeto de Plano Nacional de Educação, a criação de uma rede pública de formação de professores ancorada nas universidades públicas. Sem isso não será possível atingir a meta, constantemente proclamada, de elevação da qualidade do ensino nas escolas públicas de educação básica”.
“Inegavelmente, o regime militar teve sua parcela de responsabilidade nesse processo de desqualificação do ensino público ao orientar a política educacional pelo princípio da obtenção do máximo de resultados com o mínimo de dispêndio”, afirmou o pesquisador.
Alternativas
Saviani está lançando um livro intitulado Sistema Nacional de Educação e Plano Nacional de Educação: significado, controvérsias e perspectivas, no qual articula uma visão alternativa à educação voltada para o mercado adotada pela ditadura e que teve continuidade nos anos pós-redemocratização
“É preciso operar um giro da formação, na direção de uma cultura de base científica que articule, de forma unificada, num complexo compreensivo, as ciências humano-naturais que estão modificando profundamente as formas de vida, passando-as pelo crivo da reflexão filosófica e da expressão artística e literária”, diz ele. “É este o desafio que o sistema nacional de educação terá de enfrentar. Somente assim será possível, além de qualificar para o trabalho, promover igualmente o pleno desenvolvimento da pessoa e o preparo para o exercício da cidadania”.