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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 22 de setembro de 2014 a 28 de setembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 607Tudo mudou no Brasil rural do século 21
A vida social e econômica rural sofreu profundas transformações nos últimos 50 anos, fato que tem animado inúmeros estudos entre os cientistas sociais. Ainda assim, Buainain, Alves, Silveira e Navarro (2013) entendem que permanece um “distanciamento entre os processos concretos que demandam explicação e (...) parte significativa das interpretações da literatura (...). Trata-se de hiato entre teoria e realidade que contribui para a persistência de afirmações equivocadas, errôneas e ambíguas, que poderiam ter tido alguma validade para explicar realidades que já foram transformadas, mas que atualmente embaralham os debates sobre o mundo rural brasileiro.” No sentido de ampliar os debates sobre o assunto, em 2013 os autores publicaram o artigo “Sete teses sobre o mundo rural brasileiro” e, neste ano, organizaram o livro “O mundo rural no Brasil do século 21: a formação de um novo padrão agrário e agrícola”.
Trata-se de extensa publicação, com 1.182 páginas, na qual 53 autores de diferentes instituições oferecem suas reflexões em 37 capítulos. É um livro plural, pois os pesquisadores examinaram a realidade desde vários pontos de vista, e desta maneira propõem diferentes interpretações sobre a vida social nas regiões rurais e a atividade econômica agropecuária. Não nos arriscamos a propor uma síntese de um trabalho tão denso, e convidamos os interessados a examiná-lo no endereço indicado ao final. Aqui apenas comentamos sobre dois temas que são discutidos no novo livro – o da produtividade e a dinâmica populacional. São processos centrais na evolução do meio rural.
Tem sido impressionante o crescimento da produção agropecuária brasileira nas últimas décadas; mas é também marcante o rápido esvaziamento populacional do meio rural. Parecem processos contraditórios, mas ambos têm um mesmo fio condutor: o espetacular crescimento da produtividade, condição sine qua non e a principal âncora do desenvolvimento econômico sustentável. No passado, a produção dependia do binômio formado pela oferta quase ilimitada de mão de obra destreinada e barata e a abundância de terras quase sem valor e relativamente férteis. Nas últimas duas ou três décadas, contudo, o padrão de acumulação da agricultura sofreu uma mudança radical, deslocando o poder econômico e político associado à propriedade da terra para os detentores de capital, em suas várias modalidades. O movimento, antes baseado em acumulação patrimonial baseada na terra, passa a depender do poder e da acumulação de capital, em seu sentido amplo. Conforme diversos estudos, o crescimento da produtividade total dos fatores ensejou a redução de quase 10% no uso da terra e da mão de obra utilizada, entre 2000 e 2012. Por isto, no artigo de 2013 sustentou-se a ideia de que “a partir do final da década de 1990, o desenvolvimento agrícola e agrário passou a experimentar uma nova, inédita e irreversível dinâmica produtiva e econômica social no Brasil – um verdadeiro divisor de águas em nossa história rural.”
Esse novo padrão se traduziu em profunda reestruturação tecnoprodutiva das principais cadeias agroindustriais. É um movimento positivo, pois quase elimina a utilização de mão de obra ocasional e temporária, quase sempre contratada em condições penosas de baixíssima remuneração, assim como a quase total ausência de direitos trabalhistas. Os maiores bolsões de pobreza rural estão localizados precisamente onde este processo não prosperou, em especial no Nordeste e Norte. São regiões onde os produtores rurais não lograram elevar a produtividade total dos fatores e os trabalhadores continuam sujeitos a relações de trabalho que não condizem com os padrões mínimos de decência definidos internacionalmente.
Mas o esvaziamento não se explica apenas em função de variáveis estritamente econômicas, como a redução da demanda por mão de obra. Esta rarefação demográfica vem se registrando mesmo em regiões mais prósperas, não por falta de oportunidades de trabalho, mas por que os jovens não querem mais permanecer no meio rural. No Brasil, nunca se investiu seriamente em desenvolvimento rural, e o resultado é um enorme fosso entre as condições de vida das cidades e do campo. Na vida rural falta praticamente tudo: vias de acesso, boas escolas, postos de saúde e, sobretudo, faltam perspectivas de crescimento pessoal. Os agricultores familiares, usualmente idealizados como aqueles mais adaptados ao meio rural, em particular aqueles com melhores condições de vida, investem na educação dos seus filhos, o que acaba estimulando a migração. Trata-se de um processo de seleção negativo para o meio rural, no qual migram os jovens mais talentosos, produtivos, mais empreendedores e com melhores níveis educacionais, deixando para trás os mais idosos e os mais pobres.
É preciso enfatizar a natureza bifronte do desenvolvimento agrícola e agrário, outra das teses levantadas por Buainain et. al. (2013), a qual se manifesta nas diferenças existentes no território brasileiro. De um lado, regiões onde predomina a moderna agricultura, baseada no uso intensivo de capital, formalização das relações trabalhistas, produtividade e rendimentos mais elevados. De outro lado, regiões nas quais a agricultura não conseguiu acompanhar o processo de inovação, e que são marcadas pela pobreza rural, por um mercado de trabalho extremamente precário e pela incipiente dinâmica produtiva. São regiões que dependem fortemente de transferências de renda, desde o Fundo de Participação Municipal, Previdência Social e Bolsa Família, além das aposentadorias rurais.
Ao contrário do que ainda se difunde, a agricultura já não conta com oferta abundante de mão de obra. Em muitas áreas a escassez de trabalhadores é grave problema cuja superação vem exigindo novos esforços de mudanças tecnológicas e organizacionais. Correndo o risco da generalização, a típica família rural, que nos anos 90 caracterizava-se por um casal com dois filhos, agora se caracteriza por um casal com um filho em idade escolar. Se persistirem as tendências das últimas décadas, há ainda uma grande chance de este jovem alcançar melhores níveis de escolaridade que seus pais e obter um emprego melhor remunerado no setor de serviços urbano. Produzir neste novo ambiente, com baixíssima oferta de mão de obra, passa necessariamente pela elevação da produtividade, o que coloca desafios enormes, em especial para os pequenos produtores, descapitalizados e com baixa experiência em gestão da inovação.
A produtividade é também fundamental para explicar a qualidade de vida das pessoas. Apesar dos ganhos observados no país, não houve uma conversão generalizada de melhores condições de trabalho em todas as atividades agropecuárias. Parcela expressiva dos produtores agrícolas ainda se encontra longe do eixo mais produtivo e rentável da agricultura brasileira. Dependem, sobretudo, de ações governamentais de financiamento e assistência à produção. Os produtores que não conseguem acompanhar o ritmo das inovações tendem ao empobrecimento e à marginalização.
É certo que este novo padrão impõe exigências tecnológicas, organizacionais e de capital que não estão ao alcance de um grande número de produtores, e que por isto vão reduzindo suas chances de permanência na atividade. Não há mais, neste processo, o dualismo que marcava o meio rural no passado, no qual a riqueza dos latifúndios se alimentava da pobreza dos minifúndios. A pobreza e a exclusão se devem ao atraso, e não há nenhuma funcionalidade entre pobreza e acumulação nos segmentos mais dinâmicos, nem mesmo via mercado de trabalho, uma vez que os mecanismos de proteção romperam com a necessidade de se submeter ao trabalho aviltante para sobreviver.
A dinâmica demográfica nas áreas rurais coloca sérias questões sobre a sustentabilidade da atividade agrícola no longo prazo, sobretudo para as mais vulneráveis pequenas unidades produtivas. A tendência é a da persistência dessa dinâmica, sobretudo no médio prazo, já que mudanças na dinâmica populacional costumam levar um tempo considerável para serem concretizadas.
Antônio Márcio Buainain e Alexandre Gori Maia são professores do Instituto de Economia (IE) da Unicamp; Zander Navarro é pesquisador da Embrapa.