Edição nº 621

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 30 de março de 2015 a 12 de abril de 2015 – ANO 2015 – Nº 621

Flutuando entre o campo e a cidade

Dissertação analisa mudanças na estrutura social da China,
cuja população urbana passou, pela primeira vez, a ser maior do que a rural

Deslocamento de chineses no feriado de Chunyn, também conhecido como “Viagem do Festival da Primavera”, período em que trabalhadores migrantes retornam  para suas casas: maior migração humana sazonal do mundoO crescimento econômico trazido pelas reformas liberalizantes na economia chinesa nas últimas três décadas foi acompanhado por uma profunda transformação no perfil da estrutura social: em 2011, pela primeira vez em milênios de história, mais de 50% dos chineses estavam vivendo em cidades, e não mais na zona rural.

“Este processo ocorreu não apenas numa taxa rápida, mas numa escala sem precedentes”, escreve o pesquisador chinês Cheng Li, em sua dissertação de mestrado “Labour Surplus Economy Under Transitions - A Case Study Of Chinese Rural Labour Mobility” (Economia de Excedente de Mão de Obra Sob Transições: Um Estudo de Caso da Mobilidade Rural Chinesa), defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp. “Foram necessárias seis décadas para a urbanização da China se expandir de 10% para 50%: a população urbana aumentou de apenas 64 milhões em 1950 para quase 639 milhões em 2010”. A população total do Brasil, para efeito de comparação, é de cerca de 204 milhões, segundo projeção do IBGE.

Cheng argumenta, no entanto, que a simples divisão clássica dos trabalhadores entre setores rural e urbano não basta para dar conta da situação chinesa, cuja análise correta requer uma terceira categoria: o dos trabalhadores migrantes “flutuantes”, que dividem seu tempo entre o campo e a cidade.

“Na teoria econômica dualista, pressupõe-se que o mercado de trabalho é dividido em estruturas duais, entre uma divisão urbana e uma rural”, disse o pesquisador, em entrevista ao Jornal da Unicamp. “No contexto de problemas emergentes dentro de economias de excedente de mão de obra, como o fenômeno da escassez de mão de obra, a divisão dualística do mercado de trabalho acaba simplificando a questão e escondendo problemas substanciais, e a aplicação dos modelos existentes, baseados nessa concepção dual, pode levar facilmente a conclusões equivocadas”. Em sua dissertação ele propõe um modelo tripartite, que leva em consideração o setor “flutuante”.

 

Excesso e escassez

Parte do crescimento econômico acelerado da China, a partir da abertura econômica iniciada nos anos 80, é atribuída ao excesso de mão de obra disponível no meio rural: uma massa de trabalhadores disposta a migrar para os centros urbanos e se converter em mão de obra para a indústria, recebendo baixos salários, mas ainda assim superiores à renda que obtinham no campo.

No entanto, a partir de 2002 e, com mais intensidade, desde 2004, a indústria chinesa se viu confrontada com dificuldades para preencher as vagas disponíveis. Diz a dissertação: “A escassez foi notada pela primeira vez quando poucos migrantes da zona rural chegaram em busca de trabalho no Ano-Novo Chinês, em fevereiro de 2004, e chegou às manchetes em junho, quando muitos jornais estamparam fotos de fábricas montando quiosques na beira das estradas para tentar recrutar trabalhadores”. A situação, prossegue o texto, vem piorando “ano após ano”.

O pesquisador Cheng Li: “O processo ocorreu não apenas numa taxa rápida,  mas numa escala sem precedentes”Essa redução na mão de obra disponível tem pressionado os salários e levado algumas indústrias a buscar regiões da China onde o índice de urbanização ainda é baixo, ou mesmo outros países, como Camboja e Vietnã. Uma análise dualística da economia sugeriria que a China está chegando a seu ponto de inflexão de Lewis, ou “Lewis turning-point”, tal como teorizado pelo economista, ganhador do Nobel, Sir Arthur Lewis (1915-1991).

Esse ponto seria o momento em que não há mais um excedente rural de mão de obra que possa ser transferido para a economia urbana sem um respectivo aumento salarial. Isso causa a entrada da economia em um mundo neoclássico, passando de uma economia baseada no excesso de mão de obra barata para uma economia que enfatiza o uso de capital e tecnologia. De acordo com a Academia Chinesa de Ciências Sociais, “a China está caminhando de uma era de excesso para uma de escassez de mão de obra.”

 


Migrações

Cheng Li defende, em sua dissertação, que essa abordagem é inadequada para o cenário chinês. “A abordagem de dois setores é incapaz de fornecer a conexão necessária entre a elevação dos salários reais dos trabalhadores da indústria e o desaparecimento da característica ‘ilimitada’ da mão de obra excedente”, disse o pesquisador.

“No caso chinês, ela também é incapaz de explicar a segmentação da mão de obra industrial, entre migrantes e urbanos fixos. Ela tende a concluir que a mão de obra é suficiente ou escassa, mas negligencia a migração flutuante, que corresponde a mais de um terço dos empregados”, acrescenta.

Para dar uma dimensão da relevância dos movimentos migratórios dentro da China, a dissertação descreve o “Chunyun”, ou “Viagem do Festival da Primavera”, uma gigantesca mobilização populacional que acontece na época do Ano-Novo Chinês, quando os trabalhadores migrantes retornam para seus lares, a fim de festejar com a família.

“De acordo com estimativas oficiais, houve cerca de 3,62 bilhões de viagens (...)  em quarenta dias”, escreve Cheng Li. “Esse número espantoso de passageiros faz do Chunyun a maior migração humana sazonal do mundo”.

 

Desigualdade urbana

Os trabalhadores da população “flutuante”, que passam parte do ano no campo e parte nas cidades, acabam ocupando os postos de menor salário e que requerem menos qualificação dentro da economia urbana, aponta Cheng Li.

“Dadas as diferenças em termos de educação e formação profissional, os migrantes rurais, em geral, dificilmente poderiam estar em posição de competir com os trabalhadores urbanos no mercado de trabalho qualificado”, diz a dissertação. “Portanto, para esses migrantes rurais, chegar a um segundo estágio, atingindo o trabalho permanente num setor moderno, seria impraticável. Pelo menos, no caso atual da China.”

“É inegável que os migrantes, por meio de educação, experiência e treinamento, poderiam entrar de vez para o mercado urbano, recebendo os mesmos salários e benefícios, o que corresponderia às características do modelo de Lewis”, disse o pesquisador. “No entanto, a teoria pressupõe que o trabalhador é livre para deslocar-se”.

Na realidade chinesa, há barreiras institucionais e intervenções do Estado a serem enfrentadas, incluindo o sistema de regras conhecido como Hukou, ou registro de residência, que cria obstáculos burocráticos à mudança permanente da zona rural para as cidades.

“Além disso, por conta da ligação entre os trabalhadores migrantes e a prerrogativa de uso da terra arável, o processo não resulta, necessariamente, em residência permanente na cidade”, disse Cheng Li. A dissertação explica que há diferentes prerrogativas de residência e de benefícios sociais concedidas a trabalhadores urbanos e rurais – incluindo o acesso a terra arável – e que essas prerrogativas são concedidas com base no local de nascimento. “Não é fácil trocar esse status de origem”, explica o texto.

 

Modelo Tripartite

O Modelo Tripartite de Oferta de Mão de Obra, apresentado na dissertação, estipula que a causa fundamental do “Lewis turning-point” não é exaustão da mão de obra rural disponível para a industrialização, mas a elevação dos salários dos camponeses para um nível comparável ao dos migrantes “flutuantes”. Ele também introduz a ideia de que a família toda – e não apenas o indivíduo – deve ser vista como agente econômico em busca de maximizar seus ganhos.

“Dessa forma, a mão de obra, mesmo mantendo-se, na realidade, como se fosse ‘ilimitada’, passa a apresentar características de escassez”, disse o autor. “Além disso, o Modelo Tripartite analisa o mecanismo de determinação dos salários dentro de cada um dos três setores respectivamente, o que oferece uma perspectiva macro que está em melhor posição para resolver problemas”.

Além disso, o modelo prevê corretamente a segmentação do mercado de trabalho urbano, apontando para suas causas e soluções. “Como diz um velho ditado chinês”, conta Cheng Li, “para desamarrar um sino, é preciso chamar quem amarrou o sino”.

O pesquisador acredita que seu Modelo Tripartite pode ser útil, também, na análise da mobilidade internacional da força de trabalho. “Como trabalhadores de países subdesenvolvidos migrando para economias relativamente desenvolvidas, para maximizar a renda da família”, exemplifica, “enquanto barreiras institucionais ou políticas de emprego do país receptor causam uma segmentação do mercado”, como fazem as barreiras burocráticas entre o mundo urbano e rural da China. “Creio que o modelo pode ser usado para analisar os trabalhadores que migram de outros países latino-americanos para o Brasil”.

 

Publicação

Dissertação: “Labour Surplus Economy Under Transitions - A Case Study Of Chinese Rural Labour Mobility”

Autor: Cheng Li

Orientador: Carlos Alonso Barbosa de Oliveira

Unidade: Instituto de Economia (IE)