Edição nº 621

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 30 de março de 2015 a 12 de abril de 2015 – ANO 2015 – Nº 621

Movimentos integrados


Ana Cristina Ribeiro, autora da dissertação, dança na Praça da Paz, na Unicamp: “A alquimia foi vista como uma inspiração poética e como um caminho”A educação somática é um campo teórico e prático que reúne métodos e técnicas cujo eixo é o movimento do corpo no espaço e o tempo como via de organização e possível transformação de desequilíbrios – estruturais, fisiológicos ou cognitivos – de uma pessoa. Estas pesquisas começaram na América do Norte e Europa no século 19 e se desenvolveram ao longo do século 20. O corpo era sempre visto em sua integralidade: pensamento, sentimento, sensação e movimento, sem uma dicotomia entre mente, cérebro e corpo.

Uma pesquisa de mestrado do Instituto de Artes (IA) mostrou que esta maneira de enxergar o indivíduo, a partir dos princípios comuns que regem a maioria das áreas somáticas, pode contribuir muito para o preparo corporal do artista de hip hop nas danças urbanas. “O entendimento de como cada movimento ocorre facilita, por exemplo, a resposta corporal nas batalhas, nas quais os dançarinos necessitam de prontidão corporal, sem tensão, para responder ao movimento do outro”, conclui Ana Cristina Ribeiro, que em sua dissertação adotou conceitos da Ideokinesis, um dos mais antigos métodos somáticos, do início do século 20.

A autora retratou na investigação a sua trajetória artística e acadêmica até a construção da Cia Eclipse Cultura e Arte de Campinas, local onde efetuou seu trabalho experimental e do qual foi sócia fundadora com Ricardo Cardoso, o Kico. Trata-se de uma instituição privada, mas atua intensamente com o público juvenil, em vários espaços, oferecendo aulas gratuitas a populações carentes da região, em parceria com a prefeitura local e diferentes escolas de dança.

 

Integração

No trabalho, a pesquisadora adotou o conceito de ideokinesis para oferecer aos dançarinos uma percepção das sensações, dos pensamentos engajados para realizar os movimentos, de como cada ação é feita como contribuição para o preparo corporal. Trouxe também os conhecimentos da formação em Educação Física e seus estudos sobre as artes da cena.

Ana Cristina dividiu os sujeitos em dois grupos: um de mulheres e outro de homens, todos integrantes da Cia Eclipse. Com as mulheres, escolheu a dança breaking para estudar algumas movimentações.

Pela dificuldade das dançarinas em alguns movimentos, optou por usar uma bola de 65 cm de diâmetro, a “bola suíça”, como suporte ao aprendizado qualitativo dos movimentos nas sequências, visto que proporcionam o alinhamento, a capacidade de lidar com o (des)equilíbrio no movimento e fortalecimento da musculatura.

Com os homens, ela criou uma apresentação em sua dissertação calcada num texto descritivo sobre o conteúdo do trabalho que, ao ser narrado pela mestranda, era dançado pelos rapazes.

A autora descreveu ao vivo o que é a cultura hip hop, inclusive com seus elementos básicos sendo demonstrados em tempo real: o MC - Mestre de Cerimônia, o DJ - no som, o Grafite - desenho criado no momento, a Dança - os dez rapazes dançando juntos, e o quinto elemento - o Conhecimento, que transversalmente aconteceu do início ao final.

“O processo de interligar o conhecimento da cultura hip hop com os estudos da Educação Física, as artes da cena e os novos conhecimentos sobre a educação somática trouxe um diferencial para esta arte”, garante Ana Cristina. 

Outra relação presente em sua dissertação foi o sentido poético da alquimia – as mudanças adquiridas pela artista em relação à realização de sua obra, tão preciosas como o desejo dos alquimistas de transformarem os vis metais como o chumbo em metais nobres como o ouro.

De acordo com a autora, um trabalho requer dedicação constante para que haja aperfeiçoamento. “No começo, foi difícil perceber como efetuar esta transmutação, como observado na alquimia; contudo, aos poucos ela foi acontecendo. A alquimia foi vista como uma inspiração poética e como um caminho.”

Ana Cristina ainda fez um levantamento das companhias profissionais de dança urbana atualmente. Apurou que são pouco mais de 50 no mundo e que, na França, Inglaterra e Alemanha, estão os principais grupos e companhias, por serem os mais organizados e estruturados para circularem seus espetáculos.

A pesquisadora admite que a dança de rua no Brasil, que antes era reproduzida pela cópia de movimentações, sem muito conhecimento, hoje constrói linguagens com a música local, como o samba, rappers e repentistas do Nordeste, mostrando-se mais uniforme devido a sua divulgação. Agora, as pessoas sabem identificar o hip hop dance no mundo inteiro – o estilo breaking (b-boys e b-girls), pois já tiveram acesso pela internet, vídeos, cinema e televisão.

Além disso, construiu-se uma geração hip hop, ampliando a visão dos quatro elementos específicos: o grafite, a dança, o MC e o DJ. Ana Cristina relata que a geração atual busca trabalhar mais com o quinto elemento, o qual ela reconhece que faz parte da geração hip hop.

Em sua opinião, sentir e viver a cultura hip hop vão além de atuar artisticamente em um dos quatro elementos. Agora as pessoas se identificam com a essência desta cultura, o tipo de música, a forma de se vestir e de se expressar.

A vontade de continuar os estudos possibilitariam aprofundar o tema sobre a cultura hip hop e também reunir material mais abrangente sobre o assunto no Brasil e exterior. Sendo aceita no Programa Artes da Cena do IA, Ana Cristina pesquisou como o artista de rua poderia atuar no teatro num palco italiano e quais mudanças seriam necessárias.

Como a preparação corporal para o hip hop, em parceria com a educação somática, poderia contribuir para esta mudança espacial e como seria a concepção das danças e de que modo os dançarinos deveriam se preparar para ela? Como seria vista na cultura hip hop esta mudança espacial da cypher (roda de dança) para o palco italiano no teatro?

Ana Cristina foi pesquisar, recebendo o apoio institucional da Capes para desenvolver seu estudo. Em 2014, recebeu novo apoio, desta vez da Pró-Reitoria de Pesquisa-Faepex, para apresentar trabalho resultante da pesquisa de mestrado, participar de workshops e visitar o programa de dança da Columbia University em Nova Iorque.

Essa estadia possibilitou à mestranda estabelecer um comparativo com outra universidade americana, visitada um ano antes, que também possui um programa específico chamado Hip Hop Education, na Faculdade de Educação da New York University.

 

Vocação

O entusiasmo da mestranda com a dança ocorreu mais pontualmente aos 13 anos, a partir de brincadeiras de rua. Repartia com os amigos uma mistura de capoeira e de outras danças. Inventavam, repetiam e atuavam a cada encontro numa esquina do Jardim Estoril, em Campinas.

Aos poucos, teve o desejo de ir mais longe. Foi apresentada à universidade por Kico, que na época fazia graduação em Educação Física na PUC-Campinas. Passou a acompanhá-lo nas aulas, optando, mais tarde, por estudar Educação Física na mesma universidade.

Na graduação, Ana Cristina confessa que não tinha a pretensão de ser dançarina profissional. Porém, mais tarde, decidiu mergulhar no trabalho, pesquisando, dançando hip hop e construindo as bases para a Cia Eclipse, que completou 12 anos de atividades e foi premiada em diversos editais municipais, estaduais e federais.

Isso lhe permitiu fazer viagens nacionais e para os Estados Unidos, Alemanha, França, Suíça, Itália, Argentina, Chile, entre outras. Também ajudou na publicação do livro Dança de Rua, em 2011, pela Editora Átomo, em coautoria com Ricardo Cardoso.

A mestranda conclui que, sem a dança, não teria saído de Campinas e nem cursaria o ensino superior. “A dança e a cultura hip hop abriram portas, e continuam abrindo, para o crescimento pessoal, artístico e profissional”, ressalta Ana Cristina, que, além de atuar na Cia Eclipse, leciona em escolas e clubes de Campinas, e em cursos de extensão.

Buscando as imagens na ‘ideokinesis’ 

A ideokinesis (ideo=imagem e kinesis=movimento) oferece procedimentos claros e flexíveis para observar o movimento, compreender seu início, percurso e finalização, associando-o a imagens específicas, quase metáforas da ação realizada e que objetivam facilitar a sua compreensão e organização.

O método pode permitir mudanças de padrões de movimento e, portanto, de pensamento e comportamento. Seus benefícios aparecem ao longo do tempo. Um deles está no reconhecimento do corpo e entendimento da necessidade de alinhar partes do corpo, mantendo a relação entre elas. Foi trazido ao IA pela docente Júlia Ziviani Vitiello, orientadora da pesquisa, que estudou com os pioneiros da ideokinesis nos EUA.

Na dança urbana, tendo alinhamento e força, o bailarino sabe a hora certa de levantar uma perna e sabe que aquele músculo estará lá pronto para dar suporte àquele comando do sistema nervoso. “O movimento melhora de qualidade e é feito com menos estresse, menos esforço e, se executado corretamente, menos lesões corporais, possibilitando que a pessoa amplie sua longevidade na dança”, acentua Ana Cristina.

Publicação

Dissertação: “Dança de rua do ser competitivo ao artista da cena”

Autora: Ana Cristina Ribeiro

Orientadora: Júlia Ziviani Vitiello

Unidade: Instituto de Artes (IA)