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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 25 de maio de 2015 a 07 de junho de 2015 – ANO 2015 – Nº 626Diário rastreia os ‘ossos do mundo’
Em setembro de 1934, Flávio de Carvalho partiu para a Europa. Seu objetivo era participar de dois eventos em Praga, capital da então Checoslováquia. Além das apresentações que faria nos congressos de Filosofia e Psicotécnica, ele levava na bagagem uma incumbência: escrever um relato sobre a viagem a ser publicado num livro encomendado pela editora Nacional.
Após participar dos eventos, Flávio percorreu, durante seis meses, pelo menos oito países – Inglaterra, França, Bélgica, Itália, Checoslováquia, Polônia, Hungria e Áustria, além de uma breve passagem por Portugal. Foi a museus (especialmente os de etnografia), visitou monumentos históricos, vagou pelas ruas, frequentou bares e restaurantes, conheceu pessoas. Suas impressões e reflexões resultaram no livro Os Ossos do Mundo, cuja reedição foi lançada recentemente pela Editora da Unicamp, com organização de Rui Moreira Leite e Flávia Carneiro Leão.
Ao voltar para casa, o projeto do livro tomou um rumo inesperado. “Quando chegou ao Brasil e apresentou o livro à Editora Nacional, o volume teve sua publicação recusada”, conta o arquiteto, crítico de arte e pesquisador Moreira Leite, um dos maiores estudiosos da obra de Flávio de Carvalho. O livro acabou sendo lançado, mas numa tiragem independente com cerca de mil exemplares, sem grande repercussão.
A recusa da editora provavelmente ocorreu em função do caráter atípico do relato feito pelo artista. “A expectativa era que ele trouxesse um relato de viagem convencional para integrar uma série da editora, com descrições de locais para visitar e algumas impressões. Algo muito diferente da obra que Flávio escreveu”, complementa Moreira Leite.
MERGULHO NA ALMA HUMANA
Ao invés de falar sobre museus e atrações turísticas, Flávio de Carvalho dedicou-se a análises e reflexões sobre a formação psicológica e cultural da Europa, dos povos e, até, da humanidade. “É um livro de psicologia num livro de viagens”, define Moreira Leite.
Ou como atesta o próprio Flávio de Carvalho no capítulo As Ruínas do Mundo: “este livro não é um simples livro de viagens e sim um livro de meditações livres sobre viagens, (...) não é um livro para o grande jardim da infância constituído pelas massas; quando muito pode atuar como um estimulante para o cérebro seguindo apenas o tumulto dos acontecimentos pessoais do autor”.
Desse modo, nesta obra – assim como em praticamente tudo o que produziu, nos mais diversos campos em que atuou – o artista foge do lugar comum. A começar pelo sentido que atribuiu à expressão que dá título à obra. Os “ossos do mundo”, define o autor, são objetos que as civilizações deixam como rastro ao longo da história. São “resíduos ancestrais que funcionam como condutores de verdade”, capazes de oferecer “um poder terapêutico pouco compreendido hoje [década de 1930] devido ao infeliz e tacanho espírito científico do século”.
Os “ossos” teriam, segundo ele, o poder de despertar uma nova sensibilidade no homem que olha para o passado através dos objetos, tornando-se uma “fonte de recordação das dúvidas e do drama da vida”.
Olhar para o passado, resgatar os “ossos do mundo” é, então, para Carvalho, uma experiência de reconstrução da origem, saber de onde saímos, para calcular para onde vamos. Isto porque as “recordações” geradas pelos objetos, os resíduos do passado, criam uma espécie de ressonância com o inconsciente e com a verdade sobre a humanidade que os objetos carregam neles próprios.
A partir desse pano de fundo conceitual, Flávio de Carvalho estabelece associações entre costumes dos povos, comportamento, história da arte e da civilização. Por exemplo, em determinado trecho ele relaciona a qualidade do papel higiênico com o nível de vida dos povos; em outro, vincula a arte realista do século 17 com a degradação da sensibilidade humana.
PROJETO INACABADO
Embora Os Ossos do Mundo tenha tido pouca repercussão na época, existem indícios que Flávio de Carvalho tinha a intenção de fazer uma segunda edição revista da obra, explica a arquivista Flávia Carneiro Leão, diretora do Centro de Documentação Alexandre Eulálio (Cedae) da Unicamp, que abriga o espólio documental do artista e arquiteto.
No conjunto de documentos que integram a coleção do Cedae, há um exemplar do livro que pertenceu a Flávio com anotações, correções e acréscimos feitos por ele próprio. “Quando acervo chegou e comecei a trabalhar com o material, encontrei um exemplar com trechos de textos pregados e correções em várias páginas. Ficou claro que ele estava preparando uma segunda edição”, relata Flávia.
Um segundo exemplar, também com inserções e comentários do autor, estava nas mãos de Rui Moreira Leite, que o ganhou de presente de um amigo. O exemplar, conta Rui, foi comprado em um sebo no Rio de Janeiro e havia pertencido a Flávio de Carvalho.
Esses dois exemplares, juntamente com os registros de seu caderno de anotações de viagem, deram origem à atual edição lançada pela Editora da Unicamp. “Havia anotações diferentes nos dois livros. Todas as alterações e adendos foram incorporados à edição que organizamos”, diz a diretora do Cedae.
Mais do que material para uma segunda edição revista e ampliada, o caderno de anotações de viagem contém várias informações não contempladas no livro, como a identificação dos museus etnográficos que visitou – em Florença, Roma, Paris, além do Museu do Congo, em Bruxelas –, bem como desenhos de objetos que despertaram seu interesse (como instrumentos musicais do Victoria and Albert Museum, em Londres), e a lista de endereço das personalidades que pretendia visitar.
A lista inclui desde artistas abstracionistas e construtivos, como Mondrian, Ben Nicholson, László Moholy-Nagy, até o filósofo Gaston Bachelard e o psicanalista Freud. “Alguns contatos e entrevistas, como Freud, sequer foram feitos, mas muitas entrevistas foram realizadas e chegaram a ser publicadas em jornais brasileiros”, afirma Flávia.
REPERCUSSÕES E DESDOBRAMENTOS
Assim, enquanto esteve na Europa, paralelamente ao livro, o artista fez várias entrevistas com personalidades dos congressos que frequentou, dos artistas e escritores que conheceu enquanto se deslocava percorrendo países e principalmente museus – como registra seu caderno de anotações.
Em Paris, encontrou-se com André Breton, Tristan Tzara, além de Raymond Queneau, Man Ray e, conforme indica o acervo do Cedae, parece ter se aproximado dos ingleses, liderados por Roland Penrose. Entre os abstracionistas, um nome chave foi Jean Hélion, embora tenha contatado também Ben Nicholson.
Quando regressou ao Brasil deu início à publicação das entrevistas e também à apresentação de suas ideias sobre pintura, renovadas pelos contatos mantidos com artistas em palestras (como “A Pintura do Som e a Música do Espaço”) ou em artigos, como “Novas Tendências da Pintura Contemporânea”.
(Marta Avancini)