Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 25 de maio de 2015 a 07 de junho de 2015 – ANO 2015 – Nº 626No contrafluxo do estabelecido
Dois livros trazem à tona diferentes facetas do modernista Flávio de Carvalho, cujo acervo está sob a guarda da Unicamp“Domingo, às 15 horas, quando desfilava pelas ruas do centro da cidade, a procissão de Corpus Christi, um rapaz muito bem posto que se achava na esquina da rua Direita e praça do Patriarca não se descobriu, conservando ostensivamente seu chapéu na cabeça. Os crentes, que acompanhavam o cortejo, revoltaram-se com essa atitude e exigiram em altos brados que ele se descobrisse. Ele, no entanto, sorrindo para a turba não tirou o chapéu, embora o clamor da multidão já tivesse se transformado em ameaça. Foi então que inúmeros populares tentaram linchá-lo, investindo contra ele.”
O trecho, extraído de uma matéria publicada em 9 de junho de 1931 no jornal O Estado de S.Paulo, relata uma das ousadas e polêmicas intervenções de Flávio de Carvalho (1899-1973). Denominada Experiência n.º 2, a intervenção foi concebida com o objetivo de colher evidências para um estudo de psicologia das multidões que vinha desenvolvendo, posteriormente publicado num livro. A Experiência consistiu em atravessar uma procissão em sentido contrário usando um boné na cabeça e flertando com as moças, o que acabou despertando a fúria dos fiéis.
Formado em engenharia civil no Armstrong College da Universidade de Durham e em artes na King Edward the Seventh School of Fine Arts, ambas em Newcastle upon Tyne na Inglaterra, Flávio de Carvalho entrou para a história com a marca da ousadia em todas as frentes em que atuou: foi engenheiro, arquiteto, pintor, desenhista, escritor, jornalista, teatrólogo, decorador, destacando-se como um dos nomes fundamentais do Modernismo brasileiro.
À Experiência n.º 2 soma-se um significativo conjunto de obras, invariavelmente criativas e provocadoras. Em 1927, atraiu a atenção em sua primeira aparição pública no concurso de arquitetura para o Palácio do Governo do Estado de São Paulo. Ele apresentou um projeto de um prédio que se assemelhava a um bunker, com holofotes para iluminar aviões num eventual ataque à sede do governo paulista, ao mesmo tempo em que incluía um salão de dança, com decoração tropical, para mil pessoas.
Na década seguinte, Flávio de Carvalho passa a ter evidência na cena artística. Além da Experiência n.º 2, fundou o Clube dos Artistas Modernos (CAM) em 1932, com Antonio Gomide, Di Cavalcanti e Carlos Prado. Um ano mais tarde, criou o Teatro da Experiência e encenou O Bailado do Deus Morto – espetáculo de dança e teatro, protagonizado predominantemente por atores negros.
Em 1934, sua primeira exposição individual de pinturas se transformou em caso de polícia: a mostra foi fechada sob alegação de atentado ao pudor e teve cinco quadros apreendidos. O artista conseguiu na Justiça o direito de reabri-la.
Na segunda metade da década, foi um dos organizadores, juntamente com Quirino da Silva e Geraldo Ferraz, do Salão de Maio, que teve edições em 1937, 1938 e 1939, em São Paulo. Os Salões foram mostras coletivas, concebidas para criar um espaço para a arte moderna nacional e promover o intercâmbio com a produção internacional.
Fortemente influenciado pelo Expressionismo, Surrealismo e Dadaísmo, Flávio de Carvalho produziu uma obra que mantém uma intensa interação com a vanguarda europeia. Na sua obra como artista visual, sobressaem os retratos e nus femininos.
OBRA REVISITADA
Dois lançamentos recentes da Editora da Unicamp trazem ao público contemporâneo o universo vivaz e polêmico de Flávio de Carvalho. O primeiro é o livro Os Ossos do Mundo, resultado de uma viagem de seis meses à Europa que o artista fez entre 1934 e 1935.
Publicado originalmente em 1936 numa edição independente e de baixa tiragem, a obra agora ganhou uma reedição revista e ampliada, organizada pelo arquiteto Rui Moreira Leite – um dos principais pesquisadores sobre Flávio de Carvalho –, e Flávia Carneiro Leão, diretora do Centro de Documentação Alexandre Eulálio (Cedae) do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.
O segundo lançamento é o volume Flávio de Carvalho, da coleção Cadernos de Desenho, coordenada por Lygia Eluf, professora de desenho do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. A obra reúne ilustrações criadas pelo artista para a coluna A Moda e o Novo Homem, publicada em 1956 no Diário de S.Paulo.
A coluna enfocava a história da moda, analisada a partir dos estudos etnográficos e psicológicos realizados pelo artista. E é considerada uma espécie de preparação para a Experiência n.º 3 - um desfile pelas ruas do centro de São Paulo, no qual Flávio de Carvalho apresentou o New Look, traje masculino de verão. Composto por blusa de mangas curtas, saia à altura dos joelhos e sandálias, o traje remete uma reflexão sobre os costumes e convenções sociais: por que num país tropical como o Brasil, os homens usam uma indumentária herdada dos colonizadores e pouco afeita ao nosso clima, como o terno e a gravata?
As duas edições foram produzidas a partir de documentos que integram o Fundo Flávio de Carvalho do Cedae/Unicamp. (Leia mais sobre os livros e o acervo nas páginas 6 e 7).
Aparentemente conturbador, provocador e, até, inconsequente, Flávio de Carvalho foi um artista e intelectual com sólida formação, profundamente imerso em sua época. “Criou-se um senso comum de que Flávio de Carvalho foi um homem à frente de seu tempo. Tal afirmação não faz sentido, ninguém pode ser à frente do seu tempo”, afirma Rui Moreira Leite. “As referências teóricas de Flávio de Carvalho eram aquelas de seu tempo: nos campos do evolucionismo (Charles Darwin), da filosofia (Friedrich Nietzsche), da psicanálise (Sigmund Freud) e da etnografia (James Frazer)”, complementa.
“Alguns consideram Flávio de Carvalho uma figura marginal e excêntrica. Discordo dessa leitura. Ele formou-se na Europa, teve contato com o que havia de mais moderno nas artes, na cultura e no pensamento do seu tempo. Atuou em vários campos, e foi reconhecido ainda em vida por suas atuações”, analisa Flávia Carneiro Leão, diretora do Cedae.
Esse mergulho no pensamento, na arte e na cultura do início do século XX é o que teria conferido a Flávio de Carvalho um senso estético e uma abordagem peculiares, bem como uma amplitude de interesses, que marcaram sua obra nos diversos campos em que atuou.
“Flávio de Carvalho é um clássico. A solidez de sua formação permitiu que ele atuasse com qualidade em todos os campos em que se envolveu”, analisa a professora Lygia Eluf. “Mesmo com a multiplicidade de interesses que o caracteriza, seu trabalho não perde força e qualidade. Isso é raro”, conclui.
SERVIÇO
Título: Cadernos de Desenho - Flávio de Carvalho |
Título: Os ossos do mundo Autor: Flávio de Carvalho Organização: Rui Moreira Leite e Flávia Carneiro Leão Páginas: 176 Área de interesse: Artes plásticas, biografias Preço: R$ 40,00 Editora da Unicamp |