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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 25 de maio de 2015 a 07 de junho de 2015 – ANO 2015 – Nº 626No traço, drama, humor e ironia
Entre março e outubro de 1956, Flávio de Carvalho publicou a coluna A Moda e o Novo Homem no Diário de S.Paulo. Semanalmente, ele escrevia um artigo comentando algum aspecto relacionado à moda, baseando-se em estudos que realizava nas suas diversas áreas de interesse – principalmente arte, cultura, etnografia, filosofia e psicologia.
Ao todo, foram 39 artigos, acompanhados por 105 ilustrações, compostas por desenhos feitos pelo próprio Flávio e legendas explicativas, que fazem parte do Fundo Flávio de Carvalho do Cedae/Unicamp. (Leia texto nesta página)
Essas ilustrações foram reunidas num volume da coleção Cadernos de Desenho, da Editora da Unicamp em parceria com a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. A série é organizada por Lygia Eluf, professora de desenho do Instituto de Artes da Unicamp. “A ideia da coleção é revelar, ao público em geral, um tipo de desenho que normalmente fica escondido no ateliê do artista, que raramente seria exposto”, explica.
O volume sobre Flávio de Carvalho é o oitavo da série, que recebeu um prêmio Jabuti em 2009, ano em que foi lançada. Neste caso específico, os desenhos não são inéditos, pois já haviam sido publicados na coluna de jornal. No entanto, afirma a organizadora, a reunião das ilustrações num único livro atende a outro objetivo da série: trazer a público a maneira como se desenvolve, por meio do desenho, o modo de pensar do artista.
Lygia caracteriza as ilustrações de Flávio de Carvalho como o resultado de uma pesquisa artística de primeira qualidade. “São desenhos muito sintéticos, que traduzem de uma maneira clara e simples a construção de um pensamento visual”, afirma a professora da Unicamp.
Nesse sentido, a diretora do Cedae, Flávia Carneiro Leão, enfatiza que muitas das referências usadas pelo artista nas ilustrações podem ser identificadas nos livros de sua biblioteca. “É perfeitamente possível traçar o caminho de volta das ilustrações aos volumes da biblioteca de Flávio, o que indica o esforço do artista em integrar a criação artística e a investigação científica em um trabalho fundamentado em pesquisas e estudos”.
POR DENTRO DA HISTÓRIA
De fato, uma única ilustração podia reunir referências das mais diversas origens e contextos, permeadas de análises de cunho psicanalítico e de hipóteses, muitas vezes irônicas, sobre a história da humanidade e os costumes sociais.
Flávio identificava no vestuário, essencialmente dois tipos de formas, afirma o crítico de arte Rui Moreira Leite: as “curvilíneas fecundantes”, associadas a períodos de prazer e alegria, e as “retas paralelas anti-fecundantes”, marcadas pelo luto e a tristeza. Nos artigos, as vestimentas são associadas a mudanças na história e a comportamentos.
Numa ilustração, Flávio relaciona os vestidos usados pelas mulheres francesas na segunda metade do século 18, com um desejo de segurança: “A mulher cinco anos antes da Tomada da Bastilha; o corpo quase todo envolto em largos panos que ofereciam inúmeros pontos de apoio e segurança. A moda procurava amparar, quase esconder, a mulher prestes a ser decapitada. Mas não conseguiu”.
Em outra, analisa a semelhança dos trajes usados por homens e mulheres na antiga civilização Sumeriana como um “objetivo psicológico de igualar o homem à mulher”. Numa terceira, levanta a hipótese de que a longa cauda do vestido usado por Josefina, esposa de Napoleão Bonaparte, seria um contrabalanço à insegurança sexual do imperador.
Como tinha uma tese a defender nos artigos, Flávio de Carvalho foi extremamente cuidadoso na construção dessas imagens, de modo que cada uma delas representasse exatamente a ideia que tinha em mente. “Os desenhos foram feitos a lápis e, depois, contornados com uma pena de nanquim. Então, ele fez essas imagens com um cuidado absoluto, o que é bastante especial”, explica Lygia. “Ele não precisaria usar esse recurso, ele tinha muita habilidade para desenhar. Se não precisasse evidenciar os detalhes que demonstravam sua intenção inicial e a intensa investigação realizada, ele faria um desenho mais rápido, um esboço mais “livre”.
Lygia Eluf enfatiza a especificidade dessas ilustrações no sentido de demonstrar um tipo de “leitura” diferente da que propõe em sua produção artística, permeada pelas propostas surrealistas e expressionistas, baseada no que ele próprio chamou de linhas de força psicológicas. Basta lembrar, por exemplo, da Série Trágica, de 1947, na qual Flávio registra, em nove desenhos, os momentos finais da agonia de sua mãe, ou ainda as pinturas nas quais o nu feminino revela uma forte sensação erótica.
“Dez anos antes da coluna sobre a moda, ele consegue representar a dramaticidade da tragédia que é a mãe morrendo. De repente, ele constrói essas imagens irônicas, cheias de senso de humor, dotadas de leveza, com uma linguagem gráfica que é uma síntese clara e quase objetiva: um casamento perfeito entre sensibilidade e racionalidade que é surpreendente”, aprofunda a professora da Unicamp.
“Essa característica de Flávio, sua ação provocativa e sua intenção de não fragmentar o conhecimento se expressa no desenho,– do dramático e trágico à essa dimensão tão bem humorada - é uma das coisas que mais me encantam”.
Outro aspecto enfatizado pela organizadora da coleção Caderno de Desenhos é o intenso diálogo dos desenhos com a cultura e a sociedade daquela época. “As ilustrações parecem ser um projeto para ele chegar à Experiência n.º 3”, analisa Lygia. (Leia na página 5).
Nas coisas miúdas, uma visão do todo Quando morreu em 1973, Flávio de Carvalho deixou um grande acervo de livros em sua casa, na fazenda Capuava, em Valinhos (SP). Cerca de uma década mais tarde, o material foi recolhido, em regime de comodato, pelo Centro de Documentação Alexandre Eulálio (Cedae), ligado ao Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Unicamp. “Era o que havia restado da biblioteca de Flávio de Carvalho. Em função do seu valor para pesquisas na área de humanas, em especial em Letras, a Unicamp resolveu negociar a compra do acervo com os herdeiros do artista”, relembra Flávia Carneiro Leão, diretora do Cedae. A compra foi efetivada em 1998. Anos mais tarde, somou-se a essa documentação, outro lote de materiais que havia pertencido a Flávio de Carvalho e estava sob os cuidados do jornalista J. Toledo, amigo pessoal do artista, adquirido pela Unicamp em 2009. Os dois lotes de documentos compõem o Fundo Flávio de Carvalho, constituído de documentos originais manuscritos, desenhos originais, livros, fotografias, recortes de jornais, catálogos, periódicos, fitas em VHS, películas 16 mm, álbum de autógrafos e objetos pessoais, entre outros documentos. “Tem muita coisa importante no acervo, inclusive os recortes de jornal, que são de uma riqueza ímpar”, afirma Flávia. “Em fundos, geralmente os manuscritos e os projetos tenderiam a ser mais valorizados, mas no caso do material deixado por Flávio de Carvalho, os recortes são de grande interesse e relevância”. Em primeiro lugar, porque, ao longo da vida, Flávio de Carvalho escreveu e publicou em vários periódicos, especialmente no Diário de S.Paulo. Os recortes também incluem matérias e notas jornalísticas sobre arte, cultura e eventos nessas áreas. “Flávio tinha o hábito de montar álbuns de recortes. Ele recortava publicações dele e tudo o que fosse relacionado às artes em geral. Exposições, concertos”, relata a supervisora do Cedae. Esses recortes, enfatiza ela, montam um panorama da vida cultura e artística da época. “Em meio à aparente loucura, Flávio tinha uma disciplina, claramente perceptível na cronologia miúda dos álbuns”. Além dos recortes propriamente ditos, as marcações e as observações feitas por ele são importantes, revelando suas percepções e visões de mundo e agregando, assim, elementos à compreensão de sua obra. |