Edição nº 629

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 22 de junho de 2015 a 28 de junho de 2015 – ANO 2015 – Nº 629

Antonio Arnoni Prado, o observador dos invisíveis

Estudioso de escritores marginais, professor do IEL lança dois livros
nos quais reflete sobre o Brasil e o significado da literatura brasileira

Antonio Arnoni Prado, professor aposentado do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, acaba de lançar dois livros, intitulados Dois letrados e o Brasil nação - A obra crítica de Oliveira Lima e Sérgio Buarque de Holanda e Cenário com retratos – Esboços e perfis. A primeira obra estabelece um contraponto entre as visões que os autores analisados apresentam sobre o Brasil e a literatura brasileira. Já a segunda reúne ensaios sobre autores e temas, com o propósito de fazer uma análise do espaço da criação literária. Embora distintos, reconhece o docente, os livros dialogam entre si. Na entrevista que segue, Arnoni Prado fornece mais detalhes sobre os novos volumes e faz uma reflexão sobre o papel da crítica literária na atualidade. Segundo ele, diante das transformações ainda em curso, é possível que a crítica tenha que se reinventar. Por fim, o intelectual avisa: apesar de aposentado, continua produzindo e olhando com atenção para os escritores marginais, missão que se impôs desde o início da carreira.

Jornal da Unicamp – O senhor está lançando dois livros ao mesmo tempo. Eles também foram produzidos simultaneamente?

Antonio Arnoni Prado – Não. Eu comecei a trabalhar no livro sobre o Oliveira Lima e o Sérgio Buarque de Holanda em 2002. Fui para os Estados Unidos e fiquei um tempo por lá fazendo a pesquisa na biblioteca do Oliveira Lima, que está abrigada na Universidade Católica, em Washington. Desde então, segui trabalhando no livro. Eu o entreguei à editora há dois anos. O outro livro, Cenário com retratos, foi produzido ao longo da minha carreira. Alguns ensaios têm 15 ou 20 anos. Alguns deles foram burilados para esta publicação.

JU – O processo de produção difere de uma obra para outra ou ele segue um padrão?

Antonio Arnoni Prado – O trabalho do crítico é complexo. Você pode se deter na análise formal da obra. Mostrar, por exemplo, como um romance inova em relação ao tempo dele, ao conjunto da obra do autor e no que ele se diferencia em relação aos romances de outros autores. Uma análise de personagem, por outro lado, é muito trabalhosa. Cada autor tem uma perspectiva da criação da personagem. As personagens de Machado de Assis são as personagens de Machado de Assis. Não se pode generalizar, a partir da análise de um livro, o conceito de personagem. Quase sempre uma personagem discrepa da outra, mas apresenta singularidades. 

O trabalho do crítico é tentar harmonizar as permanências e as ambiguidades presentes na construção da personagem. Sob certo aspecto, é possível dizer que existe alguma convergência de temas, análises e modos de apresentação de personagens em Lima Barreto, Machado de Assis, Érico Veríssimo etc. Entretanto, quando você parte para a análise de uma personagem específica, você depende muito da ação que ela desempenha e da escolha dessa ação. Esta pode, por exemplo, estar mais articulada com o meio social ou fazer uma crítica ao âmbito literário que a circunscreve. Outro aspecto da análise literária que me interessa muito é buscar – e o Antonio Candido é mestre nisso – as articulações da estrutura da obra com a estrutura social. Mostrar como o externo se torna interno.

citações e imagens do professor Antonio Arnoni PradoJU – O senhor poderia dar um exemplo desse tipo de articulação?

Antonio Arnoni Prado – Um exemplo está em Aluísio Azevedo. A maioria das críticas a esse autor, até a chegada das análises de Antonio Candido, estava muito presa às propostas que a crítica internacional fazia sobre o naturalismo. Dizia-se que o naturalismo era a descrição científica de uma realidade. Tinha um sentido teleológico, finalístico, em relação à ciência. A literatura, nesse sentido, pode esclarecer um determinado dado social ou um contexto político com certa precedência. O que Antonio Candido mostrou foi que, ao se tornar interna, a estrutura externa deixa as suas características naturais para assumir uma marca do autor. Nesse momento, o crítico não está comparando a vida exterior com a interior, mas vendo como é que se articulam o tema, a personagem e os valores presentes no livro e como eles eventualmente remetem ao exterior.

JU – Um desafio nada trivial, não?

Antonio Arnoni Prado – É difícil. É preciso muita reflexão e obviamente o máximo de informação possível sobre o autor e seu estilo, bem como sobre o contexto literário e político do período. Mas a marca pessoal fica e o desafio do crítico está em desvendá-la. Antonio Candido mostra que, em O Cortiço, tanto o português quanto o morador do cortiço e o homem da rua são personagens. O português participa daquele “inferno” com a perspectiva de ganhar dinheiro e sair daquele ambiente. O trabalhador, porém, é uma “coisa” que não evolui. É aí que entra a mão do narrador. Ao internalizar essas questões sociais, o escritor faz da literatura uma espécie de constructo sem saída – tanto na fala quanto no gesto e nas atitudes.

Então, a partir de um elemento importante da estrutura da personagem, é possível articular um paralelo entre a obra e a realidade que ela estaticamente propõe construir. Não se trata de dizer que é uma tentativa de explicar a realidade, como fazia o naturalismo. O feixe de relações que o narrador arma para as personagens mais “estranhas”, mais “comandadas” tem que ser muito perfeito, pois aquilo gera dentro do romance uma desestruturação brutal. Assim, quanto mais literariamente culta for uma voz autoral, tanto mais ela vai iluminar a perspectiva sem saída do homem dominado.

JU – Em Dois letrados e o Brasil nação, o senhor estabelece um contraponto entre os pensamentos de Oliveira Lima e Sérgio Buarque de Holanda. Que elementos caracterizam esses pensamentos?

Antonio Arnoni Prado – Sim, os dois autores oferecem perspectivas diferentes. O Oliveira Lima é um crítico interessante, que tem um grande valor, inclusive por ter se dedicado a divulgar a literatura brasileira no exterior. Ele tinha um comprometimento quase acadêmico com a ideia de que a literatura brasileira tinha que ser vista de um ângulo próximo das verdades que a fundaram. Verdades essas oriundas do universo português. Afinal, foram os portugueses, cuja cultura havia dado Camões e Gil Vicente, que nos colonizaram. Oliveira Lima, que foi educado na Escola Superior de Letras de Lisboa, insistia em ver como saída para a cultura brasileira a adoção de um modelo fecundado pelas projeções do universo intelectual português.

No ângulo oposto, Sérgio Buarque, tendo sido um modernista, embora não tenha participado da Semana de Arte Moderna, tinha posições muito diferentes. Na esteira de Mário de Andrade, Sérgio Buarque propõe, ao contrário das teses de Oliveira Lima, que para ele geraram o academismo, a oratória bacharelesca e a literatura cosmopolita sem cosmopolitismo, a necessidade de buscar um caminho próprio para o Brasil. Era preciso, segundo ele, pesquisar uma linguagem brasileira, bem como os elementos e os titulares dessa linguagem. Sérgio Buarque foi um dos primeiros a tentar promover a integração entre os países da América Latina. Ele insistia numa outra dimensão. É essa divergência com o Oliveira Lima que eu tento mostrar, a partir da crítica literária de Sérgio Buarque. O livro não conclui nada. Não há um terceiro capítulo. Eu falo do Oliveira Lima e depois do Sérgio Buarque. E deixo para o leitor tirar suas próprias conclusões.

JU – Já o livro Cenário com retratos é constituído por ensaios. Neles, o senhor trata de alguns autores e temas. Como o senhor alinhava esses conteúdos na obra?

Antonio Arnoni Prado – Neste livro, eu procuro basicamente fazer uma análise do espaço da criação literária. Verificar em que momento os autores, que eram tidos como escritores, deixaram de ser escritores porque eram diplomatas, juízes, advogados ou tinham uma inserção social que os qualificava, que atribuía a eles o papel de literatos. Eram eles que tinham que fazer a literatura. Antes de serem literatos, porém, eles tinham repercussão social, tinham poder de mando. A literatura era, portanto, um espaço secundário, tal como a conhecemos hoje. O momento da costura desse espaço literário é o que me persegue; é um tema dos ensaios. Outra questão é que, ao promover essa costura, muitos foram obrigados a se render ao que vinha de cima para poder vender seu peixe. Outros, ao contrário, resistiram. Não reconheceram a importância do que já existia e buscaram projetar a sua linguagem artística.

Num segundo momento, eu também busco refletir sobre as circunstâncias que desvirtuaram, em grande parte, esse ideal tão puro de buscar a literatura. Eu estudo esse tema tanto do lado da crítica quanto do lado dos escritores. Aliás, é preciso registrar que os críticos também reconheceram a necessidade de reformar a ideologia passadista que havia na literatura. É o caso de Gilberto Freyre, que se propõe a criar a seminovela, um gênero novo. Gilberto Freyre, diga-se, é um dos maiores escritores da língua portuguesa. Não há escritor melhor que ele quando consideramos o estilo, a elegância, o conhecimento da língua e a versatilidade dos temas. Entretanto, Freyre se torna realmente grande quando escreve livremente, sem pensar em seminovela ou em outros gêneros.

Um dos ensaios do livro analisa como Gilberto Freyre descreve os anúncios que os proprietários de escravos publicavam nos jornais, cujos textos eram quase teratológicos. Ao tratarem de escravos fugidos, por exemplo, os textos descreviam as características físicas destes, como um olho cego, uma orelha decepada ou um ferimento na perna. Gilberto Freyre descreve essas molduras sem pensar em seminovela. E aí ele é tão grande quanto Guimarães Rosa. É grande porque passa para o leitor o enquadramento dessa teratologia social imensa de modo elegante, original e extremamente harmônico. O ângulo literário que eu busco nos escritores está nesse trabalho. Ali tem tudo: descrição de personagem, caracterização do espaço e variações harmônicas de forma para descrever o fenômeno da crueldade. Faço essa mesma reflexão do lado da crítica. 

Faço com Silvio Romero, José Veríssimo, Araripe Junior, Lúcio Cardoso, entre outros, sempre buscando a oposição entre o espaço literário possível e original e as circunstâncias que o deformam.

JU – Embora sejam obras completamente distintas, é possível dizer que há um diálogo entre elas?

Antonio Arnoni Prado – Perfeitamente. No segundo livro aparecem de modo concreto pequenas manifestações na biografia, na obra, nos projetos dos escritores analisados que rementem às visões de Oliveira Lima e Sérgio Buarque sobre o Brasil e o significado da literatura brasileira. Nesse sentido, há um perfeito diálogo entre os livros.

JU – Em um debate recente, o senhor afirmou que dedicou a sua carreira acadêmica a estudar escritores marginais, que não receberam o devido reconhecimento. Por que o senhor se impôs essa missão?

Antonio Arnoni Prado – De fato, fiz essa opção desde o começo da minha carreira. Se pegarmos as histórias literárias, é possível verificar uma repetição. Desde a Antiguidade, passando pelo Romantismo e o Realismo, é possível notar essa repetição ao estudarmos os grandes autores. Entretanto, à medida que você estuda esses escritores, surge também o “pé de página”, o escritor marginal. A minha tese sobre Lima Barreto é possivelmente a primeira da academia, considerando as grandes universidades brasileiras. 

Ele não era tido como um grande escritor. Era um autor que não era academicamente reconhecido. Também não se falava em João do Rio. Os escritores que tentavam desarticular o estilo literário do tempo deles não eram publicados. Ou eram publicados de modo precário. Foi a partir da minha tese sobre Lima Barreto que comecei a me interessar por essa temática.

Lima Barreto não queria ser literato. Dizia, inclusive, que tinha desprezo pelos escritores. Ainda assim ele escrevia. Ninguém lia, mas ele escrevia. Só foi publicado em 1948 e depois em 1956. A obra ficou repousando na seção de manuscritos da Biblioteca Nacional. Assim como ele, uma legião de outros escritores viveu a mesma situação. Quando eu estudei essa questão, entendi que havia uma missão a cumprir. Eu poderia ter estudado um escritor reconhecido, que seria mais fácil, mas decidi enveredar por esse caminho, o que me fez descobrir outros autores. Hoje eles estão integrados. O livro Cenário com retratos é uma espécie de conclusão do meu projeto de pesquisa. Eu fico muito satisfeito com a escolha que fiz. É uma contribuição modesta para as novas gerações, que talvez decidam fazer coletâneas ou produzir biografias sobre esses autores.

O professor e crítico Arnoni Prado: “A preocupação da crítica do futuro pode nem ser mais – e talvez já não seja – fazer um discurso de avaliação. Pode ser um discurso de arte. As coisas estão muito soltas”

JU – O senhor chegou à Unicamp no final da década de 70 junto com um grupo vindo da USP, tendo à frente o professor Antonio Candido. Como foi contribuir para a construção do IEL?

Antonio Arnoni Prado – O Antonio Candido veio para cá a convite do Zeferino Vaz [fundador da Unicamp], em 1976. Zeferino deu carta branca ao Antonio Candido para montar a equipe que daria forma ao IEL. Essa equipe contava com nomes como Roberto Schwarz, Berta Waldman, João Luiz Lafetá, José Miguel Wisnik, entre outros. Uma geração de novos talentos que ofereceu uma importante contribuição à Unicamp, em três dimensões. A primeira delas foi marcar o sentimento da pesquisa factual. Cada um trouxe para a Universidade, na sua área, uma atitude perante a pesquisa, qual seja, a de estudar o tema e discutir os autores profundamente.

A segunda dimensão representou uma renovação curiosa, que foi mostrar a importância da teoria literária articulada à linguística. Isso significou uma grande inovação. A terceira dimensão foi definir uma perspectiva crítica. Foi deixar de considerar a literatura somente a partir de um elenco de autores. E passar a considerá-la, pela primeira vez, a partir da sua construção, a partir da dimensão estética e da dimensão objetiva da linguagem, que dialogava com outras séries literárias.

JU – Qual o papel da crítica literária na atualidade? Ela precisa, em alguma medida, reinventar-se?

Antonio Arnoni Prado – Sem dúvida. Onde está a crítica hoje? Um dos momentos únicos da discussão destes dois livros talvez tenha ocorrido no debate aqui na Unicamp. Não há especificamente um diálogo entre a crítica e a produção atual, par e passo. Os cadernos de cultura dos jornais tratam hoje de bandas de rock, de cantores, pintores etc. Você não tem mais um nome abalizado da crítica literária escrevendo nos jornais. O espaço que ainda resta está na universidade. Aqui é o lugar. O espaço está cada vez mais rarefeito, e não sei se com alguma razão. Nós ainda não temos um desenho claro do que está surgindo.

A preocupação da crítica do futuro pode nem ser mais – e talvez já não seja – fazer um discurso de avaliação. Pode ser um discurso de arte. As coisas estão muito soltas. Qual o destino do livro? Será o e-book? Não sei. Penso que o livro não vai acabar, mas como será essa plataforma que o sustentará? Claro que surgirá um capítulo novo da crítica. Mas com que eficiência? É difícil prever.

JU – O senhor se aposentou há dois anos. Como tem sido a sua rotina?

Antonio Arnoni Prado – Eu já terminei as orientações. Continuo lendo e trabalhando. Terminei um texto de memórias, que remete ao tempo em que, meninos, jogávamos futebol na rua. Tive o grande prazer de reviver o bairro onde morava em São Paulo, o Tremembé da Cantareira, lá para os lados do Horto Florestal, com os nomes das ruas daquele tempo, da década de 1950. Ali havia somente chácaras. No texto rememoro a vida solta nas ruas em contato com a natureza, num tempo em que sequer poderia imaginar que um dia seria professor. Ali perto havia uma chácara na qual o time do Corinthians se concentrava, com craques como Gilmar, Cláudio, Luisinho, Goiano e tantos outros. Eu e meus amigos acompanhávamos os treinos e até saímos numa foto com os jogadores, que foi publicada no jornal O Esporte. Hoje, eu continuo trabalhando, estudando e olhando sempre para os chamados autores marginais.

Título: Dois letrados e o Brasil nação - A obra crítica de Oliveira Lima e Sérgio Buarque de Holanda

Autor: Antonio Arnoni Prado

Editora: Editora 34

Páginas: 376

Preço sugerido: R$ 50,00

capa do livro dois letrados e o brasil nação
capa do livro cenário com retratos - esboços e perfis

Título: Cenário com retratos – Esboços e perfis

Autor: Antonio Arnoni Prado

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 312

Preço sugerido: R$ 44,90