Edição nº 631

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 03 de agosto de 2015 a 09 de agosto de 2015 – ANO 2015 – Nº 631

Os incompreendidos


O pesquisador e crítico literário Carlos Felipe Moisés, autor do livro: “Procurei recolher textos representativos da variedade de reações desencadeadas pela revista”Há um século, em março de 1915, era lançado em Lisboa o primeiro número da revista Orpheu. Resultado de um projeto luso-brasileiro de literatura, a publicação reunia artistas e intelectuais portugueses de ponta, tais como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada-Negreiros, Alfredo Pedro Guisado e o brasileiro Ronald de Carvalho. 

Inspirada nas vanguardas europeias, a publicação tinha o propósito de revolucionar o pensamento e as artes, congregando artistas alinhados com as estéticas modernas. Por isso, entrou para a história como o marco fundador do Modernismo em Portugal.

“Nossa pretensão é formar, em grupo ou ideia, um número escolhido de revelações em pensamento ou arte, que sobre esse princípio aristocrático tenham em Orpheu o seu ideal esotérico e bem nosso de nos sentirmos e conhecermo-nos”, escreveu o diretor da revista em Portugal, Luís de Montalvor, na introdução do primeiro número. Desse modo, ele definiu a publicação como “um exílio de temperamentos de arte que a querem como um segredo ou um tormento”. Além de Montalvor, o poeta Ronald de Carvalho estava à frente do projeto, como diretor no Brasil. 

Passados cem anos, o que permanece da revolução estética desencadeada por Orpheu? Quais são seus legados? Responder a essas perguntas é o mote do livro Orpheu 1915-2015, organizado pelo pesquisador e crítico literário Carlos Felipe Moisés, formado pela Universidade de São Paulo (USP). 

O volume, lançado pela Editora da Unicamp, reúne uma coletânea de textos originais da revista e artigos sobre o movimento, publicados ao longo do século XX. O objetivo é motivar e subsidiar o debate sobre os sentidos e as repercussões da revista. 

“Procurei recolher textos representativos da variedade de reações desencadeadas pela revista”, explica Moisés. O intuito é evidenciar que Orpheu não foi um episódio datado, circunscrito ao momento da sua aparição. “A revista constitui uma densa e duradoura matriz de estímulos estético-literários, cujos efeitos podem ser acompanhados, em sucessivas metamorfoses, década após década, geração após geração”.

Nesse sentido, reitera o crítico literário, a publicação permanece viva, já que nunca foi esquecida. Apesar disso, ele acredita que retomar Orpheu na contemporaneidade se coloca como uma necessidade: “Só a lembrança viva de histórias como a de Orpheu permite que a inércia e o comodismo continuem a ser combatidos”, afirma Moisés.

REAÇÃO

Logo no primeiro número, Orpheu gerou intensa repercussão negativa no meio cultural e artístico português, ainda fortemente marcado pelo classicismo e alijado das revoluções estéticas que assolavam outras partes da Europa.

A revista foi caracterizada como “literatura de manicômio”, e os jovens autores ridicularizados - especialmente Sá-Carneiro e Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. O primeiro publicou um conjunto de poemas que comporiam, mais tarde, Indícios de Oiro, entre eles “16” e “Nossa Senhora de Paris”, que tematizam a inadaptação à vida e o sentimento de incompletude. De Álvaro de Campos, foram publicados “Opiário” e “Ode Triunfal”, um elogio ao ambiente frenético e mecanizado da modernidade.

Expediente do primeiro número da revista “Orpheu”: marcado pelo classicismo, meio intelectual português rejeitou publicação do grupo liderado por Fernando Pessoa e Sá-CarneiroEm vez de intimidar, a reação escandalizada serviu de munição para o grupo que ficou conhecido como Geração de Orpheu. Em agosto de 1915, o segundo número da publicação foi lançado, com contornos ainda mais radicais. 

Sá-Carneiro e Pessoa assumem a direção de Orpheu, abandonando o projeto de uma revista binacional. A edição trazia a público reproduções de pinturas cubistas do artista plástico Guilherme de Santa-Rita, além de poemas de Ângelo de Lima, doente mental que vivia num manicômio. Também participaram Eduardo Guimarães [escritor brasileiro], Raul Leal, Violante de Cysneiros (pseudônimo de Armando Cortes-Rodrigues), Almada Negreiros, Raul Leal e Luís de Montalvor, além de Sá-Carneiro e Pessoa.

A crítica e o rechaço gerados pelo segundo número de Orpheu foram tão intensos quando os do primeiro. Mesmo assim, o grupo liderado por Pessoa e Sá-Carneiro partiu para o terceiro número. 

A intenção, porém, esbarrou em empecilhos que inviabilizaram o projeto: a edição chegou a ser montada e enviada à gráfica, mas não foi impressa. As dificuldades financeiras e a morte precoce de Sá-Carneiro em 1916 foram decisivas para que o projeto fosse abortado.

Uma carta de Sá-Carneiro a Pessoa, reproduzida no livro Orpheu 1915-2015, ajuda a compreender os problemas enfrentados pela publicação. “Em duas palavras: temos desgraçadamente de desistir do nosso Orfeu. Todas as razões lhe serão dadas melhor pela carta de meu Pai que junto incluo e peço que não deixe de ler. Claro que é devida a um momento de exaltação. No entretanto cheia de razões pela conta exorbitante que eu obrigo o meu Pai a pagar (...) o simples aparecimento do n.º 3 do Orfeu – feito ainda sob minha responsabilidade (...) seria na verdade mostrar em demasia a meu Pai minha insubordinação. Pena ter criado ilusões, feito com que você falasse a colaboradores etc.” 

Ou seja, em virtude das dificuldades de Sá-Carneiro, que vinha arcando com os custos da revista, utilizando para isso a mesada que recebia do pai, obviamente sem o consentimento deste, o projeto teve de ser interrompido.

UM ESPÍRITO VIVO

O fim de Orpheu não significou o fim do Modernismo em Portugal. Como enfatiza o autor do livro, a revista foi efêmera, mas a ideia teve sequência imediata com a publicação de outras revistas, igualmente efêmeras, enquanto durou o ímpeto revolucionário, e prosseguiu anos afora.

 “A esse propósito, cabe lembrar que a revista Presença, surgida no final dos anos 1920, como assumida herdeira de Orpheu, já não foi tão efêmera assim, dando firme continuidade ao que os pioneiros haviam iniciado. E assim tem sido, até hoje”. Conclusão: o projeto não deixou de ir adiante, defende Moisés. “A suposta falta de ‘espaço’ para a rebeldia, num meio reconhecidamente conservador, tem sido não um impedimento, mas, ao contrário, uma boa razão para que a revolução prosseguisse”.

Lançada em 1927, a Presença circulou até 1940 e entrou para a história como uma das mais influentes revistas literárias portuguesas do século XX, responsável pela difusão do Segundo Modernismo.

A publicação possui, segundo o crítico literário Moisés, uma firme relação com Orpheu, expressa na declaração de seu diretor, Adolfo Casais Monteiro: “Nós, escritores, temos uma dívida para com esta geração. Eis de fato a estranha verdade: a geração do Orpheu só através da Presença realizou parte da sua ação”.   

Em vez de ter sido uma herança direta,  estanque, o legado de Orpheu remete a diversas questões crítico-teóricas, levantadas pela estética da sua sucessora, a Presença. 

A própria concepção de modernidade é uma delas. Na visão de Moisés, a modernidade revolucionária de Orpheu resultava da convergência e, muitas vezes, da fusão dos contrários – o individual e o coletivo, o futuro e o passado, o velho e o novo, a ousadia e o comedimento, a transgressão e a conservação. “Só assim ganha pleno sentido o veredito definitivo de Fernando Pessoa: ‘Orpheu acabou. Orpheu continua’”, analisa o pesquisador. Orpheu “continua” exatamente porque não se ateve apenas a uma dessas vertentes, seja a conservadora, defendida por Luís de Montalvor, seja a mais rebelde, representada por Sá-Carneiro, Almada Negreiros ou Álvaro de Campos.

O autor reforça seu argumento com um exemplo: a cada número Orpheu abriga produções de tendências e posturas contraditórias, tais como o decadentismo de Ronald de Carvalho (vanguarda moderada) e o futurismo de Sá-Carneiro (vanguarda radical). Ou seja, a atitude conservadora dividia terreno com a revolução.

Esse passo à frente, alvo de crítica virulenta justamente por ter abalado estruturas do modo como se fazia literatura e arte em Portugal, é que teria possibilitado a consolidação dos movimentos modernistas no país, graças ao esforço capitaneado pela Presença, a partir do pioneirismo da revista Orpheu e suas sucessoras imediatas: Exílio (1916), Centauro (1916), Portugal Futurista (1917) e Athena (1924-1925).

O LUGAR DE PESSOA

Entre os autores que participaram de Orpheu, Fernando Pessoa teve importância decisiva para que o ideário da publicação permanecesse vivo. “Não fosse por Fernando Pessoa, a revista Orpheu teria caído no esquecimento, logo em seguida à publicação dos seus dois números”, afirma Moisés. “É por isso que, desde então, quando pensamos em Orpheu, pensamos imediatamente em Fernando Pessoa”.

No entanto, o destaque que o poeta ocupa teve como consequência relegar outros autores importantes a um plano secundário, tais como Sá-Carneiro, Almada Negreiros, José Régio, Casais Monteiro, Jorge de Sena, entre outros. 

“O vulto extraordinário de Pessoa tem condenado ao limbo não só a revista, como outras figuras exponenciais”, afirma. Além disso, ofusca a percepção da publicação como resultado de uma ação coletiva. “Assim sendo, corremos o risco de minimizar ou até de esquecer o que foi e, sobretudo, o que continuou a ser Orpheu, enquanto ação coletiva”. 

Segundo Moisés, Orpheu representou, para Fernando Pessoa, um momento privilegiado em que ele acreditou na necessidade de uma ação coletiva, para além ou aquém da realização da sua obra individual. Um “momento” que não se limitou a 1915-1916, mas estendeu-se a outras revistas nas quais ele empenhou o mesmo propósito nos anos seguintes, e teve desdobramentos que repercutem até hoje.

Assim, se de um lado justifica-se a primazia concedida ao poeta dos heterônimos, de outro caberia repensar essa história hoje centenária.

 

Expediente do primeiro número da revista “Orpheu”: marcado pelo classicismo, meio intelectual português rejeitou publicação do grupo liderado por Fernando Pessoa e Sá-Carneiro

Serviço

Título: Orpheu: 1915-2015 – Textos doutrinários e fortuna crítica (antologia)

Organização, prefácio e notas: Carlos Felipe Moisés

Páginas: 304

Área de interesse: Crítica e teoria literária

Preço: R$ 54,00