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Baixar versão em PDF Campinas, 03 de agosto de 2015 a 09 de agosto de 2015 – ANO 2015 – Nº 631Projeto mapeia e registra novas espécies em baía de SP
Biota/Fapesp Araçá descreve também cinco novos gêneros e uma família, no Litoral NorteA biodiversidade da Baía do Araçá, no Litoral Norte paulista, não só resiste à presença do vizinho Porto de São Sebastião como ainda ajuda a sustentar a população caiçara do entorno e preserva a capacidade de surpreender e encantar cientistas, revelando novas espécies, afirma a pesquisadora da Unicamp Cecília Amaral, coordenadora do Projeto Biota/Fapesp Araçá, que envolve cerca de 170 participantes, entre pesquisadores, técnicos e estudantes, do Brasil e do exterior.
Iniciado em 2012 e com término previsto para 2016, o projeto já conta com 60% dos dados analisados e revela um ambiente vibrante. “Em 50 anos de pesquisas, até 2010, tinham sido descritas pouco mais de 700 espécies na baía, sendo 34 espécies novas e nove ameaçadas de extinção”, disse a pesquisadora. “Agora, ainda com apenas 60% dos dados analisados, temos mais de mil espécies, sendo outras 56 novas para a ciência, além de cinco novos gêneros e uma nova família”.
Gênero e família são níveis de classificação superiores à espécie – um gênero pode abrigar várias espécies e uma família, vários gêneros. Descobertas de gêneros até então não descritos pela ciência são um evento mais raro que o de espécies, e a descoberta de uma nova família é algo ainda mais difícil.
As descobertas sobre a biodiversidade no Araçá estão descritas no livro “Vida na Baía do Araçá: Diversidade e Importância”, lançado, no início de agosto, em São Paulo e também em São Sebastião. “A publicação apresenta, em linguagem acessível, mas com rigor científico, os nossos resultados”, disse Cecília. O livro em papel será distribuído gratuitamente, e também estará disponível online, quando o site do projeto Biota/Fapesp Araçá entrar no ar, o que, a pesquisadora acredita, deve ocorrer em breve. “O livro atesta que a baía está viva”, disse ela.
Além de investigar a biodiversidade da baía – que chegou a ser declarada “morta” pelo prefeito do município de São Sebastião, em 2011, em meio aos debates sobre a ampliação do porto, que já engoliu, com aterros, duas áreas do Araçá – o projeto Biota/Fapesp também busca uma compreensão integrada do ambiente físico e químico e das interações humanas.
“A baía reúne vários ambientes, como praias, planície de maré, costões rochosos, onde vive uma grande diversidade de organismos. Temos também o manguezal, que já foi muito maior, mas ainda existem alguns remanescentes de grande importância ecológica. A região foi bastante modificada pelo homem, sofreu aterros e também tem a proximidade da cidade de São Sebastião, uma zona muito urbanizada”, disse a pesquisadora.
“Então, resolvemos fazer algo que é inédito no Brasil, e raro mesmo em nível mundial, um projeto que não trabalha somente com a fauna e a vegetação, mas também com as pessoas que vivem no entorno, onde temos bairros, moradores. E como esses moradores veem a baía? Ela fornece subsídios para sobrevivência deles? Eles coletam peixe na baia? Eles coletam invertebrados marinhos para alimentação? Tem venda? Tem importância comercial? Tem sim, e como!”, afirmou.
RESILIÊNCIA
Uma das constatações do projeto, até agora, foi a notável capacidade da vida na baía de resistir e se recuperar das agressões feitas pelo ser humano. “Ela tem uma resiliência muito própria, uma recuperação natural muito grande”, disse Cecília. “Muitos de nós estudamos a Baía do Araçá há muitas décadas, trabalho com meus estudantes desde 1987. Então, vejo como mexem na baía, olho e penso, desta vez ela não se recupera. Aí vamos lá estudar, e a baía se recuperou”. A baía sofreu com a ampliação do Porto de São Sebastião, devido aos aterros, e também com a instalação de um emissário para despejo de esgoto, precedida por uma dragagem, na década de 1990.
O Projeto Biota/Fapesp já mostrou que mesmo as nove espécies em perigo de extinção, detectadas nas pesquisas anteriores, continuam lá. “Todas aquelas espécies ameaçadas continuam lá, e agora registramos mais sete. Assim, são 16 espécies ameaçadas que vivem no Araçá. Por quê? O ambiente, embora sofrendo alterações frequentes, vai se recuperando, então as espécies ali permanecem. Este resultado já é suficiente para mostrar que a baía vive. Porém, ainda temos mais 40% de material para ser analisado, o que pode trazer muitas novidades para o resultado final. O projeto tem a expectativa de terminar em 2016”.
Mas essa resistência toda não é, adverte a pesquisadora, inesgotável. Ela cita a nova proposta de ampliação do porto com a construção de uma plataforma para contêineres por sobre parte da baía. “Para evitar um novo aterro, porque quando se aterra tudo é destruído, foi proposta uma plataforma sobre pilotis”, explicou ela. “A alegação é que, como a água vai circular por baixo da plataforma, entre os pilotis, não haveria alterações no ambiente como um todo, incluindo a fauna e flora. Mas a plataforma atrapalhará, sim, e muito. Porque tudo abaixo dela, num ambiente sem luz e com milhares de pilotis, terá sua dinâmica modificada e um severo empobrecimento da vida ocorrerá, além do ambiente tornar-se insalubre”.
A causa da resistência excepcional do ambiente do Araçá aos ataques humanos ainda está sendo investigada, mas Cecília aposta no papel da circulação da água entre a baía e o canal de São Sebastião. “No final do projeto, vamos ter essa resposta mais sólida, mas creio que a hidrodinâmica é o principal parâmetro que coordena esse trabalho. Quando a corrente marítima entra na baía, ela vem de norte a sul, num processo que está sempre lavando a baía, e ao mesmo tempo trazendo novos organismos”, disse.
“Por exemplo, registramos um acúmulo maior de metais no canal, só que dentro da baía estes são encontrados em quantidades bem menores, menos da metade”, exemplifica. “Creio que o estudo da hidrodinâmica, tipos de corrente, altura de onda, altura de maré, integrado a outros fatores irão esclarecer melhor tal fato”.
CAIÇARAS
O projeto também vem estudando e constatando a importância da preservação da baía para a população que vive em seu entorno. “Os caiçaras querem que permaneça como está”, disse Cecília. “Tem um grande número de caiçaras que vive do Araçá”.
Os pesquisadores envolvidos no levantamento de dados para a gestão integrada da baía vêm entrevistando as famílias e montando um relatório com as respostas. “Eles estão vendo que ganho os caiçaras têm com o que coletam ali. Alguns dizem: ‘coleto e como’. Outros: ‘sustento a minha família e também tenho comércio, vendo 20 kg de berbigão ao dia’, por exemplo”.
“E tem outro fator ali, também”, acrescenta ela. “Como é uma baía mais abrigada, muitos peixes são criados em seu interior. Outro dia, os pesquisadores do projeto capturaram meia tonelada de sardinha jovem na baía, porque a sardinha provavelmente está sendo criada em seu interior. Essas áreas são conhecidas mundialmente como regiões de criadouro”.
Parte do ineditismo do projeto vem da forma como foram obtidas as amostras de espécimes da vida aquática. “No caso de peixes, não foram usados rede de arrasto e um barco de pesquisa, como normalmente se faz. Foram convidados pescadores que pescam na baía e entorno, com as suas diferentes armadilhas, seus petrechos, como são chamados, e coletaram nas áreas mais exclusivas onde costumam pescar. Então, é o resultado de fato, pescado pelo pescador”.
INTERAÇÕES
O projeto se divide em três frentes – Processos Biológicos, Processos Físicos e Gestão – sendo que cada uma tem questões específicas a responder. Os Processos Biológicos, por exemplo, investigam a biodiversidade local, as populações das diferentes espécies e a relação entre elas. Os pesquisadores da área de Processos Físicos buscam compreender as características da água e do sedimento. E Gestão avalia o aspecto socioeconômico, quais os impactos da atividade humana sobre a baía, como e por quem a área é utilizada.
“Todas essas perguntas estão dentro de cada um desses grandes grupos, e aí temos a integração entre os grupos”, disse Cecília. “Qual a integração entre a biologia, o físico e o químico? A estrutura das comunidades de animais e vegetais? Como eles se distribuem no tempo e no espaço? Quais são os eventuais impactos que eles podem sofrer, tanto naturais quanto antrópicos?”
“A gestão pode interagir também com esses aspectos”, lembrou. “Vai interagir com o físico e químico: houve erosão? Qual o prejuízo para a baía e os moradores por causa da erosão? A questão da pesca. Tem pesca? Como vai ser conduzido o manejo dessa pesca? Quais serviços ambientais são prestados?”
MODELOS
No fim, os pesquisadores esperam que as intercessões entre as diferentes áreas produzam um modelo ecológico. “Como não temos todos os dados ainda, o modelo será elaborado após a finalização dos resultados, possivelmente nos seis últimos meses, quando estiver tudo pronto”, disse Cecília.
“O modelo reúne todos os resultados e gera uma figura: como a baía funciona, quem se alimenta de quem, quais as bases da teia trófica com seus próprios organismos e mais aqueles como o peixe que entra para desovar, e depois da desova as larvas são criadas ali dentro”, exemplificou. “E com o objetivo de incluir as interações humanas, também”.
O produto final do projeto deverá ser um sistema para o gerenciamento dos dados gerados. “As informações estarão disponíveis em bancos de dados, para que sejam utilizados como subsídios na avaliação e elaboração de planos de conservação e manejo. Além disso, outros pesquisadores poderão cruzar as informações”.
Se bem-sucedido, o projeto poderá servir de modelo para outras áreas, no Brasil e no exterior. “Se a gente consegue trabalhar com tudo isso, com todos esses tipos de análises, dar uma fotografia de como aquele sistema funciona, incluindo a gestão, será um fato inédito – porque sempre estudamos a biodiversidade, o ambiente físico, químico e não relacionamos com a importância socioeconômica da área de estudo”, disse a pesquisadora. “A inclusão da gestão, nessa globalização do projeto, creio que seja a primeira vez que se faz no Brasil. No exterior, existem três ou quatro projetos com esse objetivo. Então, a ideia é que essa pesquisa seja levada a outros locais, outros Estados, como um modelo bem-sucedido”.