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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 10 de agosto de 2015 a 16 de agosto de 2015 – ANO 2015 – Nº 632Os princípios da autonomia e os pontos fora da curva
O teto salarial do funcionalismo paulista, vinculado ao subsídio pago ao gover-nador do Estado, de R$ 21,6 mil, comprime os vencimentos dos professores das universidades estaduais, desestimulando a produtividade, a busca de progressão na carreira e, até mesmo, a captação de novos talentos, já que torna o ingresso no ensino federal, onde o teto é dado pelo salário dos ministros do STF (superior a R$ 33 mil), mais atraente. É o que argumenta um grupo de professores que propõe a adoção de um novo teto estadual, também vinculado aos vencimentos do STF, por meio de abaixo-assinado lançado no início do ano, e que já conta com mais de 800 assinaturas de docentes, tanto da Unicamp quanto também da Unesp e da USP (leia a íntegra na página 9).
“Nosso teto é 50% inferior ao das federais”, disse o pesquisador Alcir Pécora, professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. “Sendo que as universidades estaduais paulistas concentram 50% da produção científica do Brasil, e sempre aparecem como os principais destaques brasileiros nos rankings internacionais, geralmente com a USP em primeiro lugar no país e a Unicamp em segundo”.
Um dos organizadores da campanha pela elevação do teto estadual, o pesquisador Armando Boito, docente e cientista político do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH), lamenta que a divulgação recente de casos pontuais de vencimentos, pagos pela universidade, muito superiores ao subsídio do governador possa vir a viciar esse debate. “O que se aponta na mídia são pontos fora da curva, que estão sendo usados como pretexto para achatar a curva”, disse ele. “Nós reivindicamos um teto que, se aplicado, acabará com esses megassalários”.
Da forma como a carreira docente está estruturada, explicam os professores, um doutor que ingressa no quadro da Unicamp vê seus vencimentos baterem no limite superior imposto pelo Estado antes mesmo de chegar ao topo da carreira acadêmica. O salário inicial de um doutor recém-concursado é da ordem de R$ 11 mil. “Com as progressões naturais da carreira, mais as indenizações por tempo de serviço público, comuns a todo o funcionalismo paulista, um professor pode atingir o teto com cerca de 20 anos de carreira, antes de prestar o concurso para livre-docente. Então, para que fazer esse concurso? O título se torna meramente honorário”, disse Boito.
“No caso, sobretudo, das universidades de exce-lência, como é o caso da Unicamp, onde a pessoa só entra como doutor, já é preciso ter uma longa carreira antes de começar a dar aula aqui. Dificilmente o professor entra aqui sem ter, antes, vários anos de trabalho acadêmico”, lembrou Pécora.
“Ninguém entra na universidade com menos do que 33 anos de idade”, estima Boito. “Hoje em dia, tem que fazer a graduação, são pelo menos quatro anos. Depois, mais dois a três anos para o mestrado e dissertação de mestrado, mais quatro, cinco anos no doutorado, dois a três anos de pós-docs. São cerca de nove anos, além da graduação. Um bacharel de Direito, para ser juiz, pode terminar a faculdade e prestar concurso direto. Já para ser professor na Unicamp, são nove anos além da graduação”.
Boito cita que, num concurso recente para professores no Departamento de Sociologia do IFCH, compareceram 13 candidatos, sendo que num processo semelhante realizado na Universidade Federal de São Carlos (UFScar) na mesma época apresentaram-se mais de 30 candidatos. “A médio prazo, as estaduais paulistas vão perder espaço na competição por talentos, no cenário nacional”, acrescentou o sociólogo Marcelo Ridenti, também do IFCH.
CONGELAMENTO E AUTONOMIA
Os pesquisadores lembram, ainda, que o subsídio do governador é definido com base em critérios políticos, não técnicos ou de carreira, e está congelado há anos, congelamento que atribuem a um cálculo político demagógico. “Já que o Estado optou por manter o teto do funcionalismo vinculado ao subsídio do governador, deveriam ser feitos reajustes anuais para o cargo, e isso de acordo com os índices utilizados para os reajustes gerais do funcionalismo”, disse Pécora.
“Mas o Alckmin [governador Geraldo Alckmin, que governa o Estado desde 2011] não tem feito isso, e algumas vezes em que a Assembleia Legislativa aprovou um aumento para seu cargo, ele vetou. Ou seja, o subsídio dele está defasado, num claro procedimento de uma estratégia que é de arrocho do funcionalismo, de um lado, e populista de outro, jogando para a plateia”.
O debate da questão do teto, acredita Pécora, envolve também a autonomia universitária. “Acho que a autonomia foi claramente ferida nesses casos todos, nessa interferência. A organização da própria carreira é um princípio claro da autonomia, faz parte da autonomia financeira. Se a universidade não tiver autonomia financeira, não tem autonomia nenhuma. Na verdade, foi graças à autonomia que a universidade cresceu. O crescimento mais nítido da universidade foi a partir da autonomia”, disse ele. “E sem autonomia financeira não há autonomia nenhuma. Porque sem autonomia financeira não há como ter confiança no sistema, na carreira. Antes dela, ficava-se completamente dependente”.
“As universidades paulistas expandiram-se enor-memente nos últimos 15, 10 anos”, acrescentou Boito. “As vagas na graduação, as vagas na pós-graduação, o número de cursos de graduação e de pós-graduação. Os cursos noturnos. E nossa produção científica, a produção de teses cresceu enormemente, tudo durante o período da autonomia”.
O princípio da autonomia universitária foi consagrado na Constituição Federal de 1988. Dados da edição mais recente do “Anuário Estatístico da Unicamp” revelam um crescimento de mais de 400% no número de cursos noturnos, tendo como base o ano 1989; de mais de 100% nas vagas da graduação; de mais de 230% no de cursos de doutorado; mas uma queda de quase 10% no número de docentes ativos.
“E é nessa situação, de expansão de atividades e redução de professores, que resolvem intervir na universidade para comprimir a carreira docente e, aí sim, derrubar nossa produção”, aponta Boito, referindo-se à reação negativa causada pela ênfase dada pela mídia à questão dos “megassalários”, os “pontos fora da curva”, como ele os chama.
OPINIÃO PÚBLICA
Os pesquisadores estão cientes de que convencer a população de que um professor universitário que ganha mais de R$ 20 mil ao mês está sendo mal remunerado – num país onde o salário mínimo não chega a R$ 1 mil – é uma tarefa ingrata. “Nossa causa é impopular, mas é justa”, disse Boito. “Mas eu poderia dizer o seguinte: no Brasil, o salário mínimo está R$ 788. Um funcionário público que ganhe três mínimos, ou aproximadamente R$ 2.400, e que tenha completado o ensino médio já é, se você assumir uma posição um tanto cínica, um privilegiado em relação a grande parte da população que paga imposto. Ele já é um privilegiado em relação ao trabalhador comum”, afirma.
“Num país com tanta desigualdade como o Brasil, o uso desse tipo de argumento subentende uma linha de corte arbitrária: o que você pode perguntar para nós, que somos professores titulares com 40 anos de trabalho nas costas, a gente poderia perguntar para um professor da rede pública que dá aula recebendo R$ 3 mil ou R$ 4 mil, depois de 20 anos de trabalho: ‘Professor, como você quer receber R$ 3 mil de dinhei-ro de impostos, se está cheio de gente que não tem onde dormir, está abaixo da linha de pobreza?’. Há um uso interessado, mal intencionado, desse argumento”, acredita.
O pesquisador vê motivações econômicas por trás do que acredita ser uma manipulação deliberada do debate na grande mídia. “Você tem um sistema milionário de universidades privadas, que hoje é um capital internacional e que tem interesses”, afirma.
“Quando se publica uma matéria, baseada em pontos fora da curva, dizendo que, por exemplo, na USP tem um ou outro gato pingado que ganha um megassalário, mas escondendo que são poucos gatos pingados, sugerindo que é um caso geral, isso vai agradar muito aos proprietários das universidades privadas, porque são dois sistemas concorrentes: cada ponto que o sistema público perde, junto à opinião pública, é um ponto que o sistema privado ganha”, acredita. “É um jogo de soma zero, sim. Creio que há uma campanha de difamação que interessa ao ensino privado, e que foi mobilizada contra o ensino público no Brasil”.
“O sistema universitário público estabelece um padrão que é um permanente incômodo para o sistema universitário privado”, acrescenta. “Eles têm todo o interesse em minar o prestígio, enfraquecer financeiramente e detonar a carreira da universidade pública. Porque os professores da universidade privada reivindicam uma carreira, entre outros motivos, porque sabem que existe uma carreira na pública”.
ACESSO
Os professores concordam que um aumento da participação popular na universidade, e do acesso das camadas menos favorecidas da população ao ensino superior público, poderia reduzir a percepção de que a universidade estadual é uma torre de marfim que transforma os impostos de muitos em privilégio para poucos.
“É preciso fazer a democratização do acesso”, disse Boito. “Porque todas as universidades federais têm cota social e racial. Das três universidades paulistas, entre as mais importantes universidades públicas do Brasil, só a Unesp tem cotas, mas muito menores que as federais”.
“Infelizmente, existe uma resistência, oriunda do fato de o governo do Estado, que é o mesmo governo que decidiu comprimir a nossa carreira, rebaixar o nosso teto frente a todos os outros Estados do país, ser o governo que impede a adoção de cotas e que assim nega, recusa e impede que os egressos da escola pública e os afrodescendentes entrem nesta universidade como entram nas federais”, acrescenta.
O abaixo-assinado dos professores das universidades estaduais paulistas pede que a Assembleia Legislativa paulista aprove a adoção de um subteto salarial para o funcionalismo baseado não no subsídio do governador, mas nos vencimentos dos ministros do STF. Também há um projeto de lei federalizando os pisos salariais dos Estados, tramitando da Câmara dos Deputados.
Caso venham a ser aplicados cortes nos salários dos professores mais graduados, Pécora e Boito preveem uma queda na produção acadêmica e uma onda de aposentadorias de professores que estão no topo da carreira. “Há muitos professores que já poderiam estar em casa, recebendo seus salários integrais, e que continuam dando aula sem ganhar um tostão a mais por isso”, disse Pécora. “Se eles tiverem seus salários cortados, o desestímulo será muito grande”.
Em defesa da qualidade acadêmica JOÃO QUARTIM DE MORAES São recorrentes na grande imprensa matérias que divulgam os rankings acadêmicos internacionais. Admitindo que estes rankings apresentem certa objetividade, as três universidades públicas do Estado de São Paulo classificam-se entre as melhores da América Latina e estão bem colocadas entre as melhores do mundo. Juntas, elas acolhem mais de cento e oitenta mil estudantes e respondem por boa parte da pesquisa científica nacional. A Unicamp, em particular, tem sido a maior produtora de patentes de pesquisa do Brasil. Entretanto, se depender do governo estadual e de jornais que dominam a notícia, essas três universidades caminharão a médio e mesmo a curto prazo para a decadência. É fácil entender por quê. O subteto salarial que define o vencimento máximo de um professor/pesquisador das estaduais paulistas corresponde, no final de uma carreira de trinta/quarenta anos, ao subsídio do chefe do Executivo, hoje de pouco mais de 21 mil reais. O teto dos professores/pesquisadores de universidades federais ultrapassa 29 mil reais. Evidentemente, os mais qualificados optarão pelas federais. Por que tão chocante diferença? É que em São Paulo, o Estado mais rico do Brasil, o subteto é um dos mais baixos entre os 27 Estados que compõem a Federação, só perdendo para o Ceará e o Espírito Santo, cujos subtetos são de 19,4 mil reais. Os outros 24 Estados (DF incluído) têm pisos superiores, a grande maioria em torno de trinta mil reais. O termo “teto” sugere um nível fixo. Mas em São Paulo, por obra de Alckmin e da maioria monolítica de que ele dispõe na Assembleia Legislativa (Alesp), o subteto se move tetricamente para baixo, produzindo um gradual e constante efeito de achatamento do salário real. Na última década (2005-2015), o reajuste do salário dos docentes da USP, da Unicamp e da Unesp foi de 45,66%, enquanto a inflação atingiu 69,47% segundo o Dieese e 69,24% segundo o IPCA. Os efeitos destrutivos dessa política já afetaram o Regime de Dedicação Integral à Docência e Pesquisa (RDIDP), que viabilizou durante décadas as condições profissionais da excelência acadêmica, tornando a carreira mais atrativa através de salários maiores, mas exi-gindo concentração plena e exclusiva no ensino e pesquisa de alto nível. Infelizmente, esse regime exitoso, que aproximou as instituições universitárias brasileiras das melhores do mundo, está sendo minado pelo acha-tamento salarial. Um número crescente de docentes e pesquisadores altamente qualificados vem sendo empurrado para fora das universidades públicas paulistas. Não que lhes falte desprendimento. Basta considerar a alta porcentagem de professores aposentados que continuam em plena atividade, sem nenhuma remuneração extra. Em quantas profissões ocorre fenômeno semelhante? Mas o altruísmo não está imune à sensação de injustiça provocada pelo subteto discriminatório. Longe, entretanto de se preocupar com as ameaças que pesam sobre o RDIDP, influentes órgãos de im-prensa, notadamente a Folha, tem se empenhado em sucessivas campanhas exigindo imediata e irrestrita aplicação do corte de salários de professores e pesquisadores que recebem acima do teto salarial do governador do Estado. É bem provável que esse zelo contra a carreira docente das universidades públicas reflita o interesse de grandes grupos privados de educação superior em sucatá-las para impor o ensino pago. A campanha da Folha não menciona que o subsídio do governador remunera um cargo eletivo, de ocupação efêmera, cuja fixação depende de cálculos políticos, não devendo, pois, servir de referência para enquadrar o salário de uma carreira que exige décadas de formação e trabalho e cuja remuneração é a única fonte de rendimento dos que a ela estão integralmente dedicados. Oculta também que, diferentemente do governador, esses professores não recebem de graça um palácio para morar, transporte terrestre e aéreo de luxo, alimentação farta, além de outras vantagens inerentes à chefia do Executivo. Fixar um teto igualitário de vencimentos nos serviços públicos é justificável para evitar rendimentos abusivos. Mas não o subteto, que é uma instituição perversa em si mesma: ela estabelece para um mesmo trabalho, de igual qualificação, possibilidades de ascensão salarial diferentes, ferindo o princípio universal “para trabalho igual, salário igual”. Ela se torna duplamente perversa quando o espírito da lei do teto é demagogicamente deturpado, como ocorre em São Paulo, onde o subsídio do governador é decidido na base de manobras políticas que o mantêm escandalosamente baixo (em 25º lugar de 27). Do ponto de vista eleitoreiro, o cálculo de Alckmin parece ter funcionado até agora. Renunciando, com baixíssimo custo (já que não tem as despesas do comum dos mortais), a aumentar seu subsídio, ele reforça a imagem de austeridade que lhe tem valido vitórias folgadas no Estado de São Paulo. Mesmo porque os efeitos maléficos do achatamento da carreira acadêmica demoram um pouco para se manifestar. Por tudo isso, se quisermos preservar a qualidade tão duramente conquistada das universidades públicas de São Paulo, teremos de continuar lutando com todo nosso empenho e com o estímulo moral que nos proporcionam os mais de oitocentos colegas da USP, Unicamp e Unesp que subscreveram o manifesto pelo teto salarial único, pela aprovação de uma emenda constitucional que ponha fim à destrutiva discriminação a que estão injustamente submetidos.
João Quartim de Moraes é professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. |