Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 10 de agosto de 2015 a 16 de agosto de 2015 – ANO 2015 – Nº 632Teto fere isonomia e caráter nacional da educação superior
Em parecer produzido após consulta feita pelo reitor da Unicamp, José Tadeu Jorge, o jurista Eros Grau, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), evoca a Constituição, a regra da isonomia e o caráter nacional da educação superior para fundamentar o documento, no qual diz que “a Unicamp deve adotar o mesmo teto remuneratório aplicável aos docentes das universidades públicas federais”. Leia a seguir a íntegra do parecer.
O Magnífico Reitor da UNICAMP,
Prof. Dr. José Tadeu Jorge, encaminhou-me a seguinte
“Consulta:
Os vencimentos dos docentes da UNICAMP têm sido comparados ao subsídio do Governador do Estado de São Paulo, atualmente fixado em R$ 20.662,00, para aferição do teto remuneratório.
Já os professores das universidades públicas federais têm suas remunerações comparadas ao teto remuneratório federal, que desde janeiro de 2012 corresponde ao valor de R$ 28.059,29.
Assim, teoricamente, um Professor Titular da UNICAMP pode receber no máximo uma remuneração de R$ 20.662,00, enquanto um Professor Titular da UNB ou da UFSCAR pode perceber R$ 28.059,29 de vencimentos. Trata-se de uma diferença que não só fere o princípio da isonomia e o caráter nacional da educação superior (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), como também desestimula o ingresso de futuros docentes nos quadros da UNICAMP e incentiva a saída de seus professores mais qualificados, que preferirão seguir suas carreiras nas universidades federais, onde o pagamento de salários mais elevados é viabilizado pelo teto remuneratório federal de R$ 28.059,29.
Indaga-se se, considerando o princípio da isonomia e o caráter nacional da educação superior (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), é possível que a UNICAMP, autarquia de regime especial do Estado de São Paulo, adote o mesmo teto remuneratório aplicável aos docentes das universidades públicas federais?”.
PARECER
01. A Constituição do Brasil confere à educação, bem assim ao ensino, caráter nacional. Define que à União compete privativamente legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional1 . Trata do ensino público como um todo, o que se pode discernir do disposto no artigo 206. Todas as universidades públicas, sejam federais, sejam estaduais, “gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”, nos termos do que determina seu artigo 207.
Mais ainda, nos termos do disposto em seu artigo 214, “[a] lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas”.
02. Além disso, o § Io do artigo 8o da lei 9.394/96 — que estabelece as “diretrizes e bases da educação nacional” — define que “[caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais”.
O artigo 9o dessa mesma lei designa incumbir à União, entre outras atribuições,
(I) a elaboração do Plano Nacional de Educação, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios2;
(II) assegurar processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino fundamental, médio e superior, em colaboração com os sistemas de ensino, objetivando a definição de prioridades e a melhoria da qualidade do ensino3;
(III) baixar normas gerais sobre cursos de graduação e pós-graduação4;
(IV) assegurar processo nacional de avaliação das instituições de educação superior, com a cooperação dos sistemas que tiverem responsabilidade sobre este nível de ensino5; e
(V) autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar, respectivamente, os cursos das instituições de educação superior e os estabelecimentos do seu sistema de ensino6.
E o § Io desse mesmo artigo 9o estabelece que “[na estrutura educacional, haverá um Conselho Nacional de Educação, com funções normativas e de supervisão e atividade permanente, criado por lei”.
03. Daí o caráter nacional da educação, em especial o ensino superior, objeto de consideração neste meu parecer. A Constituição do Brasil o afirma, reiterando-o a lei 9.394/96.
Por isso resulta inadmissível a fixação de tetos remuneratórios distintos para professores de universidades federais e de universidades estaduais.
04. O artigo 37, XI da Constituição do Brasil estabelece que a remuneração dos servidores públicos em geral não pode “exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, (...) nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo”7. Mas distinção entre servidores públicos federais e estaduais não alcança os docentes das universidades públicas federais e estaduais.
05. Com efeito, a Constituição consubstancia uma totalidade. Totalidade normativa que não se pode interpretar em tiras, aos pedaços. Dela não se pode destacar determinado preceito, a fim de que se o interprete individualizada, isoladamente.
A interpretação do direito é interpretação do direito, não de textos isolados, desprendidos do direito. Não se interpreta textos de direito isoladamente — permito-me repeti-lo —, mas sim o direito, no seu todo. Isso tenho reiteradamente sustentado8. Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços.
A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele — desse texto — até a Constituição.
Por isso um texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico não expressa significado normativo algum, o que vale ainda em relação aos preceitos veiculados pela Constituição. Também os seus textos — artigos e parágrafos — devem ser interpretados no quadro da totalidade constitucional, vale dizer no quadro da totalidade normativa da Constituição.
06. Ademais, a Constituição evidentemente não se contradiz. Seu artigo 37, XI admite a fixação de tetos distintos de remuneração aplicáveis aos servidores públicos em geral, mas essa autorização para discriminar somente subsiste na medida em que adequada à isonomia.
07. A igualdade se expressa em isonomia [= garantia de condições idênticas asseguradas ao sujeito de direito em igualdade de condições com outro sujeito de direito] e na vedação de privilégios. Decorre da universalidade das leis — jura non in singulas personas, sed generaliter constituuntur8. Reunidos os dois princípios, igualdade e universalidade das leis, assim se traduzem: a lei é igual para todos e todos são iguais perante a lei. Nem sempre foi assim, contudo. Tal como inscrito nos primeiros textos constitucionais, o princípio da igualdade era interpretado exclusivamente como determinação de igualdade na aplicação do direito. Essa determinação vincularia unicamente os órgãos que aplicam o direito, não alcançando o legislador, o que despertou acesa crítica de Kelsen9. Após passou a ser tomado também como determinação de igualdade na formulação do direito, o que importa em que todos devam ser tratados de modo igual pelo legislador11.
A anotação de Francisco Campos é primorosa: “O mandamento da Constituição se dirige particularmente ao legislador e, efetivamente, somente êle poderá ser o destinatário útil de tal mandamento. O executor da lei já está, necessàriamente, obrigado a aplicá-la de acordo com os critérios constantes da própria lei”12.
08. Diz o artigo 5o da Constituição do Brasil:
“Art. 5o - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes” (grifei).
Encontra-se no enunciado deste artigo 5º, caput — enunciado bem distinto dos que anteriormente, nas nossas Constituições antecedentes, o institucionalizaram — a consagração da igualdade não apenas em termos formais, mas ainda em termos materiais13. Vale dizer: o que a nova Constituição postula, expressamente, é o entendimento que vinha a doutrina contemplando, segundo o qual a tão-só igualdade perante a lei nada significaria14. Ela se manifesta, no texto, qual observa José Souto Maior Borges15, como instrumento de preservação de si própria: a igualdade formal garante a igualdade material e a igualdade material garante a igualdade formal. Não basta que a todos se aplique; é necessário que o seu conteúdo alcance todos igualmente.
09. A concreção da regra16 da igualdade reclama a prévia determinação de quais sejam os iguais e quais os desiguais, mesmo porque — e isso é repetido quase que automaticamente, desde Platão e Aristóteles17 — a igualdade consiste em dar tratamento igual aos iguais, desigual aos desiguais.
Vale dizer: o direito deve distinguir pessoas e situações distintas entre si, a fim de conferir tratamentos normativos diversos a pessoas e a situações desiguais. A questão que fica — crucial — é, na dicção de Celso António Bandeira de Mello18, a seguinte,: “[a]final, que espécie de igualdade veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação de situações e de pessoas, sem quebra e agressão aos objetivos transfundidos no princípio constitucional da isonomia?”.
10. Tudo se torna mais claro na medida em que considerarmos o quanto afirma Kelsen19: “os homens (assim como as circunstâncias externas) apenas podem ser considerados como iguais, ou, por outras palavras, apenas há homens iguais (ou circunstâncias externas iguais), na medida em que as desigualdades que de facto entre eles existem não sejam tomadas em consideração. Se não há que tomar em conta quaisquer desigualdades sejam elas quais forem, todos são iguais e tudo é igual’. E prossegue, adiante20, observando que o princípio [= a regra] “postula não apenas um tratamento igual mas também um tratamento desigual. Por isso, tem de haver uma norma correspondente a este princípio que expressamente defina certas qualidades em relação às quais as desigualdades hão-de ser tidas em conta, afim de que as desigualdades em relação às outras qualidades possam permanecer irrelevantes, a fim de que possam haver de todo em todo, portanto, indivíduos ‘iguais’. ‘Iguais’ são aqueles indivíduos que, em relação às qualidades assim determinadas, não são desiguais. E o poderem, de todo em todo, existir indivíduos ‘iguais’, é a consequência do facto de que, se não todas, pelo menos certas desigualdades não são consideradas” (grifo no original).
Por isso mesmo pode a lei — como qualquer outro texto normativo —, sem violação da regra da igualdade, distinguir situações, a fim de a uma delas conferir tratamento diverso do que atribui a outra. Para que possa fazê-lo sem que essa violação se manifeste, é necessário que a discriminação guarde compatibilidade com o conteúdo da regra.
Procurando dar resposta à indagação a respeito de quais situações e pessoas podem ser discriminadas sem quebra e agressão aos objetivos transfundidos na regra constitucional da isonomia, a jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão toma como fio condutor o seguinte: “a máxima da igualdade é violada quando para a diferenciação legal ou para o tratamento legal igual não seja possível encontrar uma razão razoável, que surja da natureza da coisa ou que, de alguma forma, seja compreensível, isto é, quando a disposição tenha de ser qualificada de arbitrária”21.
Dir-se-á, pois, que uma discriminação será arbitrária quando “não seja possível encontrar, para a diferenciação legal, alguma razão razoável que surja da natureza das coisas ou que, de alguma forma, seja concretamente compreensível”22.
Tratando do tema, Celso Antônio Bandeira de Mello23 observa que o reconhecimento das diferenciações que não podem ser feitas sem quebra da isonomia envolve a ponderação de três questões: “tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é ‘in concreto’, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia com eles”.
11. O artigo 37, XI da Constituição do Brasil, vimos acima, admite a fixação de tetos distintos de remuneração aplicáveis aos servidores públicos em geral, mas essa autorização para discriminar somente subsiste na medida em que adequada à isonomia.
O que e no que são desiguais professores de universidades federais e de universidades estaduais?
12. O critério de discriminação entre os primeiros e os segundos encontrar-se-ia na circunstância de uns serem professores de universidades federais, os outros de universidade estaduais. Inexiste, a toda evidência, justificativa racional, fundamento lógico, para, em razão de discriminação como tal, distinguir-se os primeiros dos segundos. Distinção como tal está em franca desarmonia com a regra constitucional da igualdade e o caráter nacional da educação, em especial o ensino superior.
13. Situação análoga foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 3.854 MC, atinente ao teto remuneratório constitucional aplicável os membros da magistratura federal e estadual, cuja ementa transcrevo:
“EMENTA: MAGISTRATURA. Remuneração. Limite ou teto remuneratório constitucional. Fixação diferenciada para os membros da magistratura federal e estadual. Inadmissibilidade. Caráter nacional do Poder Judiciário. Distinção arbitrária. Ofensa à regra constitucional da igualdade ou isonomia. Interpretação conforme dada ao art. 37, inc. XI, e §12, da CF. Aparência de inconstitucionalidade do art. 2o da Resolução n° 13/2006 e do art. Io, § único, da Resolução n° 14/2006, ambas do Conselho Nacional de Justiça. Ação direta de inconstitucionalidade. Liminar deferida. Voto vencido em parte. Em sede liminar de ação direta, aparentam inconstitucionalidade normas que, editadas pelo Conselho Nacional da Magistratura, estabelecem tetos remuneratórios diferenciados para os membros da magistratura estadual e os da federal”.
Tudo quanto nesse julgamento foi observado aplica-se, qual uma luva, à questão versada na consulta. Não há nenhuma razão lógico-jurídica a distinguir docentes de universidades estaduais e docentes de universidades federais.
14. Ao quesito proposto na consulta dou, portanto, a seguinte resposta:
*sim; considerando a regra da isonomia e o caráter nacional da educação superior (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), a UNICAMP, autarquia de regime especial do Estado de São Paulo, deve adotar o mesmo teto remuneratório aplicável aos docentes das universidades públicas federais.
É o que me parece
São Paulo, 12 de novembro de 2013
Eros Roberto Grau
1 - Artigo 22, XXIV.
2 - Artigo 9o, I.
3 - Artigo 9o, VI.
4 - Artigo 9o, VII.
5 - Artigo 9o, VIII.
6 - Artigo 9o, IX.
7 - A Emenda Constitucional 47/05 inseriu um § 12 nesse artigo 37, com a seguinte redação: “§ 12. Para os fins do disposto no inciso XI do caput deste artigo, fica facultado aos Estados e ao Distrito Federal fixar, em seu âmbito, mediante emenda às respectivas Constituições e Lei Orgânica, como limite único, o subsídio mensal dos Desembargadores do respectivo Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, não se aplicando o disposto neste parágrafo aos subsídios dos Deputados Estaduais e Distritais e dos Vereadores”.
8 - Vide meu Por que tenho medo dos juízes. 6a edição refundida do Ensaio e discurso sobre a interpretação/ aplicação do direito, Malheiros Editores, São Paulo, 2013, pp. 84/85.
9 - Ulpiano, 1, 3, 10, 8.
10 - A Justiça e o Direito Natural. Armênio Amado, Coimbra, 1963, p. 66
11 - Vide, por todos, Francisco Campos, Direito Administrativo, vol. II, Livraria Freitas Bastos S/A, Rio de Janeiro, 1.958, pág. 189-191; e Direito Constitucional, vol. II, Livraria Freitas Bastos S/A, Rio de Janeiro, 1956, p. 17 e ss.
12 - Direito Constitucional, cit., p. 188; respeitei a ortografia do original.
13 - Isso evidentemente não significa que a igualdade seja realizada efetivamente, como em um passe de mágica, no mundo do ser. O que aponto é o fato de o discurso do texto normativo ter sido alterado.
14 - Observa Kelsen (A Justiça e o Direito Natural, cit., p. 79): “Com efeito, a chamada ‘igualdade’ perante a lei não significa outra coisa que não seja a aplicação legal, isto é, correta, da lei, qualquer que seja o conteúdo que esta lei possa ter, mesmo que ela não prescreva um tratamento igualitário, mas um tratamento desigual”.
15 - Parecer inédito
16 - A propósito da distinção entre regras e princípios, que hoje recuso, meu Por que tenho medo dos juízes, cit., pp. 98 e ss.
17 - Platão, Leis. VI 757; Aristóteles, Política. III 9 (1280a) e Etica a Nicõmano. V 6 (1131a).
18 - O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1978, pp. 15/16.
19 - Ob. cit., p. 67.
20 - Idem, pp. 70/71.
21 - Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte. Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1986, p. 366.
22 - Idem, p. 370.
23 - O conteúdo do princípio da igualdade, ob. cit., pp. 27/28.