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Baixar versão em PDF Campinas, 24 de agosto de 2015 a 30 de agosto de 2015 – ANO 2015 – Nº 634O mundo macroscópico, o voo dos pássaros e a física quântica
Pesquisadores do IFGW assinam dois artigos nos periódicos “Physical Review Letters” e “Physical Review E”O mecanismo que permite que as aves migratórias sintam o campo magnético terrestre para se orientar durante o voo e a aplicabilidade de um conceito antes tido como específico da física quântica a fenômenos do mundo clássico, macroscópico, são os temas de dois artigos publicados em periódicos internacionais de prestígio da área de Física, e que têm, entre seus autores, cientistas do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW).
O primeiro trabalho encontra, no conceito de “discórdia quântica”, uma forma de quantificar as incertezas que surgem quando se fazem medições imperfeitas em sistemas macroscópicos, cujas propriedades são normalmente descritas pela física clássica, e não pela quântica.
“Existe um conceito, o de entropia informacional, que quantifica a informação necessária para se caracterizar por completo um sistema”, explicou o pesquisador Marcos César Oliveira, do IFGW, que participou de ambos os estudos. A entropia informacional foi definida originalmente pelo americano Claude Shannon (1916-2001), o criador do conceito de “bit” como unidade de medida de informação. “Quando dois sistemas estão correlacionados, existe uma entropia mútua, que quantifica essa correlação”.
No caso de sistemas quânticos correlacionados, no entanto, o cálculo dessa entropia mútua é modificado pela presença do fenômeno chamado “discórdia” – que deriva do fato de que, no mundo quântico, toda tentativa de extrair informação de um sistema acaba alterando o estado do sistema: assim, qualquer medição feita num dos membros do par correlacionado afeta sua entropia, o que tem repercussão na entropia mútua e, por meio dela, no outro parceiro.
“Essa discórdia é dada pela sensibilidade do sistema à perturbação. Então, intrinsecamente, ela mede o quanto o seu sistema é perturbado por medições”, disse Marcos. “Existe uma gama de interpretações a respeito da discórdia, incluindo o fato de que ela pode estar representando uma correlação que é puramente quântica”.
Mas no artigo “Nonzero Classical Discord”, escrito em parceria com pesquisadores canadenses e publicado em Physical Review Letters, Marcos e demais coautores argumentam que é possível definir um análogo da discórdia quântica para pares de sistemas clássicos correlacionados, que surge quando a tentativa de medição de um deles é feita de forma imperfeita. A medição imprecisa introduz, no sistema clássico, um caráter probabilístico semelhante ao que domina nos sistemas quânticos.
“Pode-se introduzir uma aleatoriedade no sistema clássico. Digamos que tenho num sistema de correlação entre duas variáveis aleatórias, X e Y. Vamos supor que um mágico tem um dado e uma moeda, arranjados de tal forma que, quando o dado dá um número par, a moeda tem uma chance maior de 50% de dar cara”, sugere o pesquisador. “Só que eu não consigo ver direito o resultado do dado, então minha medição do estado dele é imperfeita”.
Essa medição imperfeita, disse Marcos, afeta a avaliação que se pode fazer da entropia geral do sistema, de modo semelhante à perturbação que uma medição direta causaria num sistema quântico.
O resultado final é um método que aplica o Teorema de Bayes – um princípio fundamental da teoria da probabilidade, que define a chance de se obter um determinado resultado A, dado que já foi obtido um resultado B, correlacionado – à análise da medição imperfeita: “Pode-se escrever uma probabilidade condicional de o dado real ser X, sendo que a medição imperfeita trouxe Y“, explica o pesquisador. “Esse teorema tem consequências importantes, relevantes, principalmente para inferência, porque você pode atribuir uma probabilidade prévia, antes de medir um determinado valor, e obter o que é chamado de estado ou probabilidade posterior, após a medição”.
Os autores concluem o artigo apontando que o trabalho reforça a interpretação da discórdia quântica como “uma medida da perturbação de um estado sob medição”, e que além de permitir que sejam levantadas questões sobre o ponto fundamental da separação entre os mundos clássico e quântico, “pode ser relevante para outras áreas, bem estabelecidas, relacionadas à teoria da informação, como a teoria da medida e inferência estatística”.
BÚSSOLA DOS PÁSSAROS
O segundo artigo publicado recentemente com assinatura de Marcos – agora, em parceria com o aluno de doutorado do IFGW, Alejandro Carrillo, e do físico Marcio Cornélio, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) –, trata da questão de como as aves migratórias interagem com o campo magnético da Terra para guiar o voo.
“Há décadas foi estabelecido que os pássaros utilizam o campo magnético da Terra para se orientar”, disse Marcos, descrevendo experimentos em que a aplicação de campos magnéticos artificiais atrapalhavam o senso de orientação de pássaros, em condições de laboratório. “E para isso existem dois tipos de mecanismo. Um deles, conhecido há mais tempo, usa o fato de que alguns pássaros, como pombos, têm partículas magnéticas no bico. Entretanto, foi feito um experimento mais recentemente em que a conexão dessa região com o cérebro foi interrompida, e mesmo assim, alguns pássaros conseguem se direcionar. Então, deve existir um outro mecanismo”.
Uma das principais hipóteses para descrever esse segundo mecanismo supõe a existência de moléculas nos olhos dos pássaros que se separam em pares de radicais químicos sob o efeito da luz e da presença de campos magnéticos. Para produzir um senso de orientação ligado ao campo magnético, no entanto, essa quebra precisa incorporar algum tipo de assimetria, favorecendo uma direção em detrimento das demais.
Nos modelos tradicionais que lidam com essa hipótese, a assimetria ocorreria por conta de uma propriedade do mundo quântico conhecida como emaranhamento. Definido por Albert Einstein como uma forma de “ação fantasmagórica à distância”, esse fenômeno, já confirmado experimentalmente, faz com que um par de partículas se mantenha correlacionado, de modo que qualquer alteração numa delas afeta, instantaneamente a outra.
“Esse é um modelo quântico, e há um argumento de que necessariamente você tinha que ter o emaranhamento”, disse o pesquisador. “Que essa forma específica era a única maneira de introduzir essa sensibilidade ao campo magnético. Era isso que introduziria uma referência de direção, porque, senão, o pássaro não teria uma referência”.
Essa dependência do emaranhamento, no entanto, é “ruim para o modelo”, disse Marcos. O emaranhamento quântico é um estado muito específico, facilmente destruído por interferências do ambiente. “E se pensarmos na situação que existe nos olhos no pássaro, vemos que há diversas interações acontecendo, a molécula está num meio que gira, que se desloca. É óbvio que o pássaro gira, é óbvio que se mexe o tempo todo. O que diminui muito a aplicabilidade desse modelo”.
No artigo publicado pelos pesquisadores brasileiros no periódico “Physical Review E”, é apresentado um modelo alternativo que não depende mais do emaranhamento para produzir a assimetria necessária para que a ave se oriente. “Eliminamos essa restrição de imobilidade e de rotação do pássaro”, explicou o pesquisador.
“Definimos uma interação, que é chamada de interação dipolo-dipolo, entre elétrons de pares de radicais químicos. Numa molécula só essa interação é muito fraca, mas há muitas moléculas, e a resultante acaba sendo muito importe. Há um efeito acumulado”, disse. “Então, é isso que vai definir esse referencial para o pássaro”.