Edição nº 634

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 24 de agosto de 2015 a 30 de agosto de 2015 – ANO 2015 – Nº 634

Social, mas mercantilizado

Pesquisa do IE aponta continuidade do processo de
exploração do sistema previdenciário brasileiro pelo setor privado

Atualmente, de acordo com o estudo, menos de 5% dos aposentados ganham mais que quatro salários mínimos, o que está longe do teto, que gira em torno de seis salários mínimosO sistema previdenciário brasileiro passa, desde 1988, por um processo de mercantilização que não foi revertido depois de 2002, ano em que o Partido dos Trabalhadores assumiu o governo federal. A constatação é da dissertação de mestrado do economista Lucas Salvador Andrietta, defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp. O trabalho, que foi orientado pelo professor Eduardo Fagnani, contou com bolsa de estudo concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), agência de fomento do Ministério da Educação.

De acordo com o autor do estudo, embora os governos do PT [dois do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o primeiro da presidente Dilma Rousseff] tenham se apoiado sobre o discurso da priorização da dimensão social, as bases institucionais da previdência pública, cujos princípios foram esboçados na Constituição de 1988, permanecem sob ameaça permanente de desestruturação no período considerado. “De fato, ocorreu uma inflexão real de alguns indicadores macroeconômicos, o que contribuiu para a ampliação do mercado de trabalho formal e de algumas políticas sociais, com reflexos positivos sobre a Previdência Social. Entretanto, o sistema previdenciário como um todo tem transitado para um modelo mais mercantilizado”, afirma Andrietta.

A Constituição de 1988 é tomada como marco inicial na pesquisa do economista porque a Carta representou um avanço, em termos formais, no que se refere à garantia dos direitos previdenciários do brasileiro. Pela primeira vez, a legislação estabeleceu o princípio da universalidade, ou seja, de que todos os cidadãos passariam a ter assegurada uma aposentadoria, pelo menos em nível básico, sem que necessariamente tenham contribuído para o sistema ao longo da vida. “A seguridade social estabelece a aposentadoria e outros benefícios como direitos de cidadania, como é o direito à saúde e à educação”, compara o autor da dissertação.

Nesse sentido, continua Andrietta, a Constituição de 1988 pode ser considerada como uma trincheira formal, por meio da qual alguns direitos foram concretizados, como é o caso da aposentadoria rural. Ocorre, porém, que ainda durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, forças contrárias a esses avanços começaram a agir no sentido de desestruturar as bases da previdência pública. Tal projeto foi executado de diversas maneiras, mas o estudo do economista destaca duas delas: as emendas constitucionais de 1998 e de 2003. “Somadas a outras mudanças na legislação infrainstitucional, as emendas provocaram importantes alterações no sistema previdenciário nacional”, pontua Andrietta.

No trabalho, o economista analisa essas transformações a partir de três “compartimentos” do sistema previdenciário, como ele classificou – Regime Geral, do qual participam os trabalhadores da iniciativa privada; Regimes Próprios de Previdência, onde estão inseridos os funcionários públicos; e Previdência Complementar, que abrange fundos de pensão e planos privados. Segundo Andrietta, no primeiro compartimento ocorreu um significativo achatamento. “O teto do valor das aposentadorias foi sendo defasado ao longo do tempo, tanto em relação à inflação quanto ao salário mínimo. O fator previdenciário jogou drasticamente os valores das novas aposentadorias para baixo. Ao mesmo tempo, com o recente aumento real do salário mínimo, o piso das aposentadorias foi elevado, o que intensificou o que chamamos de achatamento”, explica o economista.

Com a elevação do piso das aposentadorias, acrescenta Andrietta, o que se viu foi uma maior concentração de beneficiários nessa faixa – cerca de dois terços dos aposentados recebe o mínimo. “Devido à introdução do fator previdenciário, por meio das alterações promovidas pela emenda constitucional de 1998, ficou cada vez mais difícil para as pessoas atingirem o teto das aposentadorias. Atualmente, menos de 5% dos aposentados ganham mais que quatro salários mínimos, o que está longe do teto, que gira em torno de seis salários mínimos”, pondera. É importante lembrar, conforme o pesquisador, que a desvinculação do piso dos benefícios em relação ao salário mínimo é um item que está sempre à espreita na agenda de reformas.

Em relação aos Regimes Próprios de Previdência aconteceu um estancamento, segundo o autor da dissertação. A partir da emenda constitucional de 2003, os regimes de aposentadoria nos moldes antigos deixaram de existir, o que tem sido operacionalizado de fato nos últimos anos. “Na prática, regras particulares dos funcionários públicos, como o direito à integralidade e à paridade com os servidores ativos, deixaram ou deixarão de existir brevemente. Essas normas foram substituídas por outras, que estabeleceram, por exemplo, que aqueles que ganham menos que o teto do INSS [Instituto Nacional de Seguridade Social] vão seguir as mesmas regras do Regime Geral”, detalha o economista.

O contingente de funcionários públicos que se enquadra nessa faixa é grande, como observa Andrietta. Ademais, diz, os servidores que ganham mais que o teto terão a regra do INSS aplicada sobre um determinado valor, sendo que o excedente poderá ser voluntariamente colocado em um fundo de pensão. “É o que está acontecendo com os novos funcionários da Unicamp e de outros órgãos e autarquias públicas”, exemplifica o economista.

Por seu turno, a Previdência Complementar experimentou uma significativa expansão no período analisado, por causa de um crescente número de pessoas que tem recorrido às instituições financeiras para comprar um plano privado de aposentadoria. “Outro movimento nessa direção está sendo feito pelos funcionários públicos, que estão transitando para os fundos de pensão. A conjunção das transformações ocorridas nos três compartimentos caracteriza, portanto, o que consideramos um processo de mercantilização do sistema previdenciário brasileiro, uma vez que as condições de aposentadoria dos brasileiros veem cada vez mais encolhido o seu papel como direito social, sendo substituído por formas mercantilizadas de acesso”, defende.

NEOLIBERALISMO

Questionado se esse processo é característico do Brasil ou se é verificado em plano global, Andrietta observa que existe uma relação entre o que acontece no país e no restante do mundo. “Optamos por analisar essas transformações a partir do que se pode chamar de ‘projeto neoliberal’, implantado no Brasil nos anos 1990. Entretanto, o que se verifica aqui também acontece em outros países, nos quais as políticas públicas universais passam ou passaram igualmente por reformas”.

Na avaliação do economista, existe uma tendência no capitalismo de transformar tudo em mercadoria. “Do ponto de vista das políticas sociais, podemos dizer que há uma ‘novidade’ nas últimas décadas: os sistemas de proteção social que já estavam estabelecidos, mais ou menos incipientes, passaram a ser vistos como horizontes possíveis de acumulação do capital. Os direitos à previdência social, à saúde e à educação não perderam completamente essa característica, mas passaram a ter uma relação muito íntima com as formas de exploração pelo setor privado. Os estados nacionais passaram a promover ações deliberadas para criar condições para que esses direitos sejam mercantilizados”, aponta.

Pelos sinais emitidos pelo governo federal e pelos grupos de interesse mencionados por Andrietta, inclusive com a recente discussão no âmbito do Congresso Nacional sobre a proposta de nova mudança no fator previdenciário, a tendência é de que no Brasil o processo de mercantilização do sistema previdenciário tenha seguimento nos próximos anos, na avaliação do economista.

O economista Lucas Andrietta, autor da dissertação: “As condições de aposentadoria dos brasileiros veem cada vez mais encolhido o seu papel como direito social, sendo substituído por formas mercantilizadas de acesso”Nesse aspecto, Andrietta enfatiza a forma indireta como a questão previdenciária é discutida, em geral limitada aos aspectos fiscais e atuariais do sistema. “Normalmente, não paramos para pensar nas conexões que existem entre a questão previdenciária e a nossa relação com o mundo do trabalho. É importante lembrar que diferentes estudos indicam que temos, cada vez mais, dedicado nossas vidas ao trabalho. Em outras palavras, estamos trabalhando mais intensamente, numa jornada diária mais extensa, por um período mais longo da vida”.

Tal situação pode até ser vista com certa naturalidade, dado que a expectativa de vida no Brasil tem aumentado. Todavia, adverte Andrietta, é preciso colocar obstáculos a essa tendência, de modo a assegurar que cada um de nós não tenha necessariamente que trabalhar até o limite de suas capacidades. “Nesse sentido, as discussões sobre o sistema previdenciário constituem uma trincheira para regular a nossa relação com o mundo do trabalho. Esse debate está no mesmo patamar do que trata da redução da jornada de trabalho, sem redução de salário. Na França, por exemplo, foi aprovada uma lei que proíbe que o trabalhador trabalhe via telefone celular ou internet após a jornada. A nossa relação com a previdência tem que ir além dos cálculos de quanto tempo temos que contribuir e quanto receberemos ao nos aposentarmos”, reafirma.

 

Publicação

Dissertação: “A mercantilização do Sistema Previdenciário Brasileiro (1998-2014)”

Autor: Lucas Salvador Andrietta

Orientador: Eduardo Fagnani

Unidade: Instituto de Economia (IE)