Edição nº 636

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 07 de setembro de 2015 a 13 de setembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 636

À espera do desenvolvimento

Estudo aponta que governos do presidente Lula não criaram meios
concretos para a implantação de uma política nacional de avanço regional

A despeito do avanço retórico e normativo da questão regional registrado durante os dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2010), o governo federal não criou meios concretos para implantar uma Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) no Brasil no período. A constatação é da tese de doutorado do gestor público federal Vitarque Lucas Paes Coêlho, defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp, sob a orientação do professor Fernando Cézar de Macedo Mota. “Dada a ausência de uma efetiva política nacional de desenvolvimento regional, como eixo aglutinador e articulador de ações, persistiu a guerra fiscal entre Estados e municípios, as iniciativas localistas e os particularismos na obtenção de recursos federais e na atração de investimentos privados”, afirma o autor do trabalho.

Vitarque Coêlho, autor da tese: “Falta criar condições para transformar as economias locais”Intitulada “A Esfinge e o Faraó: a política regional do governo Lula (2003-2010)”, a tese de Vitarque Coêlho procurou entender as razões pelas quais o governo federal não criou instrumentos adequados que permitissem às instituições com atuação no âmbito regional, como o Ministério da Integração Nacional, enfrentar as desigualdades regionais brasileiras. De acordo com o autor, houve avanços nas políticas regionais “implícitas”, por meio da ampliação de políticas sociais e previdenciárias, que tiveram maior impacto nas regiões mais atrasadas. “Entretanto, tal esforço não contribuiu para a definição de uma política de desenvolvimento socioeconômico que trouxesse autonomia às regiões. Houve transferência de renda, mas a dependência não foi superada”, analisa.

Em sua pesquisa, Vitarque Coêlho discute as interpretações da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) acerca da natureza estrutural da economia brasileira, periférica e subdesenvolvida. De acordo com ele, a transformação estrutural brasileira é relativamente recente. Começou a tomar forma a partir do final da década de 1920, com o avanço da industrialização, sob o governo Vargas. “Na investigação, eu desenvolvo as ideias do professor Wilson Cano sobre a questão da liderança do Estado nacional para o desenvolvimento econômico. Segundo ele, em países subdesenvolvidos a força do capital privado é insuficiente para gerar investimentos que promovam uma transformação estrutural. Nesse caso, a participação do Estado é indispensável”, diz.

Conforme o autor da tese de doutorado, a crise financeira dos anos 1980 e a hegemonia liberal delineada a partir dos anos 1990 promoveram o que ele classifica de esgarçamento do aparato de planejamento do Estado. “O que passamos a observar, a partir de então, é uma indefinição em torno de um projeto nacional de desenvolvimento, condição indispensável para a formulação de uma política de desenvolvimento regional. Em outas palavras, carecemos de um projeto de nação que possa orientar as políticas públicas, entre elas as de caráter regional”.

De acordo com Vitarque Coêlho, o governo do presidente Lula poderia ter avançando em relação à pauta do desenvolvimento regional, mas o fez apenas timidamente. A ampliação do emprego formal e o aumento real do salário mínimo provocaram impacto regional positivo, sobretudo nas regiões mais pobres, concentradas no Norte e Nordeste do país. O mesmo ocorreu quanto à ampliação do Programa Bolsa Família (PBF). “Essas políticas contribuíram para a elevação da renda da população e deram maior dinamismo ao comércio e serviços. No entanto, boa parte desses efeitos virtuosos se manteve na esfera do consumo. Não houve, portanto, a formulação de uma política sustentável de desenvolvimento. Como o perfil de produção e o padrão tecnológico não foram alterados, persistiu o quadro de dependência econômica das regiões”, reforça o autor.

Atualmente, conforme o pesquisador, observa-se uma fragmentação política e administrativa do Estado, o que impede a coordenação horizontal e vertical de políticas intersetoriais de planejamento público. “Sem dúvida, esse fator contribuiu para comprometer as intervenções desenvolvimentistas, sobretudo em regiões periféricas que exigem ações complementares e simultâneas, seja na provisão de infraestrutura social e econômica, seja na qualificação profissional ou apoio à inovação”.

Ademais, observa Coêlho, os bons resultados econômicos obtidos pelos governos Lula, refletidos na ampliação do emprego formal, na retomada do crescimento e na diminuição da pobreza, levaram ao descrédito a necessidade da formulação de um projeto nacional de desenvolvimento. “Diversamente do ‘flagelo das secas’, no final dos anos 1950, que comoveu a nação e incentivou a criação da Sudene [Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste], sob o comando de Celso Furtado, o êxito das políticas sociais do governo Lula levou ao entendimento equivocado de que tudo ‘vai bem’ nas periferias, o que dispensaria a necessidade de uma política estruturada de desenvolvimento regional”.

Estabelecer consenso em relação a uma política nacional de desenvolvimento, reconhece o pesquisador, não é uma tarefa trivial. Tal missão se torna ainda mais complicada em razão da já mencionada ausência do Estado como protagonista desse processo. “Mesmo nas economias centrais, a presença do Estado é fundamental. Afinal, é responsabilidade desse ente prover, por exemplo, uma moeda confiável, um sistema nacional de inovação e uma infraestrutura adequada ao crescimento econômico. Sem esses pressupostos, fica muito difícil superar o atraso”, entende. “A famigerada Esfinge, uma alegoria mitológica dos mistérios que interditam a evolução humana, representa o monstro que conserva as seculares contradições do subdesenvolvimento brasileiro. O enigma que a Esfinge apresenta ao Brasil é o desafio da superação do atraso, dos interesses particularistas, da dependência financeira e tecnológica”, completa.

GUERRA FISCAL

Diante da fragmentação das políticas públicas de desenvolvimento, acrescenta Vitarque Coêlho, estados e municípios buscaram alternativas às consequências da decisão do governo federal de abdicar, a partir dos anos 1980, de promover o planejamento para o desenvolvimento econômico. Uma das saídas encontradas foi a deflagração da chamada “guerra fiscal”, que consiste em oferecer benfeitorias e incentivos tributários, entre outras vantagens, para atrair empresas para seus territórios.

O que decorre desse embate são leilões para decidir quem oferece mais para ter o direito de abrigar determinada empresa. “O problema desse tipo de iniciativa é que ela gera uma disputa espúria entre entes públicos pela atração de um ente privado, um torneio locacional onde o grande ganhador é o empresário capitalista, que tende a migrar quando os benefícios se extinguem. De todo modo, já não é possível continuar oferecendo tanto nesse sentido, seja em função das limitações fiscais dos estados e municípios, seja pela reversão recente das expectativas de crescimento”, aponta.

Coêlho faz questão de destacar que as dificuldades para a formulação de uma política de desenvolvimento regional não têm relação com a falta de potencial das regiões. “Por décadas, o semiárido nordestino sofreu o escândalo da seca, sempre acompanhado por grave drama social. Isso exigiu uma política pública de enfrentamento dos problemas locais. Hoje, ainda existe seca, mas não há mais fome como havia, em grande medida graças ao Programa Bolsa Família. As pessoas estão mais bem alimentadas e educadas, mas não estão satisfeitas. Elas precisam de mais. Falta criar condições para transformar as economias locais. É preciso formatar políticas que incentivem, por exemplo, os produtores a inovar e agregar valor às suas atividades primárias, organizar coletivamente a produção e a comercialização, de modo a gerar mais e melhores empregos a partir de atividades econômicas sustentáveis e com forte potencial de crescimento”.

Nessa linha, Coêlho assinala a importância de se estimular a agricultura familiar para potencializar as economias regionais. Nesse caso, é fundamental a oferta de uma rede de apoio aos produtores. “Até existem alguns canais disponíveis, como o Sebrae, a Embrapa e a Rede Nacional de Educação Profissional e Tecnológica, mas falta diálogo entre as instituições, além de planejamento e financiamento adequados. Ainda precisamos construir uma narrativa comum e uma fonte confiável de recursos”, defende.

Um exemplo de ação possível, cita o autor da tese de doutorado, vem de projetos pilotos desenvolvidos pelo Ministério da Integração Nacional, em parceria com a Embrapa e a Codevasf [Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco]. O programa, chamado Rotas de Integração Nacional, apoia o fortalecimento de cadeias e sistemas produtivos regionais, com capacidade de transformar a economia das regiões mais pobres. No semiárido nordestino, o programa atua na profissionalização da cadeia produtiva da ovinocaprinocultura e da apicultura, entre outros setores estratégicos para inclusão produtiva. Na região Norte, é possível desenvolver o potencial da fruticultura, da piscicultura e da exploração sustentável dos princípios ativos da floresta amazônica, com vistas à produção de cosméticos e medicamentos fitoterápicos.

Em Tauá, no Sertão de Inhamuns, no Ceará, os produtores de ovinos e caprinos, que recebem capacitação da Embrapa, organizaram-se para melhorar seus rebanhos e promover compras coletivas, de modo a reduzir os custos de produção. “O modelo tem funcionado bem, conta com participação dos municípios, do Estado, da Embrapa, entre outras instituições, mas é preciso garantir que os criadores tenham capacitação continuada, sob pena de o projeto ter vida curta. É aí que entra o diálogo e a ação coordenada, para não acontecer o que aconteceu na região do Amazonas, às margens do rio Solimões. Lá, foram adquiridos R$ 20 milhões em equipamentos para o fomento à piscicultura, que estão sem uso. Qual a razão? A comunidade de pescadores simplesmente não foi capacitada para desenvolver o projeto”.

O grande desafio, finaliza Coêlho, é organizar uma atuação convergente do poder público nos territórios, o que requer liderança do Estado nacional, seja para alinhar as políticas federais, seja para construir um pacto federativo para o desenvolvimento, com a atribuição de competências para a União, Estados e municípios. “O mercado é incapaz de soldar esta aliança federativa. Porém, como diria o professor Wilson Cano, este esforço não ocorrerá sem a definição de um Projeto Nacional de Desenvolvimento, que representa nada menos que a construção do nosso ‘ideal de nação’”.

 

Publicação

Tese: “A Esfinge e o Faraó: a política regional do governo Lula (2003-2010)”

Autor: Vitarque Lucas Paes Coêlho

Orientador: Fernando Cézar de Macedo Mota

Unidade: Instituto de Economia (IE)