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Baixar versão em PDF Campinas, 07 de setembro de 2015 a 13 de setembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 636Uma pantomima que prenuncia guerras
Uma palhaçada precursora de guerra, ou melhor: guerras. Assim pode ser definido o “excelente trabalho de equipe”[1] realizado nesses últimos meses pelos governos dos países da União Europeia para responder à carnificina de emigrantes da África, ocorrida em 19 de abril, no Canal da Sicília, além de dezenas de outras registradas depois.
É uma autêntica palhaçada, porque essa interminável sequência de reuniões de “alta cúpula” expressa tão somente a negociação entre os diferentes países da União Europeia sobre onde “alocar” 20 mil (!) solicitantes de refúgio que moram em campos de refúgio fora da União Europeia e sobre como “repartir” entre os Estados membros os solicitantes de refúgio que já se encontram em território europeu. Os 20 mil são um número ínfimo, porque a massa de prófugos[2] em fuga de guerra e de guerras civis, que está em movimento para a Europa pela extensa faixa de território da África e do Oriente-Médio[3], é estimada em milhões (há 500 mil somente na Líbia, segundo B. Leon, encarregado da ONU); também por causa dos 321.800 pedidos de refúgio, solicitados somente nos primeiros meses de 2014, considerando a Alemanha, Suécia e Itália. Tudo indica que a decisão “humanitária” de acolher 20 mil solicitantes de refúgio “com evidente necessidade de proteção internacional” contém dentro de si a decisão de intensificar ao extremo a guerra aos refugiados e aos emigrantes, como mostraremos a seguir, em uma escala territorial cada vez mais ampla.
Igualmente ridícula, e nauseante, é a negociação sobre os critérios das cotas dos solicitantes de refúgio nos diferentes países; uma negociação que toma como pressuposto, engenhosamente disseminado na opinião pública, que os refugiados são um custo a ser bancado pelos países europeus, quando, na verdade, constituem um investimento econômico e político com alta rentabilidade. Em primeiro lugar, para os circuitos legais (geralmente ligados às igrejas) e ilegais (geralmente ligados à administração pública) que fazem negócios – e que negócios[4] – com a gestão dos “centros de acolhimento” e o fornecimento de diversos tipos de serviços. Em segundo lugar, pelo fato de que uma cota crescente dos solicitantes de refúgio é utilmente destinada, por necessidade, a servir à economia dos baixos salários, em aumento em toda a Europa, bem como à produção informal; em ambos os casos, aumenta a força de trabalho de reserva, que é fundamental para a desvalorização da força de trabalho como um todo[5]. Em terceiro lugar, em função das relações que são estabelecidas com os países de origem. Em quarto lugar, porque os refugiados representam um bode expiatório ideal para as campanhas xenófobas e racistas de Estado (não só para as direitas explicitamente anti-imigrantes), ao apresentarem esses refugiados como supostos parasitas que vivem nas costas das sociedades de “acolhimento”[6] ou, pior ainda, que escondem “terroristas infiltrados” (é a tese expressa pelo premiê italiano Renzi).
No entanto, a pantomima das reuniões oficiais convocadas com urgência para “evitar outros mortos no mar”, em meio a um dilúvio de falsas lágrimas, não representa só uma palhaçada. Ao contrário! Ela coloca em prática um verdadeiro plano geral de guerra aos emigrantes da África e do Oriente Médio. Com os inúmeros navios, aviões de combate, drones, os bombardeios (talvez já iniciados) – isto numa extensa área de intervenção – os financiamentos triplicados para Frontex, Triton e Poseidon, além da operação em terra na Líbia, como mostrou o The Guardian. E também com a intervenção militar e “civil” (isto é: de serviços secretos e de companhias militares privadas) no Níger, na Nigéria e em todos “os países de origem das migrações”. Da mesma forma, com a estreita colaboração entre Europol, Frontex, Easo, Eurojust para aumentar a pressão dos controles de polícia sobre os imigrantes. E, ainda, com a retenção das impressões digitais de todos. Com a multiplicação dos campos de detenção, dentro e fora das fronteiras europeias. Por fim, com o megaprograma, apoiado no braço armado da Frontex, para “expulsar rapidamente os indocumentados”.
Qual é o objetivo de tudo isso? Mogherini respondeu com uma hipocrisia ímpar: “enfrentar as causas na raiz de sua emergência, destruindo as organizações criminosas e ajudando os migrantes a fugir das suas mãos”.[7].
Todavia, na raiz dessa “emergência” – que não é propriamente uma emergência, pois perdura há muitas décadas e está destinada a durar por longo tempo – se encontram os Estados da União Europeia que, junto com os Estados Unidos e Israel, estão mais do que nunca dispostos a esfolar vivos os povos da África; que semearam e estão semeando guerra, morte, miséria, caos, doenças, terror nos ângulos mais remotos do mundo árabe e islâmico, atiçando todo tipo de ódio, étnico e religioso; que são, no fim das contas, há séculos, os verdadeiros grandes traficantes de escravos, que se utilizam dos proprietários de barcos e de contrabandistas[8] de forma semelhante à que os chefes da máfia se utilizam de seus membros do estrato mais baixo da filiação criminosa, os picciotti, quando eventualmente não os matam.
“Libertar” os emigrantes das mãos dos pequenos traficantes? Quando toda a operação aplicada serve a reforçar as garras dos Estados europeus e das empresas europeias sobre a carne e a vida dos emigrantes, a dificultar a entrada na Europa, a intensificar capilarmente os controles e a aumentar os mortos no mar, com o fim preciso de aterrorizar e disciplinar certeira e silenciosamente os sobreviventes! Graças às políticas “Fortress Europe”, o Mediterrâneo se tornou a via de emigração mais perigosa do mundo. E as recorrentes – e cada vez maiores – carnificinas de emigrantes não são, como defende, B. Spinelli “war crimes and massacres in times of peace” da Europa em razão de a Europa ser culpada do "failing of rescue"[9]. Elas existem de fato porque o capitalismo, o imperialismo europeu, é diretamente responsável como o primeiro mandatário dessa carnificina. E as medidas “extraordinárias” que serão colocadas em prática, com o consenso ou não da ONU, com o consenso ou não dos governos-fantoche da Líbia de hoje e de outros países da região, jogarão outras montanhas de cadáver não só no Mar Mediterrâneo, mas em toda a área que os governos europeus consideram como o “quintal da nossa casa”. O que se tem em vista é a maior repulsão em massa da história recente, tem-se em vista uma nova série de guerras contra os povos africanos e árabes.
A que se deve tamanha fúria? Além da necessidade vital das empresas europeias de se apropriar dos recursos naturais daqueles territórios e de dispor de novos, grandes contingentes de trabalhadores a baixo custo e sem nenhum direito, também à necessidade dos Estados europeus, com a ferocidade e astúcia dos velhos poderes coloniais, de continuar a reprimir diretamente – não bastando a isso os Sisi, os fétidos monarcas petroleiros, os Assad e todo o resto – a insurgência das massas árabes, que, da Tunísia e do Egito, se propagou nos últimos anos até o Bahrein, o Yemen, a Síria, e mesmo as zonas das petromonarquias; à necessidade de esmagar com sangue toda tentativa de resistência que tenha conteúdo (mesmo que confusamente) anti-imperialista; e à necessidade de bloquear a estrada dos velhos e novos concorrentes da Europa.
O “excelente trabalho de equipe” desempenhado recentemente pelos funcionários do capital europeu e global anuncia novas tragédias. Conseguiremos combatê-las somente saindo da indiferença e da passividade que hoje aprisionam, além dos trabalhadores, também as forças anticapitalistas na Europa. Somente denunciando as verdadeiras causas de fundo dessas tragédias e a política europeia que as reproduz infinitamente, sem cair nas suas variantes “humanitárias” e “papais”. Somente colocando em prática uma solidariedade incondicionada aos emigrantes, aos imigrantes, aos refugiados e às suas lutas, e aos movimentos de resistência ao neocolonialismo europeu e às suas novas empresas de guerra na África, no Oriente Médio e na Europa do Leste. Trata-se de um longo e árduo empenho de luta que demandaria também, para a nossa linha de frente, um “trabalho de equipe” internacionalista.
Tradução de Patricia Villen.
[1] São palavras de Federica Mogherini, representante das relações externas da União Europeia.
[2]Cada prófugo é, ou se torna, um refugiado ou um solicitante de refúgio, sendo que a massa de prófugos é maior, até mesmo muito maior, daquela de refugiados.
[3]Para não falar do Afeganistão ou do Kosovo, outras importantes fontes de solicitantes de refúgio, assim como todos os países “libertados” pela OTAN. Além disso, o crescimento das migrações forçadas por razões políticas (refugiados, solicitantes de asilo, deslocados forçados) se mostra uma tendência em escala mundial nos últimos anos (UNHCR, Asylums Trends 2014. Levels and trends in industrialised countries, Geneva, 2015).
[4]S. Buzzi, um dos principais representantes do circuito criminoso flagrado pela operação "Máfia capitale", de dezembro de 2014, dirigente de algumas cooperativas encarregadas do business das estruturas para solicitantes de refúgio, em uma das suas conversas telefônicas afirmou: “se ganha mais estruturas para solicitantes de refúgio, em uma das suas conversas telefônicas afirmou: “se ganha mais com os imigrantes [neste caso, com os solicitantes de refúgio] do que com o tráfico de drogas" (Il fatto quotidiano, 2 dez. 2014).
[5]O Ministro italiano A. Alfano foi além... além do salário (seja aquele baixo ou informal), com a seguinte proposta: "Devemos pedir às Prefeituras para aplicar a nossa circular que permite obrigar os imigrantes a trabalhar gratuitamente. Ao invés de ficarem lá sem fazer nada, que os obriguem a trabalhar” (L'Huffington Post, 7 maio 2015). Ninguém conhecia essa circular, secreta como todas as circulares. Esse episódio clamoroso, silenciado de imediato, demonstra mais uma vez o quanto a presença dos trabalhadores imigrantes e dos refugiados está sendo submetida aos arbítrios das medidas administrativas (I. Gjergji, Circolari amministrative e immigrazione, Milano: Angeli, 2013).
[6]Quando, ao contrário, a imigração significa sempre uma (grande) vantagem para os países que a recebem. Não me refiro só à superexploração do trabalho dos imigrantes e das imigrantes pelas empresas e por parte das famílias (quase sempre) de classes altas; refiro-me também às contribuições dos imigrantes aos caixas dos Estados, iguais ou maiores que as dos trabalhadores assalariados nacionais. Por exemplo, o Dossier Statistico Immigrazione 2014, constatou que, na Itália, em 2012, o balanço entre os valores dispensados pelos imigrantes ao Estado e os recebidos em bens, transferências e serviços (incluídos os “salvamentos em mar”) é negativo de quase 4 bilhões para as populações imigrantes (16,5 bilhões de euros contra 12,6). Mas, como demonstrou G. De Michele, os prejuízos são efetivamente muito mais significativos do que os 4 bilhões de euros (Immigrati: costi e numeri, quelli veri, 17 nov. 2014, www.carmillaonline.com).
[7]Cf: www.repubblica.it/esteri, 13 maio 2015.
[8]Diferente da imagem propagada pela grande mídia, há também italianos entre os contrabandistas. Cf: Non solo immigrati, anche italiani tra gli scafisti, www.ilgiornaleditalia.org, 7 maio 2015.
[9]Cf: B. Spinelli, Why Do We Need the UN, Il sole 24 ore, 21 abr. 2015.
Pietro Basso é professor de Sociologia da Università Ca’ Foscari, onde é diretor do Master sull’Immigrazione. Um dos mais qualificados pesquisadores do tema na Europa, é autor da vários livros e artigos. Tradução de Patricia Villen.