Edição nº 636

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 07 de setembro de 2015 a 13 de setembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 636

Um projeto civilizatório para o país da ‘barbárie’

Historiador revisita representações feitas por franceses acerca da identidade nacional brasileira

A imagem do Brasil como “um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”, enaltecida por Jorge Ben Jor e por tantos outros, ganhou força com o pensamento social francês do século 19. A hipótese é sustentada pelo historiador Luis Fernando Tosta Barbato, em tese de doutorado sobre a formação da identidade nacional brasileira, orientada pelo professor Edgar Salvadori de Decca. “Entre preconceitos, conceitos e impressões: o Brasil e sua condição tropical na Revue des Deux Mondes (1829-1877)” é o título da tese defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). “Considero essa pesquisa importante para que o brasileiro conheça melhor a história de sua própria formação como povo”, afirma o autor da tese.

Capa da ‘Revue des Deux Mondes’, cujo conteúdo foi analisado para a elaboração da tese: ilustração  é reveladora de uma relação assimétricaProcurando entender as representações que foram feitas sobre o Brasil, especialmente naquilo que o caracteriza como um país tropical de natureza rica e exuberante, Luis Fernando Barbato recorreu a uma das publicações mais importantes e influentes de então, a Revue des Deux Mondes. “O uso do periódico é recorrente entre os pesquisadores do século 19, devido à sua proposta de enviar viajantes para conhecer as realidades de outros países e trazer o que de melhor encontrassem para o desenvolvimento da sociedade francesa. Suas edições alcançaram muitos leitores ao redor do mundo, inclusive no Brasil, onde a publicação fez muito sucesso no cenário intelectual, sendo citada na obra de Machado de Assis e tendo Pedro II como leitor assíduo.”

Embora a Revue circule até hoje, o autor explica que optou pelo recorte da pesquisa de 1829 a 1877 por englobar os dois anos iniciais de fundação e o seu tempo áureo sob o comando do editor François Buloz, que lhe deu projeção internacional. “Reproduzi na tese uma imagem que ilustra as primeiras edições da revista e embute uma ideia preconcebida que vai guiar todo meu trabalho: a vinheta simboliza a França, que saía do lugar mais civilizado do planeta para colocar em prática um projeto civilizatório em países periféricos, que segundo as concepções da época mantinham “um pé na barbárie”, e dentre os quais se encaixava o Brasil. Daí a ‘Revista dos Dois Mundos’, que colocava mundos distintos, em diferentes estágios civilizacionais, frente a frente.”

O formato tradicional da Revue des Deux Mondes era de um livro denso e pesado, sem ilustrações, com relatos longos e minuciosos dos viajantes, como desejavam os leitores que não dispunham de outros meios para se informar sobre outras plagas. A imagem única (reproduzida nesta página) é de uma edição de 1831: retrata o encontro de duas mulheres, uma europeia trajada à moda medieval e uma autóctone marcada pela nudez, que trocam olhares cordiais; à nativa são apresentadas inscrições no tronco da árvore com grandes nomes da civilização ocidental, como Homero, Dante, Goethe, Camões e Byron.

Na opinião de Luis Fernando Barbato, a vinheta já mostra a assimetria desta relação, estando de um lado a Europa com seus barcos, roupas, escritores, cientistas e desbravadores; e do outro a América, com sua nudez resignada e bárbara e a natureza frondosa. “Os viajantes exaltavam a beleza natural, mas questiono até que ponto as exaltações eram benéficas para a imagem do Brasil, já que pelo modelo da época um país representado pela natureza era um lugar onde a civilização ainda não havia chegado. Mesmo naquele contato aparentemente inocente e cordial entre os dois mundos, já se vislumbra a civilização rasgando e apagando a natureza e a barbárie com letras, artes e ciência; é uma forma de imperialismo, não pela força das armas, mas com a força das palavras.”

Se o autor da tese, inicialmente, foca sua análise nas imagens positivas produzidas pelos viajantes franceses, com uma profusão de descrições de belas cenas tropicais em praticamente todos os textos da Revue, o tom torna-se mais sombrio quando se trata das gentes brasileiras. O capítulo intitulado “A civilização versus a barbárie” aborda o momento em que o estupor causado pela natureza cede espaço para visões mais concretas. “Em suas andanças pelo Brasil, os franceses da Revue se depararam com as estradas precárias, a falta de conforto, a ignorância na qual grande parte do povo estava imersa e outros cenários caóticos. Nesse ponto, eles começam a questionar a viabilidade de uma civilização no Brasil, pelo menos se continuasse a ser conduzido da mesma maneira.”

Segundo o historiador, ficava evidente para os franceses que o Brasil tinha um pé na barbárie e que sua sociedade precisava se espelhar cada vez mais no padrão europeu para que pudesse progredir como civilização. “Dentro dessa lógica, os viajantes repararam na colonização portuguesa, que seria em parte responsável por esta sociedade imperfeita, mas também pelos resquícios de civilização aqui encontrados – a dicotomia é interessante por mostrar o poder do eurocentrismo no século 19. Ainda assim, os franceses deixavam implícito que os portugueses tinham parado no tempo, representando a velha Europa que não se modernizara e, portanto, não eram os europeus mais aptos a conduzir o processo civilizatório.”

RAÇAS TROPICAIS

Entre os empecilhos à civilização no Brasil, segundo os autores que publicaram na Revue, estavam as gentes tropicais – indígenas, negros, mestiços – que compunham a maior parte da população brasileira, ao passo que os viajantes, vindos de climas temperados e calcados nos ideais de trabalho e progresso, relacionavam o calor à preguiça, indolência e prazeres da carne. “Vale lembrar que, nessa época, a questão racial era muito importante para se pensar os destinos de uma nação. As impressões, imagens e representações sobre a população brasileira levam à conclusão de que, na visão dos correspondentes da revista, a configuração racial impedia – ou muito dificultava - que o país fosse civilizado.” 

O historiador Luis Fernando Tosta Barbato, autor da tese: “O Brasil era analisado pelos franceses como o outro, exótico e, por ser diferente, passível de inferiorização e intervenção”É diante deste contexto que o autor da tese desenvolve um capítulo sobre “A Europa como redenção”, ou seja, o caminho a ser seguido pelo Brasil enquanto modelo de civilização superior. “Para os viajantes franceses, a única chance de o país superar o atraso estaria em estreitar os laços e absorver o quanto pudesse das características da sociedade europeia, inclusive importando pessoas para uma nova colonização – e não apenas a elite pensadora, mas também agricultores, comerciantes, pescadores. E os viajantes apontam a própria França como inspiração e solução para aquele Brasil condenado.”

Luis Fernando Barbato lembra que o século 19 é reconhecido historicamente como a era dos impérios, quando as grandes potências mundiais, principalmente França e Inglaterra, buscam ampliar suas zonas de influência política. “Mesmo que não fosse o imperialismo formal, em que se chega com o exército para hastear a bandeira na região, a relação era imperialista. E, para que esse poder se efetivasse, era preciso que os povos a ser dominados enxergassem a presença do dominador como necessária, que esta se justificasse.”

E justamente naquele momento, conforme o pesquisador, o Brasil vivia a necessidade de se mostrar ao mundo e ganhar prestígio internacional, passando por um processo de construção da identidade nacional. “Havia um grande risco de fragmentação territorial, com uma série de rebeliões separatistas em diversas regiões do país. A solução buscada pelo governo imperial foi criar uma identidade nacional, fazendo com que os brasileiros se vissem como membros de uma mesma comunidade. Até então, quem vivia na Bahia não se enxergava como brasileiro, ou muitas vezes sequer como baiano, pois não existia esse sentimento de pertencimento à terra.”

UM LUGAR ESPECIAL

O historiador observa que dentro deste projeto lançado pelo governo aparece a questão dos trópicos, na busca por caracteres capazes de mostrar as singularidades do país e de alavancar os brios de se pertencer a um lugar especial. “As belas paisagens, o clima quente e agradável e as riquezas da terra – natureza que provocaria inveja nos visitantes, sendo assim um elemento de orgulho – formam um dos principais alicerces sobre os quais se fundaram a identidade nacional brasileira. Mas sem nunca esquecer que na Europa estava o modelo a ser seguido, caso o país almejasse de fato prestígio internacional.”

Avaliando as relações entre Brasil e França no século 19, Barbato demonstra como a cultura francesa foi significativa para o desenvolvimento da cultura brasileira, a ponto de se tornar um modelo de civilização não apenas pela alta-costura, bons modos e bom gosto, mas principalmente pela força das ideias. “No último capítulo da tese podemos observar que dentro da Revue surgiram noções que dividiam o país em espaços dicotômicos, como o Norte e o Sul, o litoral e o sertão, sendo sempre um marcado pela civilização em oposição ao outro marcado pelo atraso. E, assim, o Brasil era analisado pelos franceses como o outro, exótico e, por ser diferente, passível de inferiorização e intervenção.”

Luis Fernando Barbato afirma que a análise dos escritos sobre o Brasil publicados na Revue des Deux Mondes permite perceber quão importante foram esses viajantes franceses para a formação da própria noção de Brasil – um país belo e rico, mas alheio ao progresso e que precisava se modernizar se aproximando da Europa e contornando a questão racial. “São noções que, por virem de um lugar considerado como matriz cultural e grande difusor da ciência, letras e cultura, acabaram por serem muito lidas e consideradas pelos próprios brasileiros que se engajaram no processo de construir uma identidade nacional para o Brasil no século XIX.”

 

Publicação

Tese: “Entre preconceitos, conceitos e impressões: o Brasil e sua condição tropical na Revue des Deux Mondes (1829-1877)”

Autor: Luis Fernando Tosta Barbato

Orientador: Edgar Salvadori de Decca

Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)