Edição nº 650

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 21 de março de 2016 a 03 de abril de 2016 – ANO 2016 – Nº 650

Tese investiga a relação entre
ditadura e educação na Bahia

Estudo conclui que política educacional implantada no período
é responsável por muitas das mazelas enfrentadas pelo setor

Várias das mazelas enfrentadas atualmente pela educação brasileira, como desculturalização do ensino, privatização em larga escala, precarização do trabalho docente e esvaziamento da teoria em favor da prática, desenvolveram-se a partir do modelo educacional implantado no país durante o regime civil-ditatorial, de concepção liberal-progressista. A constatação é da tese de doutorado da historiadora Daniela Moura Rocha de Souza, defendida em fevereiro último na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. O orientador do trabalho foi o professor Sérgio Eduardo Montes Castanho.

A pesquisa desenvolvida por Daniela teve como recorte espacial a Bahia, no período compreendido entre as décadas de 1960 e 1980. A historiadora utilizou uma vasta gama de dados, vários inéditos, entre eles os levantados pela Comissão Milton Santos de Memória e Verdade instituída pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), cujo relatório final foi divulgado em agosto de 2014. O estudou também se baseou em jornais estudantis baianos, censos educacionais, documentos oficiais do governo do Estado etc.

Entre as informações coletadas e analisadas pela autora da tese, destaque para as iniciativas de quatro intelectuais, todos ligados ao presidente Castelo Branco, que foram os principais responsáveis pela concepção e implantação da política educacional no Estado: Luís Viana Filho, Luiz Augusto de Fraga Navarro de Britto, Roberto Figueira Santos e Edivaldo Machado Boaventura. O estudo também identificou outros três intelectuais que tiveram participação relevante no processo, mas de forma auxiliar – Manuel Pinto de Aguiar, Zahidé Machado Netto e Antônio Luís Machado Netto.

“Um aspecto curioso que apurei é que não há registros críticos sobre a trajetória dessas pessoas, a não ser alguns trabalhos pontuais de cunho memorialista, voltados ao enaltecimento de seus feitos”, conta Daniela. Segundo a historiadora, cada um deles colaborou de forma decisiva para a reformulação da política educacional baiana. Luís Viana Filho, por exemplo, foi governador do Estado e, antes disso, chefe do Gabinete Civil de Castelo Branco.

Ele foi responsável, entre outros projetos, pela constituição de uma equipe de professores universitários que formulou diversas políticas nas áreas da cultura e educação do Estado. “Ele tinha como lema ‘Educar para Enriquecer’. Uma das suas principais preocupações era saber as razões que faziam com que a Bahia não se modernizasse, a exemplo do que acontecia com os Estados localizados no eixo Sul-Sudeste”, relata. Navarro de Britto, que substituiu Viana Filho na chefia do Gabinete Civil da Presidência quando este assumiu o governo baiano, ocupou posteriormente o cargo de secretário estadual de Educação.

Em sua gestão foi elaborado o primeiro Estatuto do Magistério da Bahia, legislação que organizou o ensino no Estado, em 1967. Também executou o Plano Integral de Educação e Cultura, documento que estabeleceu as diretrizes da política educacional baiana em todos os níveis de ensino. “Em outras palavras, Navarro de Britto, com o lema ‘Educação é Desenvolvimento’, sistematizou e implantou as propostas apoiadas pelos demais intelectuais”, resume Daniela. A atuação de Roberto Santos, que foi igualmente governador, se deu mais no âmbito da UFBA, da qual foi reitor.

Coube a ele conduzir o processo de reestruturação da universidade. Edivaldo Boaventura, que ocupou a Secretaria da Educação, teve papel determinante no desenvolvimento e execução do projeto dos Centros Integrados, propostos por Navarro de Britto, que tinham por princípio oferecer uma educação integrada, voltada para o atendimento do mercado de trabalho. Em larga medida, conforme Daniela, a política educacional defendida e implementada por esses intelectuais seguiu a cartilha formulada pelos Estados Unidos, que apregoavam uma formação mais tecnicista que humanista e também uma formação mais aligeirada do professor, daí o surgimento das licenciaturas curtas.

“Um exemplo muito claro dessa concepção foi o acordo MEC-Usaid. Na época, diversos assessores estadunidenses vieram ao Brasil para ajudar na reformulação do ensino superior brasileiro”, pontua a historiadora. “Importante ressaltar que há registros de intervenção estadunidense na educação brasileira desde as primeiras décadas do século XX, a partir de outros convênios, sendo a maioria voltada para o ensino profissionalizante e técnico aos moldes do MEC-Usaid”, complementa.

O acordo MEC-Usaid foi firmado em 1964 pelo Ministério da Educação (MEC) e a United States Agency for International Development (Usaid). Dele surgiram diversos convênios com o objetivo de implantar um modelo de educação norte-americano nas universidades brasileiras. “Essa experiência trouxe consequências extremamente negativas para a nossa educação, muitas delas em vigor até hoje. Entre elas podemos destacar a desculturalização e tecnização da educação, a privatização do ensino público e a massificação e precarização do trabalho do professor. Isso ocorreu tanto na Bahia quanto no Brasil de forma geral”, aponta Daniela.

À época, continua a autora da tese de doutorado, os focos de resistência à reestruturação da política educacional brasileira e baiana eram representados basicamente pelo movimento estudantil e por grupos de professores. “Ocorreram várias manifestações e protestos no período, a maioria contra pontos específicos do projeto de reformulação. A ditadura, apesar de ter sido muito bem orquestrada e conseguido executar, inclusive com o uso da força, vários de seus projetos para o país, não conseguiu aniquilar a resistência”.

De acordo com Daniela, no Brasil existem poucos trabalhos acadêmicos sobre o tema ditatura e educação. O Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR) da FE-Unicamp, do qual faz parte, é referência nessa área. “Na Bahia, por exemplo, só há um grupo dedicado a esse tipo de estudo, vinculado ao Museu Pedagógico, ao qual também estou vinculada. Temos muitas pesquisas sobre ditadura no país, mas com outros enfoques. Na Bahia, as investigações são mais voltadas a outros assuntos ou abordando um contexto mais amplo. Isso se deve, muito provavelmente, à dificuldade que os pesquisadores baianos da área de educação tinham para ter acesso a documentos do período. Com a abertura dos arquivos e com o trabalho das comissões da verdade, muitos dados estão surgindo e esse cenário tende a mudar”, infere.

Daniela conta que decidiu fazer o doutorado na FE por considerar a faculdade e o HISTEDBR referências nos estudos sobre História da Educação. “O melhor lugar para tratar desse tema no país, sem dúvida, é a Unicamp. Aqui eu encontrei o ambiente e a estrutura necessários para desenvolver minha tese. Agora, já começo a me preparar para fazer o pós-doutorado em outra instituição, mas levo comigo a bagagem adquirida aqui”, afirma a historiadora, que durante o doutorado contou com bolsa de estudo concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), agência de fomento do Ministério da Educação.

Publicação

Tese: “Intelectuais, ideologia e política educacional na Bahia durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985)”
Autora: Daniela Moura Rocha de Souza
Orientador: Sérgio Eduardo Montes Castanho
Unidade: Faculdade de Educação (FE)
Financiamento: Capes