Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 04 de julho de 2016 a 31 de julho de 2016 – ANO 2016 – Nº 662‘A LAMA veio arrebentando tudo’
Morador de Paracatu de Baixo, subdistrito de Mariana parcialmente destruído pela lama de rejeitos da barragem de Fundão, o produtor rural Corgésius Mol Peixoto perdeu sua casa e tudo que tinha dentro dela, inclusive documentos, álbuns de família e muitas lembranças. “Minha mulher chora até hoje pelas fotos de formatura dos filhos e por tudo que se foi.”
Peixoto mostra sua casa soterrada pela lama, localizada na margem do rio Gualaxo do Norte, afluente do Rio Doce que passa ao lado de Paracatu. Ele nasceu e cresceu no subdistrito onde teve três filhos e morava com sua esposa, professora da escola municipal. Agora a família está provisoriamente em imóvel alugado pela Samarco em Mariana, mas Peixoto todos os dias sai da cidade e vai até Paracatu de Baixo cuidar dos animais - gado leiteiro que mantém em sua propriedade não alcançada pela lama.
Ele lembra que estava em sua casa no dia 5 de novembro, quando seu irmão ligou para avisar sobre o rompimento da barragem. “Eram mais ou menos três e meia da tarde. Ele disse que ficou sabendo do rompimento, mas só avisou para ficar atento. Não achei que viria forte. Minha mulher já pegou a bolsa com documentos e saiu com minha filha. Depois apareceu um helicóptero avisando que tínhamos de sair em cinco minutos. Não deu tempo de eu voltar pra casa. Perdi todos os meus documentos. Um filho já morava em Mariana, não estava em casa”, lembra Peixoto.
“No dia, teve muito voluntário para nos levar para Mariana. Eu fui para a casa de um irmão e depois para um hotel. Mas foi quase todo mundo para o ginásio.” De acordo com o produtor, ele e sua mulher já tinham a vida planejada. Faltava pouco para ela se aposentar na escola, onde ainda trabalha, agora instalada na cidade. “Recomeçar a vida, a esta altura, não é fácil.” Os filhos estão criados, diz Peixoto, mas ele tem a sensação de que precisa começar do zero.
“Vou sentir saudade de Paracatu. Sou nascido e criado aqui, ao lado de primos, vizinhos. Estão falando que vão tentar colocar todo mundo igual aqui. Dentro do possível, eles [Samarco] estão dando assistência. Dão alimento para os animais.” Peixoto fala que ouvia comentários sobre o risco do rompimento de uma barragem, mas ele sequer sabia da existência de Fundão. “Eu sabia de outra barragem com mais perigo, não desta.”
À espera de
uma solução
“Estou esperando”, disse “seu” Paschoal, morador de Paracatu de Baixo. Todos os dias ele sai de Mariana, onde está instalada toda a família composta por 12 pessoas, e vai até o subdistrito cuidar de suas galinhas e porcos. Em respostas curtas, mas precisas, ele fala que gostaria de ter todos de volta a Paracatu de Baixo. “Era bom demais morar aqui.”
Nascido no distrito de Pedras, “seu” Paschoal vivia há 40 anos em Paracatu de Baixo. Aos 69 anos, ainda trabalha em sua propriedade rural. Quando lembra do dia da tragédia, fala do helicóptero que chegou para avisar e depois da condução que foi resgatar os moradores. “A lama veio arrebentando tudo. Não vi chegar. Não alcançou minha casa nem os animais, mas a casa rachou em dois lugares. A Defesa Civil tirou todos depois daquele dia. Mas eu fugi do hotel e voltei para cá.”
Segundo “seu” Paschoal, a lama deve fazer mal às pessoas porque “os pés de árvore já matou (sic) tudo”. Antes da tragédia, já havia escutado falarem que podia acontecer o rompimento da barragem, mas ninguém imaginava que atingiria a comunidade.
Uma reportagem multidisciplinar
Com a missão de escrever sobre como vive hoje a população de Mariana (MG) após o rompimento da barragem de rejeitos de minério de ferro que ocorreu em 2015, quatro estudantes da Unicamp resolveram fazer uma reportagem in loco. O grupo multidisciplinar formado pela jornalista Adriana Menezes, o secretário-executivo Bruno Andrade, o publicitário Renan Possari e a bióloga Tássia Biazon saiu de Campinas na noite chuvosa do dia 1º de junho e retornou ainda debaixo de chuva na madrugada do dia 5 de junho.
Após três dias na cidade mineira, cada um trouxe na bagagem muitas histórias e a vivência de uma aventura marcada pelo testemunho vivo dos efeitos do maior desastre ambiental do Brasil. A equipe realizou mais de 20 entrevistas em Mariana.
A motivação para a viagem teve início com a atividade proposta pela professora Graça Caldas, do programa de pós-graduação e mestrado do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp, que lançou aos mais de 30 alunos da sala o desafio de produzirem um eBook sobre a tragédia de Mariana. Toda a turma abraçou a ideia e deu início à produção do conteúdo, que vai resultar no livro digital com lançamento previsto para o fim do ano. Os diversos desdobramentos da tragédia serão contemplados na obra coletiva.
“O que mais me impressionou foi a maneira que se deram as relações entre marianenses e moradores dos distritos atingidos após o rompimento da barragem. O conflito social causado mostra ainda mais o quanto a cultura da mine-ração está entranhada na população da região”, disse Renan sobre o conflito local e a realidade nunca descrita na grande mídia.
Os alunos também presenciaram movimentos da sociedade civil preocupada em apoiar os atingidos. “Gostei de ver o trabalho que tem sido desenvolvido pelos coletivos locais e a UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto). Apesar do preconceito que os atingidos têm sofrido na cidade, tem muita gente empenhada em ajudá-los”, constata Bruno.
O grupo presenciou uma parcela dos pro-blemas ambientais causados pelo desastre e constatou que o pedido por uma legislação que trata das questões de mineração com mais rigidez é unânime entre atingidos, marianenses e autoridades. “A viagem proporcionou uma percepção mais ampla da tragédia. Ao andar pela beira do rio Gualaxo do Norte, percebi o quanto a destruição ambiental não é quantificável. O que entristece é que o assunto não está mais nas capas dos jornais, mas o caos permanece, e se propaga de diversas formas”, considera Tássia.
Ao apurar a história, independentemente das formações de cada um, há um mesmo script final: o rompimento da barragem de Fundão, com os rejeitos percorrendo centenas de quilômetros até chegar ao Oceano Atlântico, é um crime que não pode ser esquecido.
Para Adriana, o mais impactante foi encarar de perto o descaso do poder público em relação à exploração das riquezas nacionais. “A maneira como o minério é explorado é a mesma desde o Império. A indiferença com que as autoridades tratam nossos recursos naturais me causa indignação. Não há fiscalização, não há controle, e o poder econômico determina quase todas as coisas.”
O Dia D
Dia 5 de novembro de 2015. Brasil. Minas Gerais. Mariana. Mineradora Samarco. Às 15h ocorre o rompimento da barragem de Fundão. Cerca de 32 milhões de metros cúbicos de rejeito são lançados no meio ambiente, atingindo diversas comunidades, causando impactos ambientais, sociais, econômicos, até hoje incalculáveis. A lama soterrou casas, matou crianças e adultos, animais de estimação e criação, devastou a fauna e a flora da região, contaminou a água e afetou a bacia hidrográfica do Rio Doce, até chegar ao Oceano Atlântico, impactando regiões estuarinas, costeiras e marinhas.
A primeira comunidade atingida foi Bento Rodrigues, localizada a apenas 5 km do Complexo Minerador Germano-Alegria. Com 318 anos, o subdistrito tinha pouco mais de 600 pessoas. Em menos de 10 minutos a lama atingiria todas as famílias. Não houve tempo de salvar praticamente nada. Desabrigados, os moradores foram aos poucos resgatados e levados para o ginásio poliesportivo Arena Mariana, na área urbana da cidade, que não foi atingida pelos rejeitos.
A advogada Ana Cristina Maia, titular do cartório de Registro de Imóveis de Mariana, também traz na memória o fatídico dia. Ela presidia uma reunião do Conselho de Patrimônio da cidade e estava com o celular desligado. Por volta de 17h, todos na reunião começaram a receber mensagens e alguém interrompeu para informar que uma barragem da Samarco havia se rompido. “Havia filhos, sobrinhos e amigos desaparecidos, teve gente que já se levantou da mesa chorando. Mas ninguém sabia ao certo o que havia acontecido.”
Ana tentou falar com uma amiga professora e não conseguiu. Também ficou desesperada. Viu na TV que Bento Rodrigues estava completamente coberta. “Saí de casa e fui para o ginásio. Fiquei até 1h30 da manhã ajudando, com voluntários e a Defesa Civil.” Devido à falta de medidas de segurança e procedimentos em caso de acidentes, a informação sobre o rompimento da barragem aconteceu no boca a boca, porque a sirene (que deveria existir) não tocou. Após a tragédia, a pergunta foi lançada: “Quem foi sua sirene?” Da angústia coletiva e da vontade de fazer alguma coisa para ajudar, surgiu o coletivo #UmMinutoDeSirene, criado pela sociedade civil para manter viva a memória da tragédia. Todo dia 5 o coletivo promove ações em área pública da cidade (leia texto na página 7).