Edição nº 662

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 04 de julho de 2016 a 31 de julho de 2016 – ANO 2016 – Nº 662

Na SIRENE, o chamado coletivo


(Continuação da página 6) 

No dia em que a barragem de Fundão se rompeu, em 5 de novembro de 2015, não tocou a sirene que supostamente existia para avisar os moradores dos distritos caso ocorresse o rompimento de alguma barragem da empresa Samarco. Para que a tragédia não caia no esquecimento, um grupo formado pela sociedade civil local se organizou e fundou o coletivo #UmMinutoDeSirene, que tem como objetivo lutar pelo direito à comunicação e à preservação da memória das comunidades que sofreram com a tragédia.

Todo dia 5 de cada mês, o coletivo toca a sirene e promove um ato público em Mariana. No dia 5 de junho, organizaram uma feira com os produtores rurais atingidos pela lama nos subdistritos, na qual foram vendidos produtos como queijo, geleia de pimenta biquinho, doces típicos mineiros e outras iguarias. Neste dia também foi lido em praça pública um manifesto escrito pelos moradores.

O rompimento da barragem para esta parcela da população vai muito além das consequências físicas, ambientais e econômicas. Ele afetou o sentimento de pertencimento de quem morava nos subdistritos e perdeu suas casas, sua rotina, seu estilo de vida e sua memória.

O coletivo #UmMinutoDeSirene também criou o jornal A Sirene, elaborado pelos próprios atingidos, com apoio de professores e estudantes da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e da Arquidiocese de Mariana.

“A tragédia disparou um gatilho em cada um de nós. Para mim foi o gatilho de voltar para Mariana e criar o jornal A Sirene, cujo objetivo é defender os direitos que estão sendo violados, inclusive o da comunicação. Decidimos que deveríamos lutar por tudo isso”, diz o jornalista Gustavo Nolasco, um dos integrantes e fundador do coletivo #UmMinutoDeSirene e do jornal A Sirene.

A família de Nolasco é da região de Ouro Preto e Mariana. Em 2015 ele morava em Belo Horizonte, mas após o rompimento da barragem voltou para Mariana. A ideia de dar voz às vítimas com o jornal A Sirene também foi uma reação à falta de informações a respeito da tragédia e da situação dos distritos e subdistritos. “Teve repórter da Globo que chegou aqui e disse que só queria ouvir pessoas que falassem mal da Samarco. Os moradores colocaram pra fora. Ouço gente tanto de um lado quanto de outro.”

Segundo Nolasco, a população local ficou muito incomodada com a cobertura da grande mídia – nacional e internacional -,  que invadiu a cidade após a tragédia. A assessora de imprensa da prefeitura de Mariana, Kíria Ribeiro, lembra que meia hora depois do rompimento da barragem começou a receber ligações da imprensa do Brasil e do mundo. “Ali eu já pude sentir o que estava por vir.”

Ela só conseguiu sair da redação depois das 20h30 e, de lá, foi para o ginásio onde estavam sendo acolhidos os moradores atingidos. Logo começaram a chegar os jornalistas. Os primeiros foram os de Belo Horizonte, do jornal O Estado de Minas. “Somente à noite soubemos que não existia mais Bento Rodrigues. A solidariedade foi imediata.”

Voz aos atingidos
Lançado em 2016, o jornal A Sirene subverte a hierarquia de vozes. Escrito em primeira pessoa, a voz do atingido é a única existente. Os jornalistas colaboradores conversam com as vítimas do desastre, transcrevem exatamente o que foi dito e o texto passa por aprovação do entrevistado.

“A visibilidade é muito importante. A gente sentiu que nem tudo que queríamos aparecia [na grande mídia], tudo era muito filtrado. Eles aproveitavam muito dos momentos de sensibilidade, quando alguém estava chorando para fazer fotos, ao mesmo tempo os atingidos não conseguiam fazer queixa da empresa”, diz Juçara Brittes, professora do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e integrante do coletivo #UmMinutoDeSirene.

As estudantes de Jornalismo da UFOP Marília Mesquita e Silmara Filgueira participam da produção do jornal A Sirene desde a primeira edição. “Ficamos sensibilizadas com a causa.” Elas auxiliam nas entrevistas e às vezes ajudam também a escrever os textos, mas quem de fato faz o jornal são os atingidos pela lama nos subdistritos e distritos de Mariana.

O jornal começa agora uma nova fase. “Ele passa por uma reforma editorial e deve ser mais informativo, deixa de ser somente na primeira pessoa. Mas não existe matéria sem a participação de um atingido”, explica Marília. “Surgiu deles e para eles. Agora há uma releitura, para chegar mais à população”, disse Silmara. O desafio agora é aumentar a circulação.

O projeto foi iniciado pela Arquidiocese de Mariana, que financiava a impressão, em parceria com a empresa Nitroimagem, que realizava o trabalho de produção. A ideia surgiu quando ainda estavam todos sob o impacto da tragédia. Depois a própria comunidade quis dar continuidade ao jornal. A Arquidiocese buscou recursos e conseguiu manter uma edição mensal de A Sirene nestes últimos meses. “Não imaginávamos que A Sirene ganharia esta proporção. É um jornal que está sendo construído”, diz Marília.

Desde o início, a estudante Silmara faz a diagramação, enquanto Marília auxilia nas reportagens. Mas elas não são as únicas. Há participação de diversos estudantes da UFOP. A vivência com os atingidos lhes permite conhecer inúmeras histórias e situações que nem sempre chegam ao público. “Tem gente que não consegue falar sem chorar. Outros falam tranquilamente. Não tem como não ser assim. Eles perderam suas casas, suas lembranças de infância”, conta Marília.

A repórter descreve como os moradores de Bento Rodrigues falam de suas vidas antes da tragédia. “Os relatos que eu tenho deles é que viviam muito bem. Teve um que perdeu R$ 60 mil porque guardava em casa. Financeiramente, eles não viviam mal. Uma moradora tinha horta em casa e agora, em apartamento alugado pela Samarco, tenta manter uma pequena horta.”

Segundo as conversas entre as vítimas de Bento Rodrigues, conta Marília, todos sabiam que poderia ocorrer um acidente um dia, mas nunca nestas dimensões. Não havia real noção. Eles faziam caminhadas até a barragem, tinham a imagem de uma coisa gigantesca em cima deles, “mas ninguém estava preparado para tudo isso; nem as equipes de apoio.”

Para Silmara, a imprensa de modo geral foi muito superficial na cobertura de Mariana, “com recortes não aprofundados”. Marília também acredita que ainda há coisas que precisam ser faladas que não aparecem na grande imprensa. Ela cita o surto de alergias que está ocorrendo em Barra Longa, cidade mineira onde a lama da barragem também passou. “E continua lá. Continua passando lama no rio.” São casos de alergia respiratória, ocular e micose. “Dizem que é bactéria. Enquanto a Samarco continua dizendo que a lama não é tóxica.”

Nos dias seguintes à tragédia, helicópteros sobrevoavam o local, telefones não paravam de tocar, era uma movimentação de diversas emissoras, entre elas a BBC, National Geographic e Globo. “Hoje em dia, quase não se vê mais ninguém”, diz o estudante Thiago Barcelos, aluno do curso de jornalismo da UFOP. “O bacana é que ainda tem gente que não se esqueceu e procura fazer um produto jornalístico de qualidade e que pode fazer a diferença, por isso eu fico feliz em ajudar pessoas que aparecem aqui assim como você e seus amigos”, declara.

O estudante conta que aproximadamente duas semanas depois da tragédia realizou uma cobertura fotográfica em Bento Rodrigues. Ele lembra que não havia nenhum morador por lá, era apenas a destruição que a lama provocou. “A princípio foi um choque, um verdadeiro cenário de filme de terror, era difícil acreditar que tinha uma cidade debaixo daquela lama toda”, lembra.

Quem visita os locais mais atingidos tem a sensação de ter parado no tempo. Paracatu do Baixo, subdistrito devastado, tem marcas nítidas. A escola está repleta de lama, a igreja interditada, as casas em ruínas. Em meio a tanta destruição, um ou outro morador anda pelas ruas, acreditando que sua vida ainda voltará ao normal.

O coletivo #UmMinutoDeSirene também escreveu um manifesto que foi lido em praça pública no dia Mundial do Meio Ambiente, em 5 de junho, quando o rompimento completou sete meses.

(Continua na página 8)