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Barriga de peixe,
ou o estulto ‘foquismo’

Numa palestra para professores da Universidade Federal do Ceará, acerca dos elementos estéticos presentes na criação científica, um de meus comentários foi considerar um equívoco a ideia de que um indivíduo que tenha elegido um único tema de estudo e pesquisa ao longo de sua vida acadêmica, desde a iniciação científica até o pós-doutorado, seja alguém meritoriamente focado, o que o tornaria mais digno de pontos, por exemplo, num concurso qualquer. Aliás, frequentemente me vi envolvido em debates com colegas membros de bancas de seleção por advogar exatamente a opinião contrária: meu apreço por todo aquele que ao longo da vida se dedicou a pensar diferentes assuntos, mesmo os mais díspares e distantes entre si.

Após a fala e aberto os debates uma jovem bióloga declarou que tinha se reconhecido no meu comentário, dado ter empenhado toda a sua trajetória acadêmica estudando “barriga de peixe”. E que só havia se dado conta do quão pouco sabia da vida e do mundo em geral quando um namorado recente acabou deixando-a porque ela só sabia falar disso, de barriga de peixe. Obviamente não pude deixar de pontuar que quase sempre é assim que se dá o conhecimento, sendo ele obtido a partir de um sentimento ou emoção primordial – no seu caso, uma constatação de sua limitada percepção após se ver “apeixonada”. Piadas à parte, esta reflexão precisa ser levada a sério. O quão deletéria e prejudicial tem sido essa tendência cada vez mais acentuada para uma especialização extrema, incentivada por mensurações de desempenho que quadriculam a realidade e se tornam um leito de Procusto no qual devem se acomodar pesquisadores e docentes.

Não custa relembrar o filósofo e matemático Bertrand Russel, uma das mentes mais proeminentes e profícuas do século 20. Em sua autobiografia relata que seu avô (por quem foi criado) repreendeu-o ainda na infância por tomar e ler aleatoriamente livros dos mais variados assuntos de sua biblioteca, aconselhando-o a se dedicar apenas a um tema se quisesse ter sucesso na vida. “Ainda bem que nunca segui esse conselho”, conclui Russel, cuja vasta obra constitui um amplo leque de reflexões sobre ciência, filosofia, política, ética, economia e outros temas fundamentais para o homem e a sociedade humana. Russel se dedicou a pensar não somente no peixe inteiro como nos demais cardumes, bem como no rio onde nadavam e na floresta atravessada por ele, com todos os seus outros habitantes.

Muitos proeminentes pensadores e produtores de conhecimento podem ser lembrados como exemplos de indivíduos que tiveram percursos sinuosos por entre assuntos e temas variados, e com frequência se nota que suas contribuições mais originais provêm exatamente da capacidade de conectar aspectos distintos disto que chamamos realidade, os quais aparentemente se mostram distantes entre si.

Aliás, o jornalista e escritor Arthur Koestler – que certamente faz parte desse grupo – em sua obra The act of creation conceitua como bissociação o processo pelo qual as pessoas criativas conseguem associar conhecimentos díspares ou pensar simultaneamente em planos distintos de referência. E não custa encerrar o parágrafo registrando que no presente século o prêmio Nobel de economia de 2001, Michael Spence, antes de se doutorar nessa área do conhecimento pela Universidade de Harvard, concluiu o bacharelado em Princeton e o mestrado em Oxford, ambos obtidos em artes.

“A ideia de que as pessoas devem ter uma certa percentagem de seu tempo para fazer coisas sem nenhuma ligação com sua tarefa talvez seja uma maneira boa de fazê-las pensar fora do plano.” Afirmação de Joichi Ito em entrevista à Folha de S. Paulo (de 02/01/2012). Diretor do Media Lab, um dos componentes do incensado Massachusetts Institute of Technology (MIT), Ito, além de seu domínio em informática e física, orgulha-se de ser instrutor de mergulho, ocasião em que vê as crianças, seus alunos, aprenderem com vontade, alegria e determinação conceitos de física, química e matemática. Contudo, o que talvez cause mais espécie em nossos focados e titulados corpos docentes seja a informação de que Ito dirige o Media Lab do MIT não sendo portador sequer de um diploma de graduação. E que nunca conseguiu concluir os cursos nos quais se matriculou justamente por não se adaptar ao “foquismo” daquilo que tentavam lhe ensinar.

(Nesta altura temos que abrir um parêntese para registrar um caminho alternativo de reflexão, o qual, no entanto, não será trilhado aqui. Trata-se do desprezo que até hoje se devota às Carreiras Especiais dentro da Universidade, as quais deveriam abrigar pessoas como Joichi Ito, sem demérito de vencimentos ou incentivos forçados à titulação. Fecha o parêntese.)

Merece também menção o editor John Brockman e seus esforços para reunir pensadores das mais diversas áreas, compilando seus conhecimentos e opiniões sobre temas específicos em livros sob os mais variados títulos, o que vem fazendo desde 1998. Em seu entender tão-somente ideias vindas de diferentes áreas do conhecimento que possam se interligar e se interinfluenciar poderão conduzir à solução dos principais problemas que assolam a humanidade. Entretanto, um caso exemplar e deveras significativo é o de Joseph Needham. Da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, era bioquímico de formação e se interessou pela China graças a uma namorada chinesa, que lhe ensinou a língua. Designado para um trabalho naquele país, acabou por formular a célebre “pergunta de Needham”: se desde tempos imemoriais aquele povo detinha o conhecimento e a tecnologia para a produção de tantos artefatos e produtos inovadores (como a pólvora, o papel e a seda), por que foram os ocidentais e não eles os criadores da ciência moderna?

Mesmo sem ter formação em história das ideias, resolveu pesquisar o assunto, no que foi apoiado pela sua instituição. Planejava escrever, em dez anos, em torno de sete volumes para responder a sua questão. Gastou, na verdade, quarenta anos e, até a sua morte (em 1995), já havia escrito quinze mil páginas de reflexões, construindo uma obra monumental. Nunca mais escreveu uma linha sequer sobre bioquímica, na qual o pensamento estulto talvez dissesse que ele deveria se manter focado. E, detalhe importante, nunca foi cobrado por isso; pelo contrário, foi incentivado e reconhecido por sua hercúlea tarefa.

Por todos esses breves fatos e ligeiras reflexões se me afigura cada vez mais surpreendente que a ideologia do “foquismo” esteja ganhando tantos adeptos no meio acadêmico. Sem dúvida, o trabalho focado parece consideravelmente menos desgastante e arriscado, com menor quantidade de leituras e reflexões a serem levadas a cabo e menores chances de fracasso. Porém, com ele, reduzidas são também as possibilidades de grandes saltos e inovações surpreendentes no conhecimento humano, notadamente a possibilidade de que se obtenham sínteses abrangentes e seminais.

Obviamente a probabilidade de surgimento de novos Russels ou Needhams será sempre baixa, dado serem pessoas acima da média (vide a curva de Gauss). Todavia, assim como é praticamente nula a probabilidade de rosas medrarem no deserto, na medida em que se criam ambientes aridamente “foquistas” se impede a germinação de mentes ávidas pelo trânsito sinuoso entre os campos do saber humano. E este parece ser especificamente o caso da norma firmada pela Capes de não atribuir, em sua avaliação, pontos a trabalhos de pesquisadores que não se restrinjam à área do programa de pós-graduação no qual estão credenciados. Além de tal prática ser arrogante, por supor a clarividência e a suprema sabedoria de seus avaliadores, que conseguiriam detectar de antemão desvios de rota e práticas dispersivas por parte de uma mente em processo de criação, ela parece estulta em si própria, preocupada apenas com a quantidade e não com a qualidade da produção acadêmica.

Note-se, por fim (mas não em último lugar), que todo e qualquer docente, pesquisador seja de qual área for, tem, por definição, ao menos mais um assunto do qual deveria se ocupar diariamente: a educação. Sim, pois sua prática numa instituição de ensino superior é, de modo precípuo, educacional, e esse campo de trabalho possui múltiplas vertentes de abordagem, quais sejam, históricas, econômicas, políticas, sociais, psíquicas etc. Contudo, pelos padrões avaliativos atuais tão-só os docentes das faculdades de educação merecem pontuação por seus trabalhos de reflexão sobre o tema. Essa barriga de peixe só a eles pertence.

(E num derradeiro parêntese cabem informações complementares. Primeiro, que “um dos motivos encontrados por Needham para o estancamento da criatividade chinesa a partir de 1500 foi justamente a aversão de uma estrutura burocrática acomodada na certeza de sua própria sapiência a tudo que discrepasse dos padrões impostos”. Citação esta retirada do artigo do psicanalista e docente da PUC São Paulo, Renato Mezan, “O Fetiche de Quantidade”, publicado na Folha de S. Paulo – caderno Mais – de 9 de maio de 2010, ao qual devo as informações sobre Joseph Needham. A esse respeito, ou seja, acerca de uma alucinada quantificação como parâmetro unívoco para a mensuração da produção acadêmica, remeto também o leitor ao meu ensaio The Rotten Papers, ou Adiós Que Yo Me Voi, publicado em A montanha e o videogame: escritos sobre educação – Papirus Editora.)


João Francisco Duarte Junior é docente do Instituto de Artes (IA), com sinuoso percurso escolar e acadêmico: técnico em química industrial (nível médio), graduação em psicologia, mestrado em psicologia educacional, doutorado em filosofia da educação e livre-docência em artes.





 
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