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Neire e o lugar da memória
Há 30 anos na Unicamp, bibliotecária
revela em dissertação como nasceu o Siarq
Louis Jacques Mandé Daguerre
(1787-1851) e Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833), precursores
da fotografia, se orgulhariam de constatar que a ideia de
“congelar” imagens se tornou um benefício para a sociedade.
A história congelada dá sentido à história viva desde que
alguns especialistas decidiram acondicionar tantos frutos
de daguerreótipos (instantâneos, fotografias, audiovisuais)
em um grande arquivo. Esse prazer de colecionar histórias
para recontá-las faz brilhar os olhos da diretora do Arquivo
Central e coordenadora do Sistema de Arquivos (Siarq) da Unicamp,
Neire do Rossio Martins, quando, antes da entrevista, abre
o grande acervo de fotos constituído pela Unicamp.
O envolvimento diário e intenso
com tantos documentos imagéticos, sonoros e textuais sobre
a Universidade, há quase 30 anos, motivaram a dissertação
intitulada “Memória Universitária: o Arquivo Central do Sistema
de Arquivos da Universidade Estadual de Campinas (1980 - 1995)”,
orientada pela professora Maria do Carmo Martins, da Faculdade
de Educação (FE). Um dos motivos de orgulho para ela foi ter
em sua banca as professoras Heloisa Rocha, da FE, e Heloisa
Liberalli Bellotto, reconhecida arquivista brasileira. A dissertação
dá conta de mostrar a trajetória do Arquivo Central do Sistema
de Arquivos da Unicamp pelas mãos de quem o coordena desde
sua instalação.
As trajetórias de Neire e
do Siarq confundem-se desde o início da década de 1980, quando,
ainda aluna do curso de Biblioteconomia da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas (PUC), ela decidiu bater à porta de algumas
bibliotecas. Começou pela infantil, depois procurou a escolar,
até que, ao decidir pela universitária, foi acolhida rapidamente
pela Biblioteca Central da Unicamp, na época comandada pela
bibliotecária Maria Alves de Paula Ravaschio.
Os recursos de fundo de garantia
recebidos de uma empresa privada em que havia atuado anteriormente,
na área de contabilidade, ajudariam a se manter durante o
estágio na área do conhecimento escolhida. Dois anos depois,
já comemorava a contratação pelo Ibict para dar continuidade
no trabalho na Biblioteca Central. Na BC, fez de tudo: catalogação,
atendimento, fichário, compra, distribuição de revistas na
biblioteca. Como bolsista do Instituto Brasileiro de Informação
em Ciência e Tecnologia (Ibict), também ficou incumbida de
cuidar da área de microfilmagem do Catálogo Coletivo Nacional
na região de Campinas, assessorando órgãos públicos como Coopersucar,
Instituto de Zootecnia e Unicamp.
Ainda bolsista e bibliotecária
da BC, foi convidada pelo professor Ataliba Teixeira Castilho,
professor de linguística do Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL), para desenvolver, em 1983, o projeto da divisão de
documentação do Centro de Informação e Difusão Cultural (Cidic),
na época ainda nos autos do estatuto da Universidade, redigido
em 1969. Castilho foi o grande mentor do projeto de reestruturação
da BC, em 1983,quando, ao voltar de um intercâmbio de pesquisa
na Universidade do Texas, sugeriu a reformulação.
Diante do aceite, Neire arregaçou
as mangas e se dedicou a conhecer um novo universo de conhecimento,
dessa vez, o da arquivologia, o qual introduziu um novo conceito
de tratamento de documentos na Universidade. O conjunto de
documentos permanentes reunidos pela Unicamp, imagéticos e
escritos, entusiasma Neire até hoje. “Olha, como eram as formaturas
coletivas”, diz, ao contemplar imagens da década de 1980.
Ou a foto de lançamento da primeira pedra fundamental, na
Fazenda Santa Cândida, em 1964. “Este evento reuniu várias
pessoas envolvidas no movimento em prol da instalação de uma
Faculdade de Medicina de Campinas”, declara.
O início da formação do acervo
arquivístico da Divisão de Documentação já foi bastante instigante,
por se ver diante de 50 mil processos dos séculos 18 e 19,
do Tribunal de Justiça de Campinas, incorporados por comodato
pela Unicamp, em 1985. Aos poucos, chegaram os acervos de
Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Duarte, Zeferino Vaz, Sérgio
Porto, Cesar Lattes e tantos outros. Um capítulo da dissertação
é dedicado a contar como se deu a formação do acervo de documentos
que compõe o Arquivo Central. Com chegadas e partidas, como
revela Neire. “O conjunto do Tribunal integra hoje o Centro
de Memória, e o de Paulo Duarte, o Centro de Documentação
Alexandre Eulálio (Cedae).” Aos poucos, o “lugar de memória”
se legitimava também como órgão administrativo e acadêmico.
Zelo
A equipe do Siarq tem o trabalho e ao
mesmo tempo o privilégio de cuidar de todos os documentos
preserváveis da Unicamp, desde processos de vida acadêmica
de seus quase 30 mil alunos até documentos científicos. Tudo
deve receber tratamento zeloso desde a descrição até o manuseio
e o acondicionamento.
A pesquisa histórica
sobre a criação do Arquivo Central levou em conta o contexto
brasileiro sobre os arquivos, mas seu foco principal circundou
o contexto da própria Unicamp, na década de 1980. Nesse aspecto,
ressalta a crise de 1981, quando ocorreu a intervenção em
algumas unidades, o processo de institucionalização, que ocorreu
em seguida, coordenado pela Assessoria de Desenvolvimento
da Unicamp (ADU), criada pelo reitor José Aristodemo Pinotti
e liderado pelo professor Paulo Renato Costa Souza.
Nesse interim, o Arquivo
Central foi sendo implementando com um novo foco arquivístico
para a época, mais voltado para a gestão de documentos, que
abrangeria os documentos correntes, produzidos nos escritórios
dos órgãos e unidades no dia a dia. Para tanto, houve a necessidade
de se criar um modelo sistêmico de gestão, que envolvesse
mais ativamente as unidades e os órgãos, sob a coordenação
de um órgão central. Em 1989, em reunião do Conselho Universitário
(Consu), a divisão se tornaria o Sistema de Arquivos do Arquivo
Central da Unicamp (Siarq).
Como entidade organizacional,
o arquivo apoia a construção de memórias, na medida em que
trata e dispõe acervos documentais, segundo a pesquisadora.
“Quando orienta a produção de documentos, o arquivo tem poder
de construir, enquadrar e modificar memórias. Além disso,
ele orienta ou pratica a avaliação de documentos, elabora
arranjos e descreve documentos, dá publicidade ao acervo e
organiza exposições, apoiando festividades e comemorações”,
acentua.
Para Neire, a Universidade
percebeu a necessidade de manter e conhecer seu passado. Na
década de 1980, mesmo marcada por profundas reformas institucionais,
era preciso garantir que os documentos da Unicamp, desde sua
criação, fossem preservados, organizados e disponíveis para
pesquisa. “A época era também de redemocratização do Estado
brasileiro, e isso incluía a disposição de informações públicas,
de modo a reforçar a criação desse espaço na Unicamp”, afirma.
Para tratar de memórias
e esquecimentos, Neire buscou alguns casos ocorridos na Unicamp,
entre os quais o marco de aniversário, comemorado em 1966,
quando o primeiro vestibular foi em 1963. “Aquela foto da
pedra fundamental de 1964 ficaria fora de um processo de divulgação
da memória? Isso mostra que a memória pode ser formatada”,
avalia Neire, para quem não há identidade sem memória.
A iniciativa de ter
um espaço especialmente destinado a gerenciar e preservar
documentos não é muito comum em instituições, o que pode causar
alguns infortúnios e desespero no momento de investigação
política, administrativa e científica. Isso faz com que a
equipe do Siarq não somente organize as unidades da Universidade
em comissões setoriais como também participe de grupos internacionais
de arquivologia, como o Interpares, destinado à discussão
de sistemas de preservação de documentos digitais.
Diante de tantas oportunidades
para desenvolvimento pessoal e profissional, como não dizer
que é feliz por ter sido aceita e permanecer na Universidade?
“Sou feliz de verdade e, além de me realizar como profissional
pós-graduada pela Unicamp, por estar aqui, pude me especializar
na Universidade de São Paulo (USP); na PUC-Campinas, em ciência
da informação; e no Instituto de Matemática, Estatística e
Ciência Computacional (Imecc) da Unicamp, em qualidade”, comemora.
Sentar-se à mesa para se fartar de conhecimento foi uma experiência
que a fez ver a Universidade por outro prisma, apesar de conhecê-la
como a palma da mão de um arquivista. “Gosto muito da Unicamp.
Ela abriu as portas profissional e academicamente. E pretendo
chegar ao doutorado”, aspira.
Escrever em pedras,
desenhar estratégia de caça, tentar provar a forma geométrica
da Terra. O homem sempre teve algum símbolo para registar
sua história. E Neire lembra que, de fato, se a memória não
for transmitida, ela não existe. Ela reflete que, com a dificuldade
de manter a memória, mesmo tendo acesso à pena e aos daguerreótipos
e, mais tarde, à informática e à captação e impressão digital,
o homem precisou criar o espaço sistematizado da memória.
Este espaço pode estar na biblioteca, no arquivo, no museu,
numa placa comemorativa e em muitos outros ambientes. Até
hoje, este espaço dá conta de organizar o velho e o novo para
que eles se encontrem e contem a história um do outro. Ou
seria um ao outro?
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Publicação
Dissertação: “Memória Universitária: o Arquivo
Central do Sistema de Arquivos da Universidade Estadual de
Campinas (1980 - 1995)”
Autoria: Neire do Rossio Martins
Orientação: Maria do Carmo Martins
Unidade: Faculdade de Educação (FE)
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