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A língua entre os dentes

P – E isso é novo?
Gilvan Muller de Oliveira – É uma coisa nova, que na década de 80, quando comecei a trabalhar com isso, não existia de maneira alguma. Isso tem fomentado processos de aprendizado da lida com a questão política, econômica, na qualificação de novos quadros indígenas, advogados indígenas, lideranças muito mais poderosas em termos de projeção, de serem escutadas pela mídia, de representarem seus povos. Não tínhamos isso há 20 anos, no quadro jurídico anterior a 1988. E por mais que estejamos 10 anos atrasados em termos de implementação das políticas esboçadas em nossa Constituição, por mais que ela seja mais avançada que a realidade do país hoje, tem-se realizado progressos. E parte desses avanços decorre da alteração dos lugares que o Estado ocupa frente aos povos. Diria que a globalização traz perigos, mas temos chances que nunca tivemos.

P – De certa forma, essas entidades de defesa das minorias ganharam mais visibilidade.
Gilvan – Exato. Hoje temos entidades que financiam projetos para línguas ameaçadas, projetos qualificados de acompanhamento de políticas lingüísticas, de formação de quadros indígenas que vão assumir tarefas importantes na condução desse processo, passando a não depender de assessores externos, o que é muito importante.

P – Existe uma estimativa de quantas línguas indígenas sobreviveram no país?
Gilvan – Cerca de 180 línguas. Contar línguas é muito difícil. Numa estimativa a partir de relatos de viajantes do século 16, 1.078 línguas teriam desaparecido, algo em torno de 85%. E muitas continuam em processo rápido de desaparecimento.

P – É feito mapeamento das línguas remanescentes?
Gilvan – Uma área acadêmica, chamada Línguas Indígenas, pesquisa sobre o assunto. Os especialistas escrevem a língua, fazem a fonologia da língua, a sintaxe. A maioria absoluta não está descrita de uma maneira completa. Existem fragmentos de descrição, em geral só a fonologia, léxico de viajantes, mas o número de lingüistas envolvidos nisso é ínfimo.Dificilmente vai passar de 25,30.

P – A descrição auxilia na manutenção dessas línguas?
Gilvan – Mais importante é que o trabalho não poderia se restringir à descrição das línguas indígenas. Muitas vezes as línguas são descritas com a seguinte justificativa: temos que descrevê-la antes que desapareçam. Mas o interesse de descrever antes que desapareçam é o interesse do botânico, do colecionador. É o interesse de quem acumula o dado dentro dos muros da universidade para o seu uso. É de alguém que está interessado no dado, não nas pessoas que falam a língua e no que a língua representa para essas pessoas. A mentalidade, mesmo para esse grupo qualificado de lingüistas, é de que o importante não é a língua como objeto, como dado, mas sim a língua gravada e escrita para ser guardada no acervo que o Ocidente possui sobre o que era o mundo no ano 2000, por exemplo.

P – O que mais poderia ser feito?
Gilvan – O fundamental são as pessoas que falam a língua, os projetos políticos que têm e a nossa intervenção no sentido de ajudar nos aspectos políticos relacionados com o que tais línguas significam para essa sociedade. Isso em termos da sua manutenção, do seu bem-estar, das suas perspectivas do futuro, da sua possibilidade de existência no meio ambiente sobre o qual eles sabem muito mais que nós e sobre o qual eles desenvolveram reflexões que nós nem sonhamos. Não é à-toa que essa massa de pessoas, sobretudo os americanos, através da biopirataria, tenta se apropriar desses conhecimentos indígenas, para transformá-los em bens de consumos a serem vendidos. Mas isso passa pela língua enquanto instrumento de um constructo teórico e de conhecimento que esses povos construíram através dos séculos.

P – Qual o papel do gramático nesse contexto?
Gilvan – O movimento de discriminação exercido pelos gramáticos é duplo. Há um fundamental, primário, originário, que é considerar que no Brasil só se fala o português. Ao se apagar as outras línguas, está se exercendo a forma mais primorosa de discriminação. Eu não te enxergo, você não existe. Não há discriminação mais efetiva do que o apagamento do outro. A segunda forma, que é mais discutida, é a discriminação causada internamente aos lusófonos, ao ambiente lusófono no Brasil. Que é, na verdade, a discriminação contra as outras variedades. Sem dúvida, há dois movimentos, ambos preconceituosos.

P – Quais os canais usados para a reprodução desse movimento discriminatório?
Gilvan – A mídia e até mesmo grande parte das universidades reproduzem preconceitos. Os cursos de letras são na sua maioria formadores e reprodutores de pessoas preconceituosas, que vão atuar no aparato escolar em que ele mesmo, de novo, é um reprodutor dessa mentalidade. Então você tem de localizar o preconceito nas práticas cotidianas. E onde que se dão essas práticas cotidianas? Em instituições, em aparelhos ideológicos do Estado, na escola, na universidade que forma quadros para a escola, na imprensa... A Academia Brasileira de Letras, por exemplo, se legitima a partir de mecanismos muito interessantes.

P – O senhor poderia exemplificar?
Gilvan – Uma das conseqüências do projeto do deputado Aldo Rebelo, que agora tramita no Senado, contra os chamados estrangeirismos... Nem é tanto o efeito que ela terá contra eles, mas aqueles aparentemente secundários da lei, como o de instituir a ABL, na qual não há pesquisa sobre a língua portuguesa, como único órgão decisório. Outro efeito secundário: a lei proíbe pessoas que vivam há mais de um ano no país de falar suas línguas. Isso respinga em quem? Nos imigrantes que estão aqui há 100 anos e querem falar a sua língua porque isso é um projeto político.

P – Quais são os efeitos dessas distorções?
Gilvan – Desse duplo movimento exercido pelos gramáticos, só um é percebido. O apagamento não é percebido como um movimento ativo desse projeto de constituição de um país monolíngue e de uma língua monodialetal, que é a grande visão do Estado, aquilo que o Estado sonha em ter. O Estado sonha em moldar a nação à sua imagem: um centro, um poder, um povo, uma língua. Isso reproduz, no seu limite, o que o totalitarismo, o nazismo defendia, que é essa unidade entre o Estado e a nação como projeto das elites.

P – O ensino oficial é atingido por essa política centralizadora?
Gilvan – Muitas coisas interessantes estão acontecendo na educação no Brasil. Trabalho num projeto em Florianópolis com educação de jovens e adultos, que pega exatamente a população que foi tirada da escola e hoje freqüenta curso noturno, no qual assessoro 1.700 alunos. Nós fizemos várias modificações.

P – Quais mudanças foram introduzidas?
Gilvan – É um ensino não disciplinar, que ocorre via pesquisa. Veja o que acontece no ensino fundamental brasileiro, que incorporou grandes parcelas de alunos que até uma década atrás estavam excluídos da escola. Nessa incorporação, introduziram-se variedades lingüísticas, relações com a escrita, com a língua, que eram desconhecidas para a escola de 20 anos atrás. Essas pessoas trouxeram questões que a escola não sabe lidar, porque ela se situa entre dois fogos: de um lado tem que produzir indicadores que façam com que o trabalho do governo seja valorizado; tem que diminuir a evasão, a repetência, melhorar os índices de conclusão. Então a escola é forçada, pelo aparelho de governo, a resolver esses problemas. No entanto, ela atua sobre esses alunos reproduzindo as velhas formas de tratar a questão da língua. E melhorar esses indicadores significaria alterar as práticas escolares que são, por outro lado, também emanadas dessa estrutura de poder.

P – E ela não está preparada para essa metodologia?
Gilvan – Abandonar essas práticas escolares também é possível e, com isso, melhorar enormemente os indicadores. A grande questão é que, abandonando essas práticas, você cria na escola um outro ambiente, perpassado por outras vozes, com outros interesses, que começa a desmontar uma série de dominós que estão de pé e vão caindo. Quando você começa a desmontar, verifica que a formação que o professor recebe é absolutamente insuficiente, é errada. Isso coloca em questão as universidades, os professores, as relações desses professores com seus pais teóricos e a própria relação hierárquica entre, talvez, quem está nas universidades e quem não sabe, que está nas escolas. Veja que quando você modifica esse ambiente, muita coisa é ameaçada, a reação é violenta.

P – Que tipo de reação?
Gilvan – Os professores não sabem atuar de outra maneira. Sentem que estão perdendo espaço na relação tradicional em que eles sabem e os alunos não sabem. Então reagem a isso. Não é possível esperar da universidade que ela produza o professor que se precisa. É preciso capacitar o professor em processo, porque a universidade não faz isso. Mas quando isso se afirma, coloca-se em xeque a universidade, coloca-se em xeque procedimentos do MEC, coloca-se em xeque procedimentos das secretarias.

P – Não seria, então, a hora de se implantar novas linhas de ação?
Gilvan – Sim, estamos num momento em que há uma grande oportunidade também nesse campo. Por que? Os sinais que vêm do governo são contraditórios para a escola. E a escola fica numa camisa de força em que ela tem que melhorar os indicadores. Para melhorar os indicadores com o quadro institucional criado tradi-cionalmente para a escola, é impossível. Então temos associações que vivem uma angústia muito grande, buscando soluções. E quando as soluções se conformam e os professores se engajam no projeto, como tem acontecido, começa um processo de desmonte muito produtivo, muito criativo e muito apaixonante, muito sério tecnicamente. Começa-se a desmontar peça por peça. E vai desmontando progressivamente, sofrendo todo tipo de reação dos professores, dos próprios alunos que introverteram uma idéia de escola em que eles copiam, uma escola de educação bancária, como diria Paulo Freire. E eles mesmos demoram um certo tempo para se redimensionar nesse processo, como agentes, como pessoas que têm questionamentos e que podem ver a escola como um espaço de trato desse questionamento. É um processo demorado.

P – Até que ponto a chamada militarização das escolas, sobretudo em São Paulo, pode interferir nessa nova ordem?
Gilvan – Em primeiro lugar eu diria que é preciso nunca tratar o Brasil como uma unidade. O Estado de São Paulo, que sempre ocupou esse lugar de locomotiva do Brasil, na verdade tem exacerbadas as contradições do próprio sistema. O grau de violência encontrado em São Paulo não existe em toda a parte, porque é o lugar onde a contradição da exclusão, da riqueza absoluta, da pobreza absoluta, do domínio político, é naturalmente mais notável. Logo, a militarização das escolas é apenas a conseqüência da militarização da sociedade. Florianópolis vive outra situação, também problemática, mas são outros níveis, outras configurações e outras contradições que lá existem. Como é no Norte, no Nordeste. Se a realidade é tão diversa, as soluções também serão diversas. Não acredito que as soluções possam vir de cima para baixo, nem como soluções únicas.

P – Como elas viriam?
Gilvan – Eu diria que o primeiro passo para começar a solucionar o problema é enxergá-lo localmente, a partir de níveis concretos de intervenção. Vejo que existem oportunidades dispersas por todo o país, existem mudanças e experiências em curso. Acho, volto a dizer, que estamos num momento muito privilegiado para tentar isso. Os professores não têm conseguido, aqui em São Paulo principalmente, mas têm buscado. E onde se busca, se tem chance de achar. Essa grande contradição em que a escola entrou, de ter que atender a mensagens contraditórias do próprio governo, leva a uma procura, que é um terreno fértil para a mudança. Mas particularmente eu só acredito num trabalho concreto, localizado, que vai se espalhando, que vai saltando para outras regiões. Um movimento capilar que vai criando redes, com diferentes graus de penetração nos aparelhos do Estado. Isso vai possibilitar a implantação das mudanças concretas.

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