Com que língua? Abertura 
de aldeias para letramento bilíngüe divide lideranças indígenas 
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xucurus do Ororubá, índios da serra pernambucana homônima, 
perderam a língua nativa no percurso de quase 400 anos de contato com a 
civilização branca. Alguns vocábulos foram resgatados, outros 
estão sendo pesquisados, mas o idioma é considerado morto. E isso 
nem parece importar aos cerca de 8.140 xucurus que reivindicam 27,5 mil hectares 
de terras distribuídos entre o agreste e o sertão de Pernambuco. 
O fortalecimento da tradição e a manutenção 
de nosso povo, neste momento, é muito mais importante que recuperar a língua, 
defende José Agnaldo Xucuru, 32 anos, da Organização dos 
Professores Indígenas de Pernambuco (Opip).
 O 
povo de Agnaldo, relatado desde os idos de 1640, foi uma exceção 
no IV Encontro sobre Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas no 13o Cole. 
Terenas de Mato Grosso do Sul, guaranis do Litoral de São Paulo, caingangues, 
do Rio Grande do Sul, ashaninkas, do Acre, e mundurucus, do Pará, passaram 
dois dias no auditório da Faculdade de Educação da Unicamp 
discutindo um projeto político-pedagógico para os seus povos. Os 
índios concluíram que cada povo, de acordo com suas peculiaridades, 
deve ter uma política pedagógica específica, mas que podem 
traçar planos comuns em busca de autonomia. A 
abertura das aldeias para o letramento bilingüe é visto com reservas. 
Se os guaranis, terenas, caingangues e mundurucus adotaram o duplo idioma nas 
salas de aula, o representante ashaninka, Izaac da Silva Pinhano, da Organização 
dos Professores Indígenas do Acre, manifestou dúvida. A educação 
bilingüe pode ser boa para uns e ruim para outros. É difícil 
para um ianomami, por exemplo, entender o que é ser bilingüe. Não 
é sabendo ler e escrever que a gente pode se defender, discutir de igual 
para igual. Cada um conhecendo sua realidade, mostrando um para outro o seu valor, 
a partir daí a gente vai ter autonomia, argumenta Izaac, que veio 
do distante Vale do Juruá, na divisa do Acre com o Peru, onde vive a maior 
parte de seu povo. Mas 
Izaac não reflete o pensamento da maioria. O professor Daniel Mundurucu, 
pós-graduado em antropologia pela USP, defende a incorporação 
de elementos da sociedade envolvente para sobrevivermos. Autor de dois livros 
sobre a temática, Daniel é integrante do Ideti (Instituto de Desenvolvimento 
das Tradições Indígenas), uma ONG composta por índios 
letrados com sede em São Paulo. Segundo 
ele, 60% dos mais de 9 mil mundurucus espalhados por 90 aldeias do interior do 
Pará, falam só a língua mãe. Os demais são 
bilíngüe, com uma pequena parte que só fala o português. 
Lá, a escola é bilingüe, mas as crianças aprendem 
primeiro o mundurucu. As crianças só falam e até lêem 
em mundurucu, depois vão aprender português. Muitos poucos falam 
só o português e alguns estão ainda isolados, informa 
Daniel. Então temos discutido de que forma transformar nossa tradição 
oral em escrita sem perder este lance da oralidade. A 
língua dos invasores, na ótica da professora Pierangela Nascimento 
da Cunha, dos índios wapixana de Roraima, é como uma arma. É 
fundamental que a gente conheça a língua do inimigo para aprender 
a lidar com ele, diz. Seu povo foi contatado há cerca de um século 
e começou a ser letrado, segundo ela, há 15 anos. Foi um letramento 
de acordo com os critérios do homem branco. O início foi para catequese 
e dominação. Agora estamos revertendo isso para que este conhecimento 
seja usado como instrumento de defesa de nossos direitos. Pierangela, 
que estudou o magistério em escola de brancos, atualmente integra a Opir 
(Organização dos Professores Indígenas de Roraima). Hoje 
temos dicionários e cartilhas em língua wapixana e estamos lançando 
um livro de história no idioma para crianças da quinta série, 
comunica. Daniel Munducuru, que além da pós-graduação 
tem estudos em história, filosofia, psicologia, está bastante esclarecido 
sobre o tornar-se pensante além do beabá. A coisa é 
complexa, pois trata-se do branco querendo impor ao índio uma forma de 
pensar e formatar uma escola, diz.  Inútil 
escrita A escola ofertada aos índios pelos brancos é um equívoco 
fatal, segundo o professor João Wanderley Geraldi, do Departamento de Lingüística 
do IEL (Instituto de Estudos da Linguagem) da Unicamp e presidente da Comissão 
Organizadora do 13o Cole. O mundo ocidental, com sua herança greco-judaica 
sempre projetou um ideal da beleza e felicidade humana e a partir deste projeto 
começou a trabalhar por este ideal, numa luta diária e contínua 
para transformar o real no ideal. Já os índios em lugar de projetar 
um ideal, olham para sua tradição, mitos e histórias do cotidiano 
e a vida cotidiana flui segundo a natureza, explica. Esta 
é a diferença entre educação de índios e não 
índios segundo a análise do professor. A escola branca não 
opera no seu mundo, mas numa idealização de mundo que quer construir 
e sobre o qual não pensa. A escola não é um espaço 
para a construção do homem ideal do futuro, mas o local de preservação 
daquilo que ele cultua, argumenta. A escrita, segundo o professor, não 
merece ser incorporada pelos índios a não ser que seja para produzir 
felicidade. 
 
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  O 
que mais interessa em meu trabalho é que constatei que a história 
e o tempo eram neutralizados através do discurso. Ou seja, a experiência 
da história para os wapixana era uma experiência de linguagem. E 
havia para eles um corte fenomenológico fundamental, que é o tempo 
dos vivos, que é um tempo da materialidade dos corpos, e o tempo dos mortos, 
o passado, que é exatamente o oposto. Ele só existe no discurso. ------------------------------------------------------- Acho 
que os sistemas o dos índios e o oficial  são paralelos 
e devem permanecer paralelos, ou seja, a transmissão oral desse conhecimento 
histórico existe, é dinâmica, atuante e eficiente. Proponho 
um regime de não-intervenção do discurso oficial, desde que 
isso continue, que não se tente trazer isso para escola, porque seria a 
morte do sistema. E a escola, me parece, é um espaço de tradução, 
ela deve tentar construir o dispositivo de tradução de saberes alheios, 
de outras histórias. Ou seja: uma criança indígena tem que 
ir à escola para aprender a história dos outros. Não a própria 
história, porque para essa existem mecanismos no próprio sistema 
cultural de reprodução desse saber histórico. -----------------------------------------------------  A 
língua é um sinal diacrítico possível de uma cultura. 
É claro que existe todo um histórico de línguas que desapareceram. 
Quanto ao desaparecimento de culturas, o que defendo, assim como a teoria antropológica 
contemporânea  pelo menos desde os anos 70 -, é que o extermínio 
de uma cultura só ocorre com o extermínio físico de uma população. 
A cultura não é um conjunto de dados que podem ser dilapidados, 
mas um esquema de significação dinâmica. Não acredito 
em perda cultural, mas acredito em confrontos. E esses confrontos são de 
ordem política.
 ------------------------------------------------------- Quanto 
mais se fala em globalização, mais você tem a multiplicação 
de perspectivas locais ou mesmo de protestos locais. Não partilho de um 
visão pessimista de que o capitalismo é uma máquina que vai 
obter homogeneização. Sim, o capitalismo é uma máquina, 
tem impulso homogeneizador, mas que ele consiga isso politicamente é outra 
história. Há trabalhos que mostram que o capitalismo também 
depende de inflexões locais. Não acho que o global prescinda disso. -------------------------------------------------------  Com 
muito esforço, os povos indígenas estão conseguindo visibilidade, 
fora do painel do exotismo, como cidadãos pertencentes a minorias que têm 
direitos específicos. Precisamos pensar hoje mais no campo indigenista 
do que no indígena. O campo indigenista corre o risco do populismo, sobretudo 
depois da Constituição de 1988. Acho que aí tem um marco 
que precisa ser motivo de reflexão crítica. No caso da escola, acho 
que isso é bastante candente. 
 
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