A extinção dos bondes em Campinas significou mais do que o fim de um sistema de transporte coletivo. Representou também o declínio de uma temporalidade, o que acarretou mudanças na percepção do tempo e do espaço urbano e em formas de viver da população. Estes e outros aspectos são tratados na tese de doutoramento intitulada “Trilhos de Modernidade: memórias e educação urbana dos sentidos”, apresentada por Maria Sílvia Duarte Hadler à Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, sob a orientação da professora Maria Carolina Bovério Galzerani. No trabalho, que tem como pano de fundo a relação entre modernidade e memória, ela resgata o trajeto histórico-cultural cumprido pelos veículos. E constata: os bondes foram, em períodos distintos, símbolos do progresso capitalista e da obsolescência.
O estudo de Maria Sílvia não trata propriamente da história do transporte, mas sim de cultura urbana. Os bondes, segundo ela, assumiram com o passar dos anos a condição de objeto cultural em relação ao espaço urbano. Embora tenha analisado a importância dos veículos também em outras cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, a pesquisadora concentrou sua investigação em Campinas. Além do suporte bibliográfico, Maria Silvia valeu-se de registros de jornais e de depoimentos de pessoas que conviveram com os bondes. As narrativas, afirma, revelaram-se freqüentemente afetuosas, romantizadas ou idealizadas.
Mas antes de tratar especificamente da importância do bonde como elemento cultural, faz-se necessário um breve registro histórico. O meio de transporte foi implantado em Campinas no final da década de 1870. À época, os veículos eram puxados por animais. Entretanto, já se constituíam em expressão de modernidade. Em 1912, esse caráter foi reafirmado com a implantação da tração elétrica. “De fato, os bondes se transformaram em ícones do progresso em várias localidades. São Paulo, Rio de Janeiro e Santos viveram essa mesma experiência em períodos mais ou menos próximos”, relata Maria Silvia.
Em Campinas, prossegue a pesquisadora, o bonde participou do que ela classifica de formas de sociabilidade, fazendo parte da construção sócio-cultural do espaço urbano. Para que pudessem utilizar o meio de transporte, as pessoas precisavam cumprir determinadas regras. “Mas isso também contribuiu com os processos sutis de exclusão social em curso. Uma das normas, por exemplo, determinava que os passageiros não podiam embarcar nos carros se estivessem descalços”, lembra.
Ademais, conforme Maria Silvia, o meio de transporte também serviu de instrumento para a educação dos sentidos da população. O trajeto das linhas, lembra, priorizava bairros e logradouros que emitiam sinais de modernidade. Assim, era comum que os carros passassem diante de locais freqüentados pela elite campineira, como determinadas lojas, o Teatro Municipal e o Jardim Público [o atual Centro de Convivência Cultural]. Ao circular pelas ruas da cidade, sobretudo por seus referenciais considerados modernos, contribuíam para que fossem reiterados, cotidianamente, valores estéticos e sócio-culturais ligados a uma visão de progresso fundada em concepções liberais, positivistas e mesmo românticas vigentes.
Essa associação do bonde com a modernidade perdurou até o início da década de 1930, quando uma nova temporalidade começou a surgir, esta determinada por um ritmo de vida mais acelerado. Nos anos subseqüentes, a cidade começou a experimentar novas situações. Um aspecto que contribuiu para essa transformação foi o Plano de Melhoramentos Urbanos idealizado pelo engenheiro Prestes Maia. Na seqüência, nas décadas de 1950 e 1960, ocorre a descaracterização das antigas referências urbanas e tem início o processo de verticalização do Centro. “Dentro dessa nova ordem, o papel do bonde é redefinido. O que era símbolo de modernidade passa a ser encarado como um entrave ao progresso”, explica Maria Silvia.
Por conta dessa nova forma de sensibilidade urbana, devidamente reforçada pelo lobby da empresa de ônibus que viria a assumir o serviço de transporte coletivo com exclusividade, a extinção do bonde tornou-se inevitável. Em 24 de maio de 1968, o meio de transporte circulou pela última vez. A despedida, destaca Maria Silvia, ganhou ares de festa. Por determinação das autoridades, não se cobrou tarifa dos usuários naquela data. A Banda de Música Carlos Gomes executou diversas obras ao longo do dia. À noite, um grupo de seresteiros participou da derradeira viagem. Em cada parada, uma seleção de canções da época. Toda a cerimônia foi devidamente transmitida pela Rádio Educadora, tendo no comando o radialista Lombardi Neto, que 29 anos depois declararia ao jornal A Tribuna que “jamais vou esquecer aquele dia”.
Reminiscências Na pesquisa que fez em jornais e nos depoimentos que colheu para a tese, Maria Silvia apurou que as pessoas tendem a evocar o tempo dos bondes sempre com nostalgia e idealização. “Para elas, a imagem do bonde está freqüentemente associada à alegria, diversão e tranqüilidade. Como a cidade cresceu desordenadamente e a violência aumentou muito, aquela época passou a ser encarada com certa mística, sem que desperte uma visão crítica da situação passada. A sensação de perda está embutida em praticamente todas as falas”, assinala.
Para ilustrar esse sentimento generalizado, segue trecho de crônica assinada pelo jornalista Moacyr Castro, publicada em maio de 1998 no jornal Correio Popular, tratando da extinção dos bondes: “Fiquei com raiva e não atendi ao convite da Educadora, do Diário do Povo e da Casa Lord. Um absurdo. Para mim, aquela ‘festa espetacular’ que o Lombardi Neto prenunciava na ‘Hora do Trabalhador’, às sete da manhã, era, na verdade, um funeral. Foi um ‘ano de chumbo’, mesmo, aquele 1968. Onde já se viu fazer festa para a despedida dos bondes?”. E o texto termina assim: “Partiram e levaram com eles um pedaço da alma da cidade. Puts! Como era bom viver em Campinas!
Das ruas à poesia
A palavra bonde está incorporada ao cotidiano das pessoas. Quem nunca empregou a expressão “perder o bonde da história”? Ou não a utilizou como sinônimo de algo superado, como na frase “aquela pessoa é um bonde”? Além disso, o veículo também está presente nas manifestações artísticas. Um exemplo é o conhecido “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade. Nele, o bonde é assume a condição de elemento poético:
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres
A tarde talvez fosse azul
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas
Para que tanta perna, meu Deus,
pergunta meu coração
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte
Quase não conversa
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo
mais vasto é meu coração
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.