O acervo do AEL
sobre a Anistia e uma data a ser (sempre) lembrada
Arquivo, que participa de eventos a
propósito dos 30 anos da Anistia,
guarda milhares de documentos relacionados à
resistência à ditadura
LUIZ SUGIMOTO
Depositário
de um dos maiores acervos sobre a história social,
política e cultural do Brasil republicano, o Arquivo
Edgard Leuenroth (AEL), do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH) da Unicamp, vai participar de vários
eventos relativos aos 30 anos da Lei da Anistia - assinada
em 28 de agosto de 1979. Entre os dias 11 e 15 de maio acontece
o seminário internacional "A luta pela Anistia:
30 anos", uma iniciativa do Arquivo Público
do Estado de São Paulo, Pinacoteca do Estado e Associação
de Amigos do Arquivo, com a colaboração do
AEL.
O evento está marcado para o auditório da
Estação Pinacoteca, antiga sede do Departamento
de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP),
órgão da repressão política
no Brasil, e que hoje abriga o Memorial da Resistência.
Na pauta, temas que alimentam a polêmica dos dias
de hoje em torno da revisão da Lei da Anistia, como
a punição aos torturadores, as reparações
aos anistiados políticos, a abertura dos arquivos
da repressão e o acesso às suas informações,
que esbarram em leis de sigilo e classificação
de documentos.
O seminário internacional também abrangerá
aspectos menos explorados no debate público, como
a história da campanha da anistia, a experiência
dos países latino-americanos e a participação
das mulheres no processo de democratização.
Ainda será aberta uma exposição itinerante,
que virá para a Unicamp em data a ser definida. O
AEL, por seu lado, levará ao encontro uma exposição
virtual contendo parte da documentação e das
imagens relacionadas à Anistia, e também lançará
a edição dos Cadernos AEL "Anistia e
Direitos Humanos", organizada pelos professores Sergio
Silvia e Maria Lygia Quartim de Moraes.
Segundo
a diretora técnica Elaine Marques Zanatta, os arquivos
diretamente ligados ao tema Anistia entraram para o Arquivo
Edgard Leuenroth a partir da década de 1980, durante
as gestões dos professores Marco Aurélio Garcia
(hoje assessor especial da Presidência da República)
e Cláudio Henrique de Moraes Batalha, ambos do Departamento
de História. "São fundos e coleções
que integram o conjunto temático do acervo relacionado
à história política brasileira recente.
A coleção Brasil Nunca Mais, por exemplo,
é formada por processos que nos revelam a violência
dos órgãos de repressão, os horrores
do ambiente prisional e o sofrimento de familiares e amigos
dos presos políticos".
O projeto Brasil Nunca Mais foi idealizado por dom Evaristo
Arns, então cardeal arcebispo de São Paulo,
e pelo reverendo Jaime Wrigth, pastor da Igreja Presbiteriana,
que doaram a documentação ao AEL em 1987.
"A partir desta coleção, ampliamos o
interesse de militantes subordinados à tortura ou
ao exílio (ainda que 'voluntário') e de testemunhas
deste período histórico em doar seus documentos
com a mesma temática. Todos tiveram a Anistia como
bandeira comum", lembra Elaine Zanatta.
Maria
Dutra de Lima, historiadora e técnica da Seção
de Pesquisa, informa que em 2008 o AEL foi fonte para uma
média de 200 pesquisadores por mês, sendo o
Brasil Nunca Mais o acervo mais pesquisado dos últimos
anos. "A coleção traz 706 processos completos
(e dezenas de outros incompletos) do Superior Tribunal Militar
e do Supremo Tribunal Federal. Entretanto, os documentos
mais consultados são os Anexos - cerca de dez mil
bilhetes, cartas, panfletos, manuais de guerrilha, relatórios
de reuniões, etc., apreendidos de militantes ou em
aparelhos e anexados aos processos como 'provas de subversão'".
Outro acervo diretamente ligado ao tema da Anistia, de
acordo com Maria Dutra, é o fundo do Comitê
Brasileiro pela Anistia, doado pelo CBA do Rio de Janeiro
em 1990. Fundado em 1978, por iniciativa do Movimento Feminino
pela Anistia, o CBA veio congregar diversas entidades e
personalidades na luta contra o regime de exceção.
São dois metros lineares de documentação
sobre atividades de divulgação e apoio aos
presos políticos e familiares, além de biografias,
depoimentos, registros das famílias, histórico
da repressão e informações sobre o
regime carcerário.
Gravações
e cartas - Maria Dutra acrescenta que outros acervos
do AEL embutem a questão da Anistia, a exemplo do
conjunto de 159 fitas cassetes contendo entrevistas com
militantes da luta armada, líderes estudantis e exilados
políticos. As entrevistas realizadas pelos pesquisadores
Marcelo Ridenti, Denise Rollemberg e Jean Rodrigues Sales
- reunidas na Coleção Militância Política
e Luta Armada no Brasil - versam sobre guerrilhas urbana
e rural, prisões, funcionamento das organizações
de esquerda, tortura, exílio político e treinamento
em Cuba.
Também estão no AEL cartas trocadas entre
Jessie Jane e o marido Colombo Vieira de Souza nos nove
anos em que estiveram presos, sob torturas, ela no presídio
de Bangu e ele no presídio da Ilha Grande. Militantes
da Aliança Libertadora Nacional (ALN), ambos foram
presos na ação de sequestro de um Caravelle
no aeroporto do Galeão. Em uma foto propositadamente
desfocada, por exemplo, Jessie Jane e Colombo aparecem atrás
das grades com a filha Leta: trata-se de um cartão
postal endereçado ao general Ernesto Geisel, que
traz no verso dizeres em alemão e português
exigindo a libertação do casal.
Em 1994, a família de Luiz Carlos Prestes doou ao
AEL uma documentação que estava parte no Rio
de Janeiro e parte em Moscou, predominantemente do período
de exílio do "Cavaleiro da Esperança",
de 1963 a 1981. São manuscritos, jornais e revistas,
registros impressos de atividades às quais Prestes
compareceu e documentos de divulgação do Brasil
no exterior e de campanhas pró-direitos humanos.
O
AEL guarda o acervo de Duarte Pacheco Pereira, baiano que
foi vice-presidente da UNE, professor universitário
e jornalista, e que figura entre os fundadores da Ação
Popular (AP). Em 2001, ele doou uma documentação
relativa a organizações de esquerda e a movimentos
sociais que acumulou na militância - principalmente
a mais recente, pois grande parte do material do período
de sua clandestinidade foi perdida.
O fundo Voz da Unidade foi deixado sob custódia
do AEL em 1992, pelo Partido Popular Socialista (PPS), como
parte de um programa de preservação da memória
do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ele é composto
em sua grande maioria por imagens fotográficas (16.445)
publicadas no jornal Voz da Unidade, que circulou de 1980
a 1991.
Mais duas coleções oferecem informações
sobre a Anistia. Uma delas é de Gilberto Mathias,
ativista do Partido Operário Comunista (POC) que
entrou jovem na clandestinidade e seguiu em 1969 para Paris,
onde viveu até a morte; os documentos que reuniu
são de organizações de esquerda que
se estabeleceram e funcionaram de forma dispersa no exterior.
Já a coleção dos Movimentos Sociais
Recentes, organizada e doada pelo Centro Pastoral Vergueiro
(CPV), contém documentos de entidades ligadas a movimentos
sociais a partir da década de 1980.
Guia de Fontes - Na opinião de Elaine Zanatta,
com os 30 anos da Lei da Anistia, está havendo interesse
maior dos pesquisadores pelo tema. A propósito, ela
adianta que será lançado em breve um Guia
de Fontes sobre a documentação existente em
instituições arquivísticas paulistas,
a saber: Arquivo do Estado de São Paulo, Arquivo
Edgard Leuenroth (AEL) da Unicamp, Centro de Documentação
e Informação Científica (Cedic) da
PUC de São Paulo, Centro de Memória e Documentação
(Cedem) da Unesp e Centro de Documentação
e Pesquisa Vergueiro (CPV).
Os meandros jurídicos
e a vontade política
Advogada,
cientista social e professora das disciplinas de direitos
humanos, política e processo civil, Larissa Brisola
Brito Prado defendeu a dissertação de mestrado
"Estado democrático e políticas de reparação
no Brasil: torturas, desaparecimentos e mortes no regime
militar" no Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH) da Unicamp, sob orientação
do professor Eliézer Rizzo de Oliveira. Para sua
pesquisa, a autora trabalhou por várias semanas na
coleção Brasil Nunca Mais e também
acessou o material de movimentos populares pela Anistia.
Na entrevista que segue, Larissa Prado comenta aspectos
jurídicos e políticos que envolveriam uma
possível revisão da Lei da Anistia; e também
sobre a importância da Lei 9.140/95, através
da qual o Estado reconhece sua responsabilidade pelos desaparecimentos
e mortes ocorridos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto
de 1979, em dependências policiais ou assemelhadas,
além de estabelecer indenização a parentes
e cônjuges daquelas pessoas.
Jornal da Unicamp - A punição aos
torturadores e a abertura dos arquivos da repressão
estão no centro dos debates atuais sobre a Lei da
Anistia. Poderia discorrer um pouco sobre a importância
de se avançar nessas duas questões?
Larissa Brisola Brito Prado - Realmente, a matéria
ainda está muito presente na pauta dos movimentos
sociais. Contudo, é necessário analisar não
apenas a possibilidade jurídica de que tais fatos
ocorram, como também a viabilidade política.
Do ponto de vista criminal, a anistia realmente é
uma forma de extinção da punibilidade, elencada
no artigo 107 do Código Penal. Ou seja, ela teria
o condão de apagar a figura criminosa e, se entendermos
que os militares foram agraciados por tal instrumento, certamente
não haveria mais como pensarmos em uma punição
nos dias de hoje.
Porém, uma questão que eu acho relevante -
e sobre isso discorri em minha dissertação
- é a impossibilidade jurídica de entendermos
o caráter recíproco da anistia, de modo a
beneficiar os militares. Tal fato não poderia ter
ocorrido, simplesmente porque, do ponto de vista legal,
não haveria a possibilidade de enquadrar suas condutas
como um "crime conexo". Portanto, a interpretação
dada ao caso foi política - e não jurídica.
Assim, se pensarmos simplesmente do ponto de vista técnico-jurídico,
os militares não poderiam ter sido "anistiados",
porque não praticaram crime conexo, e sim, autônomo.
Se isso tudo é verdade, não menos certo é
o seguinte: pensar em uma punição dos militares
nos dias de hoje se mostra muito difícil. Primeiro,
porque as instituições políticas já
aceitaram a interpretação dada à Lei
de Anistia, no sentido de incluir os militares como beneficiários;
segundo, porque a discussão desembocaria na questão
da prescrição penal, que também extingue
a punibilidade do Estado; terceiro, porque tal fato poderia
acarretar uma crise institucional bastante difícil
de contornar.
No que se refere à abertura de arquivos, porém,
não vejo qualquer obstáculo. Juridicamente,
seria perfeitamente possível e, historicamente, é
uma reivindicação importante e perfeitamente
compreensível. A questão que se coloca, porém,
é: se forem abertos os arquivos, nomes de envolvidos
serão divulgados. Como a sociedade poderia lidar
com a impossibilidade de punição destas pessoas?
Todavia, no que se refere à busca da história
de seus antepassados, entendo que tal polêmica seja
pertinente e cabível.
JU - Em sua opinião, que outras reparações
aos anistiados, além das determinadas pela Lei 9.140,
fazem parte ou deveriam entrar na pauta de discussões?
Larissa Brisola Brito Prado - Havendo um crime, há
repercussão na esfera cível. Ou seja, considerando
que o crime é um dano, mostra-se possível
a indenização moral. Foi disto que cuidou
a lei 9140/95. A amplitude da lei, porém, foi maior.
Além de significar um instrumento jurídico,
ela teve grande importância política, pois
houve o expresso reconhecimento do Estado da sua responsabilidade
pelas mortes e desaparecimentos naquela época. Assim,
creio que a lei, sob este aspecto, teve um importante papel.
Contudo, algumas questões ainda me parecem possíveis
e pertinentes dentro da temática. A primeira delas
é a abertura de arquivos de modo irrestrito. Uma
vez que retornamos à democracia, creio que as vítimas
e os familiares envolvidos com a repressão têm
direito de conhecer este passado. A segunda seria a busca
das ossadas na região do Araguaia e o efetivo empenho
político no sentido de sua identificação.
Além disso, outras pessoas que sustentam terem possuído
outros danos, como perseguições, perda de
empregos, etc. poderiam buscar uma indenização
material ou ingressar com um requerimento na Comissão
de Anistia do Ministério da Justiça, fazendo
tal pedido.
JU - No final de 2008, o Tribunal de Justiça de
São Paulo declarou o coronel Carlos Alberto Ustra
culpado pelas torturas de Amelinha Teles, seu marido e sua
irmã. Qual a importância desta decisão?
Larissa Brisola Brito Prado - Esta ação
judicial teve natureza declaratória. Buscava-se o
reconhecimento de que o coronel Ustra foi responsável
por torturas. Os efeitos de uma sentença favorável
são políticos e históricos, de modo
a incentivar que outras pessoas façam o mesmo. Afinal,
já que o Estado [Poder Executivo] reluta em permitir
a abertura de arquivos que demonstrem as verdades históricas,
cabe aos interessados buscarem uma manifestação
de reconhecimento por meio do Poder Judiciário.
De certa forma, esta decisão, assim como aquela da
juíza do TRF da 1ª região - que determina
o dever do Estado em buscar e identificar as ossadas na
região do Araguaia) -, demonstram um amadurecimento
da nossa democracia.
JU - Li que a Corte Interamericana de Recursos Humanos
anulou as leis de anistia de países como Chile, Argentina
e Peru. Isto é correto? O caso do Brasil poderia
chegar a tal instância e o país tenderia a
acatar decisão semelhante?
Larissa Brisola Brito Prado - Não houve uma
"anulação" porque a Corte não
possui este papel. Na verdade, hoje há uma grande
discussão, no âmbito do Direito Internacional,
quanto à obrigatoriedade ou não de cumprimento
das decisões deste organismo. Isso porque qualquer
determinação da Corte esbarra na soberania
do país. Enfim, se não houver vontade política
interna e comprometimento, as decisões serão
realmente "descumpridas" (coloco entre aspas,
pois não há mecanismo coercitivo para exigir
o cumprimento).
A Corte e a Comissão Interamericana são dois
órgãos distintos da OEA, instituídos
pelo Pacto de San Jose da Costa Rica (Convenção
Americana de Direitos Humanos), mas só passam a ter
validade a partir do momento em que o país ratifica
internamente. No caso da Comissão, houve ratificação
pelo Brasil em 1992 e, no caso da Corte, só em 1998.
Dessa forma, sustenta-se que tais órgãos não
tenham competência para julgar situações
consolidadas entre os anos de 1964 e 1985. Sua competência
seria instituída apenas da ratificação
em diante.
Uma interpretação interessante, porém,
foi a concedida pela Corte no caso Blake - Equador, se não
me engano. Também era um caso de desaparecimento
forçado, acho que na década de 70. Naquele
momento, o país ainda não havia ratificado
a competência do Corte, mas esta entendeu possível
julgar a questão - isso já na década
de 90 - porque o desaparecimento forçado é
um delito permanente e, sendo assim, até hoje não
haveria se consumado. Então, a Corte poderia julgar.
No caso do Brasil, para que seus casos fossem julgados pela
Corte, inicialmente, ela teria que ser provocada. Posteriormente,
teríamos que analisar se, nos casos concretos, a
interpretação para os desaparecimentos seria
a mesma. Por fim - e talvez este seja o maior problema -,
ainda que a Corte concedesse uma sentença favorável,
esbarraríamos na questão da obrigatoriedade
de cumprimento de suas decisões.
Revisão da lei causa polêmica
A Lei 6.683, sancionada pelo presidente Figueiredo em 28
de agosto de 1979, depois de aprovada por apenas cinco votos
no Congresso Nacional (206 a 201), anistiou todos os punidos
por atos de exceção desde 9 de abril de 1964,
quando foi editado o AI-1. Entretanto, a lei excluiu os
condenados por atos terroristas (os chamados "crimes
de sangue"), ao tempo em que beneficiou os militares
acusados de práticas de tortura.
A polêmica atual sobre uma possível revisão
da Lei da Anistia vem contrapondo entidades como a Advocacia-Geral
da União (AGU) e a Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB). A AGU alega que a lei é anterior à
Constituição (1988) e, por isso, o artigo
constitucional que veda a anistia a torturadores não
valeria para crimes cometidos antes da sua promulgação.
A OAB, por sua vez, entende que a lei não isenta
os militares de crimes, observando que o Brasil é
signatário da Convenção Interamericana
de Direitos Humanos e da Convenção contra
a Tortura da ONU, que consideram a tortura como crime comum
(não anistiável) e imprescritível.
Em outubro do ano passado, numa decisão inédita,
o Tribunal de Justiça de São Paulo declarou
o coronel de reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra responsável
pelas torturas de Maria Amélia de Almeida Teles,
de seu marido César Augusto Teles e de sua irmã
Criméia Schmidt de Almeida, em dezembro de 1972.
Ustra comandou o Destacamento de Operações
de Informações do Centro de Operações
de Defesa Interna (DOI-Codi) de 1970 a 1974. A família
ingressou com ação civil declaratória,
sem propósito indenizatório, exigindo apenas
que o coronel fosse reconhecido como torturador.