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Um sertanejo na
sala de concerto

MARIA ALICE DA CRUZ

Com traje de músico concertista, o ex-violinista sobe ao palco empunhando um novo instrumento. Acomoda-se e começa a executar com uma técnica diferente nas mãos e com interpretação ímpar sua viola caipira. Foi assim, pronto para um grande concerto, que Renato Andrade (1932-2005), instrumentista que surgiu na década de 1970, tirou a viola caipira do acompanhamento dando a ela interpretações de solos instrumentais. “Já no primeiro LP, Fantástica Viola de Renato Andrade, disco inteiramente instrumental, ele consegue desenvolver uma técnica de execução na qual demonstra muita habilidade com passagens virtuosísticas, muito rápidas, chegando a usar mais dedos no dedilhar da viola”, ilustra o compositor e também instrumentista Vinícius Muniz, autor da dissertação Entre o Sertão e a Sala de Concerto: um estudo da obra de Renato Andrade, desenvolvida no Instituto de Artes (IA) da Unicamp, sob orientação do professor José Roberto Zan.

Instrumentista que prova do sabor de fazer solos de viola, Muniz diz que um ponto curioso na análise das músicas de Renato Andrade está no jeito diferente que ele encontrou de tocar viola, quando comparado a Tião Carreiro ou Heraldo do Monte, ou a todo vasto repertório da música sertaneja. Muniz explica que, na década de 1970, a viola era tocada, quase sempre, usando somente com dois dedos na mão direita, mas Renato passa a usar pelo menos quatro ao dedilhar as cordas do instrumento. “Uma técnica que se aproxima da técnica do violão erudito, mas aplicada à viola caipira”, explica Muniz. Segundo o pesquisador, foi difícil encontrar indícios ou gravações de repertório semelhante. No formato escolhido para suas composições, a viola está sempre em evidência, sendo acompanhada por um violão.

Mesmo sendo uma diferença perceptível ao bom ouvinte de viola, faltava uma análise musical aprofundada de suas músicas a fim de entender melhor a técnica utilizada pelo compositor para executar suas músicas, assim como a maneira como construía o solo de viola. Horas quase intermináveis, mas prazerosas, de audição aproximaram Muniz das nuances da música de Renato Andrade e o fizeram constatar a qualidade ímpar de suas peças, geradas somente na viola. “Ele não escrevia partituras, compunha diretamente na viola”, explica Muniz. Sendo assim, para estudá-las, o pesquisador teve de transcrevê-las. Aliás, é comum entre os violeiros, pela falta de acervo de partituras, ouvir criteriosamente uma peça antes de executá-la, segundo o musicista.

A observação de vídeos permitiu a Muniz aprofundar sobre os desdobramentos que a maneira peculiar de Andrade compor poderia fazer referência ao mundo erudito, da música caipira e dos toques de viola. O autor acredita que o universo cultural do compositor em Abaeté, quase região central do estado de Minas Gerais, tenha influenciado o interesse por outras cordas que não a de um violino. Gêneros musicais como as folias de reis, lundu, quatragem, folia do divino, congada, cururu e a própria manifestação forte da viola caipira na região foram fundamentais na concepção musical de Renato Andrade.

Tão curiosa quanto sua técnica foi a forma curiosa como surgiu no cenário da música brasileira. A trajetória, observada pelo pesquisador a partir de vídeos guardados por amigos e fãs do compositor, começa como ator coadjuvante no filme do cineasta Schubert Magalhães intitulado O homem do corpo fechado, no qual ele fazia um violeiro. Mais tarde, a música, que constituiu a trilha da produção, converteu-se em uma das faixas de um de seus discos. Ao mudar para o Rio de Janeiro para finalizar as gravações, Andrade conheceu alguns compositores da música erudita brasileira, entre eles Edino Krieger, Francisco Mignone e Guerra-Peixe. “Eram compositores de grande destaque naquele momento. E Renato acaba tendo um estreito laço com eles”, acrescenta Muniz. É nessa época que surge A Fantástica Viola de Renato Andrade e, a partir dele, uma produção que parecia não acabar, a não ser por sua morte em 2005. Suas composições e interpretações renderam mais cinco discos (1979, 1984, 1987, 1999 e 2002).

Mas a erudição não ficou somente na fina estampa usada nas apresentações: entre um acorde e outro é possível ouvir trechos de Canzonetta, de Tchaikovsky, Für Elise, de Beethoven, além de pedacinhos de Paganini.

Além disso, a música não era a única manifestação artística de Andrade. Como bom mineiro e ainda por cima com pé nas artes cênicas, causos de sua própria criação conduzem um personagem presente em concertos e ilustram os encartes de suas gravações. Ator e instrumentista se encontram e trazem um espetáculo enriquecido com textos literários em que lembra grandes literatos, entre eles Guimarães Rosa.

Sempre com uma instigação à curiosidade, um dos causos versava sobre um pacto com o diabo para tocar viola melhor. “Renato criou um personagem em cima do palco. O mais curioso é que ele tratava a música e os textos como elemento único. O solo interrompido geralmente tinha ligação com a história a ser contada”, segundo Muniz.

Muniz acrescenta que a viola caipira sempre ocupou espaço na música popular e principalmente na música caipira, mas Renato Andrade e Tião Carreiro encontraram a maneira de usar o instrumento para criar música instrumental, apesar de terem origens diferentes, segundo o orientador. “Tião vem da música caipira, Norte de Minas, Montes Claros. E é popular. Os dois eram reconhecidos por faixas de público diferentes”, explica Zan.

Na opinião de Muniz, Renato Andrade e Tião Carreiro abriram caminho para que a viola ganhasse notoriedade pelas mãos de alguns violeiros de décadas posteriores à sua, como Paulo Freire, Ivan Vilela, Almir Sater, Tavinho Moura, Roberto Corrêa, e tantos que levaram a viola para além do campo. Inclusive o trabalho de Tião Carreiro foi reconhecido por esses violeiros pela qualidade. Recentemente, Carreiro foi tema da tese defendida na Unicamp pelo músico e professor João Paulo Amaral.

De acordo com o orientador da dissertação, José Roberto Zan, hoje existe um número considerável de violeiros instrumentistas, alguns até graduados em música, como Ivan Vilela, mas Andrade foi quase um pioneiro na década de 1970. Os músicos da década de 1980 e 1990 já tinham uma formação musical mais formal, dentro dos moldes da academia, dos conservatórios e, num determinado momento, abandonaram seus instrumentos e passaram a se dedicar à viola caipira, conforme o professor. “Na década de 1980, Paulo Freire, que era violonista, estudou na França e depois se enveredou para a viola caipira”, acrescenta Zan.

Mesmo sendo divulgada por tantos nomes, a viola demorou a entrar na academia, na opinião de Muniz. “Ela levou muito tempo para ocupar espaço dentro dos estudos de música nas universidades. Somente recentemente se criou o curso de música caipira na USP, com Ivan Vilela como professor, e agora na Faculdade Cantareira, com João Paulo Amaral”, informa o compositor. Para ele, João Paulo Amaral, que dedicou sua tese à obra de Tião Carreiro, é um bom exemplo de como a viola se insere na academia. “Agora que está na academia, onde pode passar por formalização das técnicas dos procedimentos de composição e execução, é fundamental que ocorram mais pesquisas”, pontua Muniz. Para ele, os trabalhos dedicados a Renato Andrade e Tião Carreiro já são um passo importante para que outros músicos entendam a técnica de execução e a mecânica das mãos desses violeiros.

Zan lembra que antes de despontarem na academia, os estudos sobre viola foram desenvolvidos por folcloristas, entre eles Alceu Maynard Araújo, Rossini Tavares de Lima e Mário de Andrade, mas o diferencial dos trabalhos acadêmicos atuais é o olhar de instrumentistas sobre a obra desses compositores e intérpretes de viola caipira. “Autores como o Vinícius fazem um estudo musicológico. Rossini talvez tenha feito um estudo mais bem acabado, assim como Alceu Maynard, mas com o olhar de folclorista”, explica.

Um aspecto importante da pesquisa de Muniz destacada por Zan é que Renato Andrade surge num momento em que a viola ganha novos sentidos, passando a circular em outro segmento da música gravada mais ligado à MPB. Ele lembra que na década de 1960, com o ideário nacional popular que mobilizou artistas de várias modalidades – poetas, cinema teatro música –, a viola começa a fazer parte de trilhas do cinema novo. Geraldo Vandré foi um dos cantores engajados nessa proposta, a ponto de vencer o festival de 1966 com a música Disparada, em que explorava a viola como acompanhamento.

Neste cenário, surge Heraldo do Monte, que, ao lado de Hermeto Paschoal, Théo de Barros e Airton Moreira, monta o Quarteto Novo, com um som agreste, rural e com elementos jazzísticos, de acordo com o orientador. “E Heraldo passou a tocar viola, mas com característica peculiar, afinada como guitarra e violão. Ele explorava o timbre do instrumento, mas não era viola caipira rigorosamente”, acrescenta Zan. Ao final dos anos 1960, também surge o Quinteto Armorial, ligado ao movimento de mesmo nome, em que a viola aparece na formação. Segundo Zan, foram momentos de popularização da viola, mas ligada à música sertaneja, à moda de viola, que era segmento importante no mercado.

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■ Publicação

Dissertação: “Entre o sertão e a sala de concerto: um estudo da obra de Renato Andrade” Autor: Vinícius Muniz Pereira
Orientação: José Roberto Zan
Unidade: Instituto de Artes (IA)

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