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Requalificação das redes de infraestrutura
no Brasil: um debate de mais de um século

Por: Cristina de Campos

Um dos desafios atuais enfrentados pelo Brasil neste início de século XXI é o de readequar e estender suas redes de infraestrutura territoriais e urbanas para que ofereçam suporte ao crescimento do país. Dentro desta perspectiva, o país necessita repensar seus sistemas de comunicação, transportes, estradas, sistemas de saneamento, dentre outras tarefas. As tarefas incluem, se tomarmos aqui o exemplo do setor de transportes, a de ampliação/criação de novos terminais (hidrovia/aéreo/portuário) e estradas (ferrovias, rodovias, hidrovias). Há mais de um século, este mesmo tema da requalificação das infraestruturas estava presente na agenda do governo brasileiro, contudo, dentro de um contexto social e político distinto do atual.

O país tinha passado por mudanças substanciais. O trabalho escravo havia sido abolido e o trabalhador livre imigrante era introduzido cada vez mais intensamente nos setores produtivos da economia agroexportadora; a monarquia foi substituída pela República federativa, marcada pela autonomia política e financeira das antigas províncias, transformadas em estados autônomos. Sob a República, o país tentava, gradualmente, afastar os tempos da colônia e consolidar-se junto ao mercado internacional como exportador.

Vários problemas deveriam ser encarados de frente, sobretudo no estado de São Paulo, onde concentrava-se a produção cafeeira do período. Entre estes problemas, destacamos resolução da questão dos transportes (abertura de novas estradas) para o escoamento da produção; enfrentamento do quadro sanitário agravado pelas epidemias; adaptação das cidades para sua nova função enquanto centro de apoio às atividades cafeeiras; construção de novas redes de abastecimento de água potável e esgotamento sanitário para as principais cidades; definir as fronteiras do estado; modernizar seu porto exportador; e, não menos importante, criar um aparato capaz de gerenciar todas estas novas atividades.

Como estes problemas foram enfrentados? O governo do estado de São Paulo, favorecido pela descentralização política, contava com os recursos gerados pelas exportações, o que possibilitou o direcionamento desta massa de dinheiro para o financiamento de obras, criação de instituições e a contratação de técnicos especializados para encontrarem a resolução destes problemas.

A criação de novas instituições e a introdução de novas tecnologias interessam, sem dúvida, aos estudos desenvolvidos no âmbito do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp nas áreas de Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia e de História das Ciências, pois neste período a ciência e a tecnologia eram valorizadas e vistas como fundamentais para que o estado levasse a frente este seu ambicioso plano. Somado aos montantes de recursos disponíveis, havia também uma habilidosa articulação política realizada pela elite, que manobrava a favor de seus interesses de classe, como bem ilustra o caso da crise dos transportes da década de 1890.

No início da década de 1890, as estradas de ferro eram incapazes de escoar o grande volume de produção até o porto de Santos. A situação era mais delicada quando as composições alcançavam o “gargalo”, ou seja, quando o fluxo vindo das Companhias Paulista, Mogiana e Sorocabana chegava até as linhas da The São Paulo Railway Company (SPR), em Jundiaí. A “inglesa” mantinha o monopólio da descida ao litoral e contava, desde a sua inauguração em 1867, com apenas uma linha para a descida até o porto. A solução era a duplicação da linha da SPR ou a abertura de uma nova linha para o litoral. Nos arquivos da Assembleia Legislativa em São Paulo é possível encontrar uma série de pedidos de concessão de companhias ferroviárias e de outros particulares interessados em construir uma outra via férrea para o litoral.

A instabilidade política dos primeiros tempos da República impediu uma rápida solução para a questão. A nomeação do engenheiro Antonio Francisco de Paula Souza para a pasta ministerial da Indústria, Comércio e Obras Públicas do governo de Floriano Peixoto tinha como um dos seus objetivos encontrar uma solução para a crise dos transportes em São Paulo. Enquanto ministro, Paula Souza não obteve êxito e uma das causas para o seu insucesso certamente está atrelada às instabilidades políticas do período. Neste mesmo período, com a eclosão da Revolta da Armada na capital, Floriano Peixoto não pode dedicar atenção aos problemas paulistas, fazendo com que Paula Souza abandonasse o ministério sem resolver a questão dos transportes.

Enquanto isso, o governo do estado de São Paulo estava em negociações com a SPR para a duplicação da linha. Uma das exigências dos ingleses era a manutenção do monopólio de descida até Santos, e em contrapartida, a companhia duplicaria suas linhas, inclusive, no delicado trecho de subida da Serra do Mar. A Assembleia Legislativa, por sua vez, havia concedido à Companhia Mogiana o direito de construir e explorar uma linha de simples aderência até o porto de Santos. As linhas de simples aderência não exigiam o emprego de técnicas mais complexas, ao contrário dos sistemas funiculares utilizados para o controle das composições nas subidas e descidas da serra. Pelos relatórios expedidos por esta companhia durante a década de 1890, verifica-se que as obras estavam em adiantado estágio e em poucos anos a Mogiana teria um caminho exclusivo até Santos.

A estabilidade conquistada durante o governo de Prudente de Moraes permitiu que as negociações entre as companhias fossem retomadas, tendo como um dos intermediadores o engenheiro Paula Souza. Por volta de 1895, finalmente a SPR, o governo do estado e a Mogiana concordaram com a seguinte medida: a SPR duplicaria suas linhas e manteria, por mais 90 anos, a exclusividade de descida/subida da Serra do Mar, ao passo que a Mogiana deveria desistir de seu audacioso projeto de descida ao litoral, tendo em troca a garantia de empréstimos com os banqueiros ingleses.

A duplicação acordada entre governo e SPR previa a construção de um segundo plano inclinado para a subida/descida da Serra (projeto conhecido como Serra Nova) e a duplicação da linha até Campinas. Optou-se também pelo sistema funicular para a subida da Serra, um dos mais fascinantes e complexos sistemas até então implantados no país. Neste mesmo acordo ficou estabelecido que somente a Companhia Sorocabana poderia construir uma outra linha para Santos de simples aderência, mas o projeto levou mais de 30 anos para ser efetuado, favorecendo assim os ganhos da SPR. Neste episódio da crise dos transportes fica claro que os interesses privados sobrepujaram os públicos.

Passadas tantas décadas, ainda é possível enxergarmos várias similitudes entre as ocorrências do final do século XIX e o panorama atual da requalificação das redes de infraestruturas, principalmente no que tange aos interesses privados.

1– Sobre a massa de capital liberado para o estado de São Paulo investir na resolução de seus problemas ver Bernardini. Construindo infra-estruturas, planejando territórios: A Secretaria de Agricultura, comércio e Obras Públicas do Governo Estadual Paulista (1892-1926). 2007. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

Cristina de Campos é professora colaboradora do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp



 
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